Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Cobertura da mídia manteve preconceitos

O Fórum Social Mundial surgiu como um contraponto ao Fórum Econômico de Davos. Ano após ano, o balanço de organizadores e lideranças manteve-se altamente crítico à cobertura feita pelos meios de comunicação comerciais, a chamada grande mídia: enquanto celebravam-se as análises otimistas sobre a expansão do capitalismo mundial feitas em Davos, eram escondidas e ironizadas as propostas por um ‘outro mundo possível’ discutidas em cada uma das edições do FSM.


No entanto, no encontro deste ano, realizado em Belém entre 27 de janeiro de 1o de fevereiro, a postura mudou, ainda que muito levemente. O Fórum Social ganhou visibilidade na mídia comercial em uma cobertura que mostrou a existência de evento de caráter internacional discutindo perspectivas alternativas para o futuro da humanidade, mas manteve sempre esta presença em condição inferior ao Fórum de Davos.


Para Rita Freire, integrante do Grupo de Trabalho de Comunicação do FSM e coordenadora do projeto de cobertura compartilhada Ciranda, esta postura de alguma abertura foi resultado da crise total de projeto dos líderes do capitalismo mundial reunidos na Suíça. ‘O FSM teve mais visibilidade na mídia do que em anos anteriores, possivelmente porque há expectativa de que exista alternativa ao caos que estamos vivendo hoje em todos os setores e sistemas que organizam o planeta.’


Exclusão das alternativas


Mesmo assim, na avaliação dos entrevistados pelo Observatório do Direito à Comunicação, as reportagens da mídia comercial mantiveram um viés limitado e crítico ao Fórum Social, marcado pelo excessivo destaque à agenda dos presidentes latino-americanos, em especial às críticas ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, pela espetacularização do encontro e das culturas diferenciadas presentes nele e pela busca de contradições entre os discursos altermundistas e supostas práticas pró-capitalistas.


As propostas de mudanças do atual modelo de desenvolvimento, radicais ou não, apresentadas em seus debates permaneceram fora da agenda midiática. ‘Não houve espaço para este debate, mas houve visibilidade’, diz Freire. ‘A mídia convencional se foca muito no evento como um todo, no espetáculo e acaba deixando de lado debates que são importantes’, endossa Kellem Cabral, jornalista que coordenou a Assessoria de Imprensa do FSM.


O sociólogo Emir Sader, em artigo escrito para a Agência Carta Maior, defende que a mídia comercial não consegue enxergar o Fórum Social porque mantêm a ótica do discurso que sustentou o capitalismo neoliberal até a crise. ‘Seu estilo e sua ótica está feita para Davos, para executivos, ex-ministros de economia. Temas como os diagnósticos da crise e as alternativas, a guerra e as alternativas de paz, as propostas de desenvolvimento sustentável – fundamentais no FSM – estão fora da pauta.’


Outro tema que deveria ser caro aos grupos de mídia, a crise econômica e editorial destes, é também excluído da cobertura realizada. ‘A mídia mercantil é um caso perdido para a compreensão do mundo contemporâneo’, conclui Sader.


Estrelas presidenciais e midiáticas


Quando apareceram, as críticas dos movimentos sociais e organizações presentes em Belém vieram sempre com alvo certo: o presidente Lula. ‘O FSM, como tudo, é objeto das fofocas sobre eventuais desgastes do governo Lula – a obsessão dessa mídia’, aponta Sader.


No dia 28/1, a Folha de S.Paulo reforçou este ponto de vista de desgaste de Lula ao cravar como título de sua matéria ‘Lula enfrentará cobranças em fórum por efeitos da crise’. O não convite ao presidente para a atividade promovida pelo MST com os presidentes Evo Morales, Hugo Chavez, Rafael Corrêa e Fernando Lugo também ganhou destaque na matéria.


As atividades da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas) contra as respostas do governo federal à crise, mesmo que não integrando uma programação unitária e oficial do FSM, também ganharam menção na reportagem do periódico paulista. É fato notório que parte importante dos presentes em Belém manteve avaliações críticas do governo brasileiro, mas estas nunca foram noticiadas do ponto de vista de suas propostas, mas apenas como mostras de arranhões na alta aprovação de Lula.


‘Boa parte da cobertura foi dedicada às autoridades presentes, ocuparam 2 ou 3 dias. A imprensa foi atrás da declaração dos ministros’, avalia Rogério Jordão, assessor de imprensa do Ibase, uma das entidades organizadoras do fórum, e responsável por municiar seus integrantes diariamente com análises sobre a cobertura realizada.


Guiada pelo caminho das estrelas, sejam elas presidenciais ou não, também causou frisson o boato de que a atriz Angelina Jolie poderia ir ao FSM. ‘É mais importante o destaque à Angelina Jolie e Bono Vox ou a este momento para a América Latina e para o mundo? E a imprensa não olha para isso, não diz isso nos seus programas’, questiona Rosane Bertotti, secretária de comunicação da Central Única dos Trabalhadores (CUT).


