Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cobertura maior, mas sem qualidade

Como faço toda segunda-feira pós-Parada GLBT de Sampa, comprei a Folha e o Estadão para ler a cobertura dos dois principais jornais paulistas, e brasileiros, sobre a maior Parada do Orgulho Gay do mundo, ocorrida no dia anterior.

A parada, como sempre, estava, lá, na capa, com belas fotos. Não era a manchete principal, mesmo tendo batido todos os recordes de público. Para os editores não era também o assunto mais importante da véspera. Até aí, apesar de pequena decepção, nada de muito novo ou surpreendente. Leio, então, a legenda das fotos e descubro que as matérias sobre a parada continuam nos cadernos Cotidiano e Cidades. Ou seja, sem discutir a tradição de coberturas do tipo, o fato concreto é que a parada ainda é majoritariamente vista como pauta comportamental, e não política ou de interesse geral – o chapéu da matéria do Estado de São Paulo é justamente ‘Comportamento’. Aliás, quando será que esses veículos vão veicular as notícias da parada nos cadernos principais dos jornais?

Mas a leitura das matérias é que me deixou impressionado. Falta muito ainda para a chamada grande mídia dar um tratamento jornalístico minimamente denso à causa e às manifestações de lésbicas, gays e transgêneros. Comecemos pela matéria do Estadão, que, embora mais conservador que seu rival, tem uma qualidade jornalística superior.

Os tipos de lésbicas

A matéria assinada por Rose Bastos e Silvia Amorim destaca, num titulo neutro, o número de participantes – 1,8 milhão, segundo a PM. Depois, toda a construção do texto se dá em cima dos aspectos pitorescos, exóticos e que chocam o senso comum conservador. São parágrafos e parágrafos descrevendo personagens – homens – que se ‘montam’ para ir à Parada Gay. São gays vestidos de querubim, de primavera, carteiros de calcinha, grupos fantasiados de policiais militares, artistas húngaros, trios elétricos barulhentos, adolescentes bêbados. Na visão de O Estado de S. Paulo é essa multidão freak que compõe ‘o mais interessante’, o que merece quase que exclusivamente ser mencionado. Dos 11 parágrafos desta matéria principal, 10 tratam destes aspectos e apenas o último destaca que o tema da manifestação é a exigência da aprovação imediata da união civil entre pessoas do mesmo sexo.

Alguém pode argumentar que as fotos trouxeram informações importantes, como a presença de José Serra, justamente vaiado na manifestação (o prefeito hesitou em comparecer à parada, ficou só meia hora e não quis de declarar apoio à união civil), da ex-prefeita Marta, do presidente do PT ou da senadora Heloísa Helena. Mas foram pequenas notas que, entretanto, não alteram o tom geral da matéria, que é excessivamente superficial. Faltou informação sobre a diversidade e sobre o simbolismo de uma manifestação de quase dois milhões de pessoas no centro financeiro do Brasil. Faltou, sobretudo, análise dos impactos de um evento como este para a vida de 10% da população brasileira, que, entretanto, ainda não têm seus direitos civis plenamente assegurados.

Já quando fui ler a Folha de S.Paulo, que cultiva fama de progressista e faz questão de apoiar a união civil em editoriais, tive uma surpresa agradável. Salvo engano, é a primeira vez que a cobertura da parada ganha uma página inteira – a primeira – do caderno Cotidiano. Tivemos de chegar à nona edição e a dois milhões de pessoas para conseguir esse espaço – isso num jornal conhecido por ser generoso com assuntos desimportantes, futricas e mudernidades diversas. Quando li a manchete, que destaca uma possível maior participação feminina, continuei animado. Mas, ao ler a matéria, essa brevíssima alegria virou rapidinho decepção. O texto da Folha substitui a descrição dos rapazes exóticos do Estado por lésbicas e passa quase a metade do tempo descrevendo os tipos de lésbicas presentes à parada, destacando um casto selinho trocado por duas avozinhas. Parece simpático, mas, de novo, nos retrata pelo que há de não-usual, somente isso.

Animaizinhos alegres

O fim da matéria é dedicado às personalidades: a participação de Jean e os gritinhos fanáticos das fãs de Gagliasso. Mas, no meio, a repórter Laura Caprone comete trechos como esses:

‘Foi uma enorme brincadeira, regada a litros de cerveja, uísque falsificado e vinho barato. Uma diferença e tanto em relação à Marcha para Jesus, realizada há três dias no local (…). Aqui e ali, viam-se manifestantes fumando maconha, enquanto dançavam ao som de Ivete Sangalo, Cazuza e Cássia Eller’.

