Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cecilia Giannetti

‘José Saramago, que lança ‘Ensaio sobre a lucidez’: ‘A democracia é assim como Deus, fala-se muito dele, mas ninguém sabe onde está’

José Saramago tinha pela frente seu 11º romance mas não podia vê-lo. Nada de extraordinário – isso já lhe acontecera com Ensaio sobre a cegueira, de 1995, quando enxergou o título antes mesmo que tivesse uma história, conforme explicou em entrevista por e-mail ao Jornal do Brasil:

– O processo gerador (mas não consciente) foi semelhante nos dois casos. As idéias surgiram-me subitamente, quase que apetece dizer vindas do nada, e logo no instante seguinte os títulos apareceram como por uma espécie de mecanismo automático: já tens a idéia, agora dou-te o título. Depois só há que imaginar a história e construir o livro…

A simplicidade da explicação faz parecer inútil qualquer tentativa de teorização sobre sua obra ou a literatura em geral. A maneira como descreve o processo criativo de Ensaio sobre a lucidez, que a Companhia das Letras lança esta semana, faz pensar no escritor como um cego guiado por um labrador enredo adentro, até que encontre o livro. Que a comparação não sirva para insinuar irresponsabilidade do autor para com a obra: é mais uma pista de que ainda vale como fórmula na sua literatura o velho mote que ele continua oferecendo como conselho literário a quem o peça: ‘Começar pela imaginação e a partir daí deixar que a razão predomine’.

Falando sobre o novo romance, o escritor português de 82 anos, abordou democracia, comunismo e até a atuação do governo Lula. O sistema democrático é tema do livro, que tem pontos em comum com o universo de Ensaio sobre a cegueira:

– Quando terminei o Ensaio sobre a cegueira, nem sequer como remota possibilidade se me apresentava a hipótese de lhe dar continuação. Aliás, o Ensaio sobre a lucidez não é, em rigor, uma continuação da Cegueira. É quando já levo muito adiantada a escrita da Lucidez que ‘compreendo’ que a cidade é a mesma (de Ensaio sobre a cegueira), que as personagens da primeira história, embora não todas, devem passar para a segunda – esclarece.

Uma das personagens recorrentes é a mulher do médico que, no livro anterior, havia sido a única a escapar da espécie de surto de cegueira que varrera uma cidade não identificada pelo autor, que também não dá nomes próprios aos tipos que cruzam as duas histórias. A mulher do médico ressurge carregando uma possível ligação entre a anterior cegueira coletiva e o que os políticos de Ensaio sobre a lucidez denominam Insurreição dos Brancosos.

A insurreição corresponde a uma eleição cujo primeiro escrutínio resulta em 70% de votos em branco, e o segundo (uma tentativa desesperada do governo para reverter a situação) em 83% de votos em branco. Institui-se o estado de sítio na capital, que é transferida para outra cidade, junto com o presidente e deputados em debandada. O voto em branco, ‘um febrão que se estava incubando’, é considerado nocivo ao regime e, com a Constituição suspensa, suas engrenagens devem ser investigadas e solapadas. São presos para averiguação no Ministério 50 cidadãos e cerca de 500 outros são levados a unidades investigadoras, ‘enquanto uns ainda eram livres de entrar e sair de suas casas, e, esquivos, escorregadios como enguias, tanto apareciam como desapareciam’. As perseguições, prisões e desaparecimentos remetem a procedimentos comuns a regimes ditatoriais e o governo diz agir em nome da democracia contra um ato que considera ameaça ao regime. Para Saramago, a ditadura ‘disfarçada’ não é mais difícil de ser combatida que a ditadura declarada:

– O que as ditaduras brandas aprenderam, disfarçando-se de democracia, foi a arte de fazer das suas vítimas cúmplices. Se protestas, dizem-te logo que não és democrata, que estás contra a democracia. Meios de resistir? Puxemos pela cabeça, para alguma coisa nos há-de ela servir.

‘É regra invariável do poder que, às cabeças, o melhor será cortá-las antes que comecem a pensar’, vaticina o narrador, ambientando o leitor no cenário que em muito lembra o terror às cegas de Ensaio sobre a cegueira. O polígrafo (detector de mentiras) é utilizado por agentes do governo para descobrir os que haviam votado em branco.

