Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Comemorar o quê?

Uma vez por ano, os jornais discutem a situação da mulher no Brasil e no mundo como parte das comemorações do dia Internacional da Mulher. E, embora tentem mostrar que houve evolução no mercado de trabalho, na ocupação de postos antigamente exclusivos dos homens, ainda há pouco a comemorar. Como revelou a Folha de S.Paulo na edição de domingo (07/03/2010):

‘A desigualdade entre salários de homens e mulheres diminuiu no Brasil nos últimos 30 anos, mas o diferencial é, quase sempre, a favor dos homens. Dados tabulados pela Folha a partir da PNAD de 2008 mostram que, de um total de 61 ocupações analisadas, em apenas seis o rendimento das mulheres por hora de trabalho superava o de homens.

‘Mesmo em profissões em que a participação masculina é inferior a 20%, o rendimento delas é, em média, menor. Secretários do sexo masculino, por exemplo, representam apenas 7% do total, mas recebem por hora 32% a mais que mulheres na mesma profissão. Nas poucas áreas em que as mulheres têm rendimentos maiores, isso ocorre porque o nível de escolaridade delas é superior ao dos homens na mesma profissão. Um exemplo disso pode ser constatado entre guardas e vigias, ocupação em que as mulheres são apenas 5% do total. O rendimento médio por hora de trabalho delas é 10% superior ao de homens. Mais da metade (53%) dessas profissionais têm ao menos nível médio completo. Entre homens, esta proporção não passa de 31%.’

‘Um fenômeno de desgaste’

Se a maioria das mulheres brasileiras – as pobres, com pouca escolaridade e com salário menor que os dos homens – ainda luta por oportunidades iguais, poderíamos comemorar o Dia Internacional da Mulher dizendo que houve uma significativa mudança da imagem da mulher. Parece que não. Se houve uma mudança, foi para pior, como diz o artigo do professor de ética é filosofia política da USP, Renato Janine Ribeiro:

‘Há décadas, a mulher que posava para calendários de borracharia saía mal na reputação. Mas hoje, na mídia, é ela, como objeto de desejo, que controla o sujeito desejante. O jogo ficou mais complexo. O sujeito não manda, necessariamente, no objeto. Há mulheres que extraem poder de uma condição de objeto habilmente constituída. O problema é que essa não é uma verdade universal nem majoritária.

A mulher atacada sexualmente na rua não controla nada, não tem poder, é vítima de uma violência inadmissível. Mas um número menor de mulheres – que consegue ser protagonista do que [o filósofo] Walter Benjamin chamava a reprodução mecânica e que hoje chamaríamos a imagem na mídia – ganha dinheiro, fama, poder com isso. O problema é que há mais estupros do que capas de Playboy, de modo que o poder e a riqueza de algumas não apagam o abuso sobre muitas. Finalmente: quando a mídia defende o direito (da cervejaria? da socialite? do espectador voyeur?) à propaganda com Paris Hilton, vivemos um fenômeno de desgaste: durante milênios o erotismo esteve no jogo entre o que se vê e o que apenas se adivinha’ (Folha de S.Paulo, 07/03/2010).

Duas candidatas a presidente

Seria o caso, então, de celebrar as conquistas referentes às liberdades individuais? Não parece, a julgar pelo artigo publicado no Suplemente Feminino do jornal O Estado de S. Paulo no mesmo dia 7. Segundo a historiadora Mery Del Priore, as mulheres enfrentam hoje novas formas de submissão:

‘Não vemos mulheres liberadas se submeterem a regimes drásticos para se conformarem a um único modelo físico: o do tamanho 38? Não as vemos se infligir sessões de musculação nas academias, empanturrando-se de todos os tipos de anabolizantes? Não as vemos se desfigurando com as sucessivas cirurgias plásticas, negando-se a envelhecer com serenidade? Tamanho grande? Só no fundo da loja.

‘A energia que as mulheres consagram aos seus corpos para não deixá-los enrugar e engordar é impressionante. E tudo para caber em um outro cárcere: aquele do olhar masculino. Se ainda existem mulheres engajadas em lutas, vale lembrar essa, contra as novas formas de submissão. Contra o servilismo moldado pela mídia, pela televisão, pelos outdoors. E, quem sabe, o Dia Internacional da Mulher ajude a pensar esse trágico erro: o de que só o corpo pode falar a linguagem da sedução?’

Talvez só nos reste celebrar o fato de que no dia 8 de março do ano de 2010, o Brasil tem duas mulheres confirmadas para a disputa das eleições presidenciais. Pode ser que não mude nada – efetivamente – para as milhões de brasileiras que sonham com um futuro melhor. Mas a presença das duas na campanha pode fazer com que a mídia esqueça um pouco das mulheres objeto e dê mais destaque às outras mulheres, as mulheres comuns que terão um papel decisivo nas próximas eleições.

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Jornalista