Contradições


Um terceiro viés da cobertura dos veículos sobre o Fórum Social Mundial é já uma constante ao longo das edições do evento e busca contradições entre o discurso por um outro mundo possível e as práticas políticas ou de vivência dos participantes. ‘A grande mídia procurou lado contraditório, dizendo que o fórum faz tudo aquilo que quer mudar, reforçando que FSM não traz nada de novo’, diz Rita Freire.


Exemplo deste tipo de pauta é a matéria feita por Rodrigo Bertolotto para o portal UOL publicada em 27 de janeiro sob o título ‘Participantes do Fórum planejam `outro mundo´, mas lucram com o atual’. Nela, o repórter aponta uma suposta contradição entre a crítica ao capitalismo realizada no FSM e a venda de artigos para arrecadação de dinheiro, como se a contestação passasse por uma negação das formas de busca de renda.


Associada a este tipo de matéria estão também as que vêem no Fórum Social um conjunto de eventos pitorescos. A diversidade das manifestações presentes são vistas com estranhamento e aqueles comportamentos que diferenciam-se da conduta normalizada nos grandes meios é folclorizada ou ridicularizada, ao invés de ser compreendida.


Segundo Rogério Jordão, do Ibase, os meios de comunicação têm dificuldade de compreender a complexidade do evento e optam por se ‘ater ao pitoresco, ao `woodstock´, ao caráter midiático das imagens, pegando este lado fácil da coisa’. O jornal mineiro O Tempo deu grande destaque a uma ‘marcha pela legalização da maconha’ que teria sido realizada durante o FSM, o que ajuda a reforçar a idéia de que este tipo de evento seria a atividade comum do evento.


Cobertura diferenciada


Jordão avalia que houve uma diferença entre o noticiário das redes de TV e rádio e aquele da mídia impressa. Os primeiros estiveram mais abertos ao Fórum Social Mundial, retrataram os grandes temas, enquanto os segundos tiveram postura clara de desconstrução do evento e de suas discussões. ‘As televisões, embora também não tenham conseguido aprofundar, apresentaram temas muito mais ligados ao Fórum, como a Amazônia. Por dois dias, deram matérias sobre tráfico de mulheres ou denúncias neste sentido. A pessoa que viu TV talvez tenha compreendido mais o Fórum do que os jornais, e com viés simpático’, avalia.


A diferença advogada pelo assessor do Ibase é de fato perceptível. Matérias do Jornal Nacional, da Rede Globo, e do Jornal da Record deram a cobertura básica, com números de participantes do evento, mas também apresentaram os grandes temas em debate, como a Amazônia e a crise financeira internacional.


No dia 27/1, primeiro dia do FSM, o Jornal Nacional fez matéria de apresentação do evento, elencando os principais debates. No mesmo dia, o Jornal da Record destacou as pautas indígenas pela preservação da Amazônia. No dia 28, na primeira matéria sobre o FSM, o Jornal Nacional economizou julgamentos e apresentou rapidamente o foco do primeiro dia do evento nas discussões sobre a Amazônia. O Jornal da Record deu destaque às denúncias contra os assassinatos cometidos contra líderes do movimento campesino.


Já a mídia impressa foi o principal veículo dos preconceitos analisados anteriormente. Matérias da Folha de S.Paulo e de outros periódicos impressos mantiveram a postura dos anos anteriores. As revistas semanais repetiram a carga de ataque ao Fórum Social. A revista Veja fez chacota, sugerindo que, se estivesse vivo, Karl Marx não encontraria nada de válido em Belém, apenas ‘alguns índios e seus líderes invocando entidades incorpóreas que regeriam a vida em um continente chamado Abya Yala, como é politicamente correto se referir na língua indígena kuna ao que conhecemos como América Latina’.


Por isso, continua o semanário, o intelectual alemão se dirigiria à Davos, onde de fato se fazia a crítica do sistema capitalista. Já a revista Época, das Organizações Globo, classificou o FSM como ‘spa ideológico’, criticando os patrocínios concedidos por estatais no valor de R$ 750 mil. A reportagem conclui afirmando que as idéias ‘exaustivamente discutidas no Fórum’ nunca são ‘implementadas no mundo real’.


Falta de projeto, mas clareza do que não se quer


Ao final, o Fórum Social Mundial conseguiu aparecer como um evento noticiado para parte importante dos brasileiros pelas matérias das redes comerciais de TV. Se é válido o argumento segundo o qual tal visibilidade se deu por conta do esfacelamento dos pressupostos neoliberais, também foi visível a contenção operada em relação às propostas de reformas e revoluções nesta fase do sistema capitalista.


A cobertura do FSM realizado em Belém reforça a necessidade urgente de uma mídia plural e diversa, da qual façam parte meios públicos e livres que possam dar visão a estes projetos alternativos. Do contrário, tanto a chacota como a cobertura sóbria continuarão alijando as forças de esquerda da disputa real pelo outro mundo possível.

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Do Observatório do Direito à Comunicação