– O governo (…) entra em pânico porque percebe que o voto em branco põe em causa todo o sistema. Mas o voto em branco é absolutamente democrático, não põe em causa a democracia, aplica-a – avalia Saramago.

Primeiro comunista a ganhar um prêmio Nobel (de Literatura, em 1998), o autor questiona no romance um sistema capaz de voltar-se contra o povo sem que este tenha infringido qualquer lei.

– A democracia é assim como Deus, fala-se muito dele, mas ninguém sabe onde está – critica o autor.

Quando uma bomba real explode na estação central do metrô da capital, toda a imprensa atribui o atentado terrorista aos ‘brancosos’: ‘Com a liberdade de expressão e comunicação condicionadas, com a censura a olhar por cima do ombro do redator, estava encontrada a melhor das desculpas’, diz o narrador sobre a postura da imprensa.

O presidente da Câmara da capital abre mão do cargo após entender que os mandantes do atentado são membros do governo, entre eles, o ministro do Interior, que avisa que, com a demissão, ‘se arrependerá amargamente, ou nem terá tempo para arrepender-se, se não guardar sobre este assunto um silêncio absoluto’. O presidente da República, por sua vez, demonstra-se acuado e dividido, como se não tivesse poder decidir para contornar os rumos trágicos que a situação vai tomando: ‘O maior erro da minha vida como político foi permitir que me sentassem nesta cadeira, não percebi a tempo que os braços dela têm algemas’, diz a personagem.

O cenário descrito por Saramago é desolador, mas o autor não crê que tenha exagerado nas tintas:

– Eu não sou pessimista, o mundo é que é péssimo. Encaremos os fatos e decidamos que papel queremos desempenhar na tragédia do mundo. Os meus brancosos fizeram o que estava ao seu alcance. Triunfaram? Duvido. Como igualmente não triunfaram as personagens da ‘Caverna’. Mudaram de sítio, simplesmente, não mudaram o sistema.

Segundo Saramago, Ensaio sobre a Lucidez é uma sátira que acaba em tragédia:

– Não devemos estranhar, é o que acontece na vida. Eu sou apenas um escritor, escrevo livros para explicar o que penso. Se esses livros têm leitores, cabe-lhes a eles dizer o que pensam do que pensei. E se isso os levar a uma ação tendente a mudar ‘a realidade que temos hoje’, poderão ter a certeza de que me encontrarão lá.’



Ubiratan Brasil

‘Saramago quer escandalizar’, copyright O Estado de S. Paulo, 20/03/04

‘O próprio José Saramago previu que seu próximo livro, Ensaio sobre a Lucidez (Companhia das Letras, 328 páginas, R$ 39,50), que chega quinta-feira às livrarias do Brasil e Portugal, provocará ‘um escândalo dos diabos’. O motivo é a forma como fala de um país em que os governantes discutem por ninharias e a imprensa tenta cativar leitores exibindo virtudes públicas que mascaram vícios privados.

O livro detalha o desespero do governo de um país cujas eleições municipais resultam em mais de 80% de votos brancos, especialmente na capital. Chamados pejorativamente de ‘brancosos’, esses eleitores acabam alvos de medidas drásticas, desde o estado de sítio que fecha as fronteiras da cidade até atentados terroristas armados pelo próprio governo, com a intenção de provocar pânico e justificar a retomada da legalidade. ‘Quis que a fábula fosse uma sátira, mas não pude evitar que fosse também uma tragédia’, disse Saramago ao Estado, na seguinte entrevista, por e-mail.

Estado – Depois do atentado terrorista na Espanha, como se deve falar de democracia no mundo?

José Saramago – Não estaríamos vivendo em democracia mesmo que não se verificasse um só atentado. Evitemos confundir as coisas. Poderíamos gozar de uma democracia plena, isto é, política, econômica e cultural, e ainda assim sermos alvo de atentados com origem precisamente nos inimigos da democracia. Quem tem a culpa pelo fato de a democracia não ser o que deveria ser são os que fizeram dela uma mera fachada, um artifício em que ao cidadão apenas está permitido substituir um governo por outro, deixando intacto o sistema.

Estado – Depois da cegueira, a lucidez: é possível apontar para um caminho tranqüilizador ou é justamente o contrário?

