Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Classificação indicativa não é censura

O racha na grande imprensa por causa da classificação indicativa para a programação de TV é extremamente saudável. Força a discussão, promove a diversidade e, sobretudo, escancara um problema muito mais grave: a concentração da mídia em poucas empresas.


Quando um grupo de mídia tem negócios na TV, seus veículos impressos submetem-se aos interesses específicos das empresas de TV e esquecem de atender aos interesses dos leitores dos seus jornais e de toda a sociedade. É o que está acontecendo agora: os jornais editados por empresas que atuam na área da TV estão qualificando a salutar classificação indicativa como censura, os outros estão discutindo o assunto sem constrangimentos.


A classificação indicativa é uma antiga aspiração de todos os interessados numa TV que atenda aos seus compromissos públicos. José Gregori, quando foi ministro da Justiça no segundo mandato de FHC, veio ao programa televisivo do Observatório da Imprensa para defender a urgente implantação de um sistema para classificar os programas de TV de acordo com as idades. Naquela ocasião, a OAB não estrilou.


No primeiro mandato do presidente Lula, o ministério da Justiça tentou implantar a classificação, mas o responsável pelo setor foi transferido 24 horas depois.


A classificação de espetáculos não tem nada de censura, está prevista na Constituição, mas a insistência de certos grupos de mídia em liquidá-la mostra que está na hora de promover uma grande discussão sobre a mídia. Mas sem histeria partidária e sem os chavecos chavistas.


***


Classificação indicativa na democracia


Ana Olmos, Guilherme Canela e Ricardo Moretzsohn # copyright Folha de S.Paulo, 9/2/2007


Alemanha, Austrália, Espanha, Chile, EUA, Holanda, Portugal, Reino Unido, Suécia. Todas essas democracias possuem índices de desenvolvimento humano e de liberdade de imprensa bem melhores que os nossos. Adicionalmente, contam com sistemas de classificação indicativa mais sedimentados do que aquele hoje em vigor no Brasil. Sistemas estes que regulam os conteúdos veiculados pela televisão aberta ao definir as faixas etárias que deveriam -ou não- ter acesso a determinados programas e, paralelamente, os horários nos quais esses programas podem ser apresentados.


Em suma, a proteção dos direitos de crianças e adolescentes no contexto da programação das emissoras de TV aberta é uma das preocupações centrais dos modelos de classificação adotados por essas democracias.


Para a autoridade reguladora britânica, por exemplo, ‘conteúdos que podem seriamente impactar o desenvolvimento físico, mental ou moral de pessoas com menos de 18 anos não devem ser veiculados’.


Nesses países, é central ressaltar, o processo classificatório não gera polêmica. Primeiro, porque é amplamente aceito o fato de que regular os radiodifusores detentores de uma concessão pública -e, portanto, uma espécie de inquilino do espectro eletromagnético, propriedade de cidadãos e cidadãs contribuintes- é um dever e um direito do Estado. Segundo, porque se entende que a regulação democrática dos meios -incluindo a classificação indicativa- não tem absolutamente nada a ver com a prática de censura, ao contrário do que, não raro, propalam alguns indivíduos pouco conhecedores da temática.
Quando uma autoridade regulatória legítima sinaliza quais conteúdos audiovisuais são especialmente válidos para determinados segmentos populacionais -ou inadequados para outros-, ela deve ter dois objetivos primordiais: oferecer à sociedade a possibilidade de escolha consciente das programações de TV às quais terá acesso e proteger os direitos de todos os cidadãos e cidadãs, em especial os das chamadas minorias políticas (recorte social no qual crianças e adolescentes têm posição de destaque, pois são, ao menos legalmente, prioridade absoluta para o Estado e a sociedade).


O que está em questão, portanto, quando a relação entre o público infanto-juvenil e a regulação democrática dos meios de comunicação entra em foco é o reconhecimento, por nossa legislação, da ‘condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento’. Nesse sentido, classificar as produções de TV a partir de uma escala de horários e indicar publicamente qual o teor de seus conteúdos é também um importante instrumento de fortalecimento dos laços familiares.


Pais e mães ficam cada vez mais fora do lar, trabalhando. Crianças e adolescentes vêem cada vez mais televisão -é a segunda atividade a que dedicam mais tempo, logo após a escola.


E a TV, vale lembrar, não pode ser entendida como um simples eletrodoméstico. Ela tem produzido fortes impactos sobre a produção das subjetividades e identidades culturais, sobretudo em meninos e meninas. É por isso que podemos afirmar que a classificação indicativa também se configura como um instrumento pedagógico. Ao evidenciar as particularidades de cada programa que começa a ser veiculado, a classificação contribui para que os telespectadores façam uma opção: assistir ou não àquele determinado conteúdo. A tomada de decisão, necessariamente, implica algum grau de reflexão, o que pode ser um convite para uma relação mais independente e proveitosa com a ‘caixa mágica’, cabendo às famílias a palavra final. A liberdade, o maior de todos os direitos, enfim, estaria garantida. Redemocratizar o país é um processo, e não um truque. Assim, as vozes preocupadas com uma possível volta da censura devem ser ouvidas.


Entretanto, o debate precisa ser travado a partir do que efetivamente está sendo proposto pelo novo instrumento de classificação indicativa do Ministério da Justiça -que resulta de uma construção transparente, envolvendo as diversas partes interessadas, além de encontrar-se em plena consonância com os parâmetros utilizados nas sociedades mais avançadas do planeta.


Ou seja, não se trata de uma volta aos tempos obscurantistas, mas sim de um avanço fundamentado na democracia e no conseqüente respeito aos direitos humanos. Todos e todas devemos assumir nossas responsabilidades nesse processo -Estado, empresas, sociedade civil organizada, famílias. É isso que está em jogo.


[Ana Olmos, psicanalista de crianças, é especialista em neuropsicologia infantil. Guilherme Canela, mestre em ciência política, é coordenador de Relações Acadêmicas da Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância). Ricardo F. Moretzsohn, psicólogo, é ex-representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional.]