Ou então esse:

‘As bolachas ainda são mais tímidas. Ao lado delas, muito mais à vontade, desfilavam gays como Rogério de Mattos Cardoso, 19, e Cleomilson Bezerra de Souza, também 19, delineador marcando os enormes olhos castanhos. Sem camisa, corpos esquálidos, eles trocavam beijos lascivos, enquanto beliscavam um o corpo do outro. Também mordiam-se e abriam a braguilha das calças’.

Tirante o mau-gosto e o duvidoso pendor literário, o que orienta todo o texto da jornalista é o estranho, o que pode chocar os vetustos senhores que lerão a reportagem. Meninos magricelas excitados em plena luz do dia. Meninos e meninas fumando unzinho sem serem incomodados pelos policiais enquanto tomam vinho barato. Isso é que é a notícia e esse lado é o que deve, ou merece, ser mostrado. Mas será que a Folha só viu isso? Será que a parada que exige direitos civis e junta tanta gente diferente sem nenhum incidente relevante não tem outros fatos que mereciam ser destacados? E não me venham falar que isso é norma do jornalismo. Há como escrever textos informativos e rigorosos sem chatice e preservando o interesse para o leitor comum.

Eu não assisti à cobertura televisiva, que também parece ter sido maior este ano do que nos anos anteriores. Mas, conhecendo o baixo nível de nossas emissoras, o brilhantismo intelectual dos apresentadores dominicais e vendo como se comporta a mídia impressa, fico imaginando o grau de superficialidade da cobertura pela TV. Alguns dirão que as televisões e os jornais são apenas empresas que devem gerar lucro e se orientam por critérios mercadológicos. Parece que o que vende é tratar gays e lésbicas como animaizinhos alegres, inconseqüentes e inofensivos. É verdade que as perspectivas têm melhorado. Que temos ganhado mais espaço. Que o preconceito tem diminuído.

Excessiva condescendência

Mas, diante de um evento concreto, tão espetacular e importante quanto a Parada da Paulista, tudo o que nossa mídia tem para oferecer é essa cobertura boboca e chinfrim? Que, no máximo, serve para mostrar quanta gente esquisita há no mundo e que, afinal, é melhor deixá-la viver como é? Ou então, no caso da Folha, com sua visceral antipatia por Marta Suplicy, capaz de chamar mais atenção para uma eventual instrumentalização eleitoral de sua presença ali do que para o fato de que seu projeto pioneiro [o da união civil de pessoas do mesmo sexo] faz 10 anos sem ainda ter sido aprovado, mas foi fundamental para impulsionar a luta GLBT e as próprias paradas? E sem informar que Marta esteve presente em todas as edições do evento? Ou seja, a única vez que a cobertura fala em política é para fazer intriga menor, não para discutir o principal: os direitos desta parcela da população. É como o Estadão, que numa de suas notas teve a pachorra de destacar que o vereador tucano Roberto Trípoli não teve seu nome mencionado pela organização da parada. Eu pergunto: e eu com isso?

Portanto, diferentemente do que muitos possam pensar, as aparências enganam no caso da mídia e dos GLBT. A cobertura pode ter aumentado em quantidade, mas não em qualidade. E se é verdade que os veículos são empresas, é mais verdade ainda que a comunicação social é um bem público, que os canais de rádio e TV são concessões do Estado. Devem tratar das questões com mais propriedade, mais respeito, mais seriedade. Contribuindo para que a luta pela igualdade e contra o preconceito possa efetivamente avançar. Divulgando informação inteligente e de qualidade. Hoje, a mídia mais difunde estereótipos que aprofunda o debate sobre o tema. Há exceções, obviamente. E muito do espaço que hoje temos se deve à organização e à mobilização do movimento e dos ativistas gays, não foi concessão de empresários politicamente corretos.

Está na hora, contudo, de voltar a pensar sobre o assunto e a cobrar muito mais da mídia, às vezes tratada com excessiva condescendência. Cobrar mais respeito com seu público. Cobrar, sobretudo, seriedade ao tratar, por exemplo, de um evento que reúne quase dois milhões de pessoas. Pelo menos a Folha e o Estadão ficaram, mais uma vez, nos devendo uma cobertura razoável. Quem sabe na décima edição da parada.

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Professor, assessor parlamentar, militante GLBT do grupo Identidade, articulador da Frente Parlamentar pela Livre Expressão Sexual