Saramago – Não há nenhum caminho tranqüilizador à nossa espera. Se o queremos, teremos de construí-lo com as nossas mãos. O poder econômico governa o mundo, e governa-o para que sirvamos aos seus interesses e aumentemos os seus lucros. É absurdo continuar a papaguear a palavra democracia quando o poder real, autêntico e único – o poder econômico – não é democrático. Os governos, digo-o pela milésima vez, tornaram-se comissários políticos do poder econômico.

Estado – A discussão sobre a perda da identidade é uma conseqüência em sua obra, depois de tratar sobre a falta de visão do mundo (Ensaio sobre a Cegueira) e a incapacidade de viver na sociedade de consumo (A Caverna)?

Saramago – Perder ou não perder a identidade é um tema importante, sem dúvida, capaz de produzir literatura e filosofia em grandes quantidades e da melhor qualidade, mas creio que temos questões mais urgentes a resolver. De quatro em quatro segundos morre uma pessoa de fome. Diante desse drama, discutir identidades parece-se muito com o velho debate sobre o sexo dos anjos.

Estado – A mídia, que ‘tem parte ativa na preparação dos desastres’ (como está no livro), não passa realmente de organizações mais preocupadas em conseguir títulos inflamados do que apurar a verdade e a essência dos fatos?

Seria ela também uma propagadora dos conflitos mundiais?

Saramago – Não digo que a mídia seja propagadora dos conflitos mundiais.

Aliás, dizer mídia, sem mais nem menos, é uma abstração. O que conta são os jornalistas, as pessoas. E essas são boas ou más, inteligentes ou estúpidas, honestas ou desonestas, como toda a gente. O pior jornalista é aquele que se comporta como um camaleão, sempre preparado para mudar de cor conforme o ambiente. A lógica empresarial das tiragens e das audiências convida inevitavelmente ao sensacionalismo, à manobra rasteira, ao compadrio, aos pactos ocultos. Não há muita política nas colunas dos jornais, o que há é muitos políticos. Ambições, em vez de idéias.

Estado – Qual a possibilidade de hoje alguma cidade do mundo votar maciçamente em branco?

Saramago – Por agora, provavelmente nenhuma. Mas quando as pessoas perceberem que é o próprio sistema democrático que tem dentro de si um elemento de contestação realmente efetivo, os partidos vão começar a tremer.

Talvez a regeneração do sistema possa então começar.

Estado – A esperança de lucidez está, no mundo de hoje, apenas no homem comum?

Saramago – Que é o homem comum? Esse que é enganado todos os dias? Que vive sob o pavor de perder o trabalho? Esse que não será nunca o que talvez pudesse chegar a ser? A lucidez é um luxo que nem todos podem permitir-se.

Estado – A justiça, para o senhor, é algo definitivamente inalcançável?

Saramago – Sem democracia econômica não haverá justiça social, quando muito alguns paliativos, mas nenhuma solução que deixe os problemas resolvidos de uma vez para sempre. Acusam-me às vezes de querer tirar a esperança das pessoas e talvez seja certo. É que a esperança é como uma aspirina que alivia a dor, mas que não elimina a causa. E essa aspirina é distribuída em profusão àqueles que não estão interessados em procurar as causas. Pior ainda: mesmo conhecendo-as, se tornaram agentes ou cúmplices delas.

Estado – Como gostaria de ver classificada sua obra: novela, fábula, sátira ou tragédia?

Saramago – Eu próprio disse que o Ensaio sobre a Lucidez é, ao mesmo tempo, uma fábula, uma sátira e uma tragédia. Quis que a fábula fosse uma sátira, mas não pude evitar que fosse também uma tragédia. Como a vida.’



Daniela Birman

‘Democracia surda e assassina’, copyright O Globo, 20/03/04

‘O escritor português José Saramago explorou em seu novo romance, ‘Ensaio sobre a lucidez’, um tema que, numa primeira análise, pode parecer já ter sido exaustivamente debatido: a democracia. Mas sua visão crítica vigorosa e sua competência literária nos convencem do contrário. Para ele, a democracia é exatamente o que não se discute hoje: ‘Está ali, como santa no altar, e nós só temos que nos ajoelhar aos seus pés e rezar para que cuide de nós (…). Mas esta santa laica está coberta de chagas, cheira mal e ainda por cima é surda’. Em entrevista ao GLOBO, o Nobel de Literatura fala ainda sobre o presidente do Brasil: ‘Tenho a impressão de que já deixou de ser o Lula que conhecíamos’.

Gostaria de saber como surgiu a idéia de escrever ‘Ensaio sobre a lucidez’. Já fazia parte de seu projeto retomar os personagens e a cidade de ‘Ensaio sobre a cegueira’?

JOSÉ SARAMAGO: Para não variar, como me sucedeu com quase todos os outros romances, a idéia do ‘Ensaio sobre a lucidez’ nasceu do inesperado. Estava em Madri, dormia, e de repente acordei, totalmente lúcido, e a idéia apresentou-se-me: o voto em branco. Eram 3h da madrugada. No instante seguinte surgia o título. ‘Ensaio sobre a lucidez’ não é uma continuação do ‘Ensaio sobre a cegueira’, ainda que à primeira vista o possa parecer. Foi só quando a escrita deste novo romance já ia bastante avançada que me ocorreu a possibilidade e o interesse ficcional de estabelecer uma relação com as personagens da ‘Cegueira’. Encontrava-me diante de duas situações de caráter excepcional: no primeiro caso, uma cidade que se tornou toda cega; no segundo caso, a mesma cidade que decide votar maioritariamente em branco. Cegueira branca, voto branco. Mas a brancura, agora, não é cegueira, é lucidez.

O senhor declarou que ‘Ensaio sobre a lucidez’ pode ser considerado um testamento seu. Poderia falar mais a este respeito?

SARAMAGO: É certo que disse que o ‘Ensaio sobre a lucidez’ podia ser, talvez, o meu testamento literário, mas não por pensar que seria o último livro. Havia escrito neste romance umas quantas coisas que não tinha dito antes, coisas de cuja necessidade só agora começo a ter clara percepção. Aliás, não foi a primeira vez que me manifestei em termos semelhantes. Quando acabei o ‘Ensaio sobre a cegueira’, lembro-me de ter dito: ‘Agora já posso morrer’. Não só não morri, como penso em continuar a escrever.

O senhor afirmou que ‘Ensaio sobre a cegueira’ faria parte de uma ‘trilogia involuntária’, ao lado de ‘A caverna’ e ‘Todos os nomes’. Com ‘Ensaio sobre a lucidez’, já seria uma tetralogia? Planeja escrever ainda uma quinta obra para esta espécie de série?

SARAMAGO: Por favor, não falemos mais de trilogias, nem de tetralogias, nem de pentalogias. Na obra de qualquer autor sempre se encontram relações internas, e eu não sou exceção. Essas relações existem. Em alguns casos, são mesmo muito marcadas, mas não é a mim que compete defini-las. Os leitores são suficientemente inteligentes para decifrar e interpretar os jogos cruzados, as referências múltiplas, os ecos que vão ressoando de livro em livro.

Disse também que foi um difícil processo escrever ‘Ensaio sobre a cegueira’. A escrita de ‘Ensaio sobre a lucidez’ foi mais fácil?

SARAMAGO: O processo de escritura do ‘Ensaio sobre a cegueira’ não foi difícil, mas, sim, penoso, quase doloroso. Por causa do assunto, não por questões de estrutura ou de linguagem. O trabalho no ‘Ensaio sobre a lucidez’ foi diferente. Os aspectos satíricos que conformam o romance aligeiraram de alguma maneira a tarefa do autor. Tenho de confessar que me diverti imenso em muitas das suas páginas.

No momento em que escrevo essas perguntas, dez explosões em quatro trens em Madri deixaram um enorme número de mortos e feridos. Em ‘Ensaio sobre a lucidez’, uma bomba no metrô também causa muitas mortes. Na sua ficção, a bomba foi colocada pelo governo, com intenção de culpar os subversivos e ‘defender’ a democracia. De que modo, a seu ver, a democracia relaciona-se com o terror?

SARAMAGO: O terrorismo de Estado é um fato mais do que conhecido. A lista de casos e exemplos nunca mais terminaria, e suponho que os jornalistas os conhecem melhor que ninguém, pelo menos têm a obrigação e os meios. Para só citar os EUA, esse país considerado a grande democracia do nosso tempo, os casos de terrorismo de Estado não têm conta. Pensar que só os regimes autoritários são culpados de crimes desse tipo é de uma ingenuidade imperdoável. As caves das democracias também estão cheias de esqueletos.

No livro, o senhor critica a democracia, ou a falsa idéia de democracia em nome da qual um governo decreta estado de sítio numa capital e comete ilegalidades e atos violentos. Essa crítica parte de uma visão do sistema político predominante no mundo?

SARAMAGO: Vivemos numa época em que é possível discutir tudo. Ao redor do mundo reúnem-se congressos, organizam-se simpósios, colóquios, mesas-redondas, e tudo se discute: desde a ecologia ao buraco no ozônio, desde a terceira idade ao aquecimento da atmosfera, desde a eutanásia ao direito ao aborto. Tudo. Com uma exceção. Não se discute a democracia. Está ali, como santa no altar, e nós só temos que nos ajoelhar aos seus pés e rezar para que cuide de nós e nos guie pelo bom caminho. Mas esta santa laica está coberta de chagas, cheira mal e ainda por cima é surda. E mente com quantos dentes tem na boca.

O senhor pretende, também, fazer referência a casos mais específicos, como a política externa do presidente Bush e sua guerra contra o terror? Ou o conflito entre palestinos e Israel, já que o presidente do país de seu livro propõe a construção de um muro cercando a capital? Ou à política interna e a instituições portuguesas?

SARAMAGO Pretendi que o ‘Ensaio sobre a lucidez’ fosse o retrato que nos faltava. Mas não duvido de que um retrato autêntico, de corpo inteiro e com uma radiografia geral, seria muito pior.

O senhor já afirmou que o romance deixou de ser um gênero e transformou-se num ‘espaço literário’. Poderia falar sobre as causas dessa mudança e de que modo isso aparece em ‘Ensaio sobre a lucidez’, romance que também é um pouco de fábula e sátira?

SARAMAGO: Referia-me concretamente ao fato de o romance se ter aberto nos últimos tempos a todas as expressões do pensamento criativo e especulativo: o ensaio, o drama, a filosofia, a poesia, as próprias ciências… No meu caso, tem sido notada desde sempre, quer pela crítica, quer pelos leitores, uma presença ensaística constante nas minhas ficções. A isso me referia e não ao fato de um romance ser mais ou menos fabulante ou satírico.

Qual a sua visão desses primeiros 14 meses do governo Lula? Acredita que o presidente foi transformado num Dom Sebastião, na figura messiânica que o senhor temia, ou esse risco foi eliminado?

SARAMAGO Lula não chegou a tornar-se um Dom Sebastião, e ainda bem. Mas agora não sei exatamente quem é. Tenho a impressão de que já deixou de ser o Lula que conhecíamos. O poder tem destas coisas, vira os políticos como se eles fossem uma peúga. A primeira viragem chama-se pragmatismo, a segunda oportunismo, a terceira conformismo. A partir daqui, o melhor é deixar de contar.

O senhor crê que a literatura tem alguma capacidade de provocar mudanças no mundo? Ao expor em seus livros uma visão pessimista da Humanidade, o senhor espera contribuir para essas mudanças, tocando os leitores, criando polêmicas e estimulando discussões?

SARAMAGO: A resposta está na pergunta. Pretendo tocar os leitores, criar polêmicas, estimular discussões. Mas isto não significa que a literatura tenha poder para mudar o mundo. Já não é pouco que seja capaz de exercer influência sobre algumas pessoas. O mundo é demasiado grande, somos mais de sete bilhões os que habitamos neste planeta, e o poder real está nas mãos das grandes multinacionais que evidentemente não nasceram para ser agentes da nossa felicidade.

O fato de o senhor ter se tornado o único Nobel em língua portuguesa influenciou de algum modo seus últimos livros? É mais difícil criar com essa responsabilidade? Ou se torna mais obrigatório ainda, levando-o a escrever com mais assiduidade?

SARAMAGO: Não me calei antes, não me calo agora. Neste particular, o Nobel só serviu para que a minha palavra, valha ela o que valer, soe mais forte e chegue mais longe. Mas não passo de um escritor. Não sou nem guru nem guia espiritual. Limito-me a dizer o que penso. Nada mais, mas também nada menos. Mesmo que isso desagrade a muita gente.