Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Conciliação e mediação, os desafios do Judiciário

Dentro e fora do Brasil, um número considerável de bacharelandos do curso de Direito nutre o sonho de ingressar na magistratura e exercer seu mais nobre mister, a prolação de sentenças o mais justas possíveis.

Abraçar essa carreira pública também era o objetivo da então universitária Maria Lúcia Ribeiro de Castro Pizzotti Mendes, hoje desembargadora-substituta da 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP). Mas a dra. Maria Lúcia revela, nesta entrevista exclusiva, que já nos tempos de faculdade almejava trilhar um caminho fora dos padrões. É que em vez de elaborar sentenças solitárias, ela sonhava construir com as partes em litígio uma solução mais satisfatória para seus conflitos lançando mão da conciliação e a mediação, processos consolidados no Judiciário de outros países.

Há pouco mais de duas décadas atuando na Justiça paulista, só nos últimos anos a dra. Maria Lúcia viu seu ideal transformar-se em realidade. Em 2004, ela colocou em operação no nosso maior fórum, o João Mendes Jr., situado na região central da capital paulista, o primeiro Setor de Conciliação do país. Com poucos meses de funcionamento, o projeto-piloto já apresentava resultados extraordinários – cerca de 70% dos conflitos extrajudiciais terminavam em acordos. O êxito da iniciativa foi imediatamente reconhecido com o Prêmio Innovare, concedido pelo Ministério da Justiça. Hoje o serviço é uma referência pela qualidade e agilidade no atendimento aos jurisdicionados. A filosofia de trabalho e o modus operandi da instância têm sido adotados por tribunais de outros estados da Federação.

“Um verdadeiro exército de pacificadores”

A cultura do litígio parece impregnada na sociedade contemporânea. Defender a pacificação de conflitos é um desafio hercúleo?

Maria Lúcia Pizzotti – Na minha opinião, processos compositivos de conflitos, como são a conciliação e a mediação, representam uma área promissora de atuação, cujos resultados são positivos e muito palpáveis. Porém, é uma área que exige a quebra de paradigmas. Vejamos um exemplo prático. Quando o estudante ingressa na faculdade de Direito recebe a orientação, se quer seguir a advocacia, que deve se empenhar ao máximo para vencer a causa pleiteada por seu patrocinado. Mas quem disse que ingressar com um novo processo na Justiça e obter vitória é a única ou a melhor forma de se estabelecer profissionalmente? Esse foco precisa ser mudado, pois há um leque de possibilidades que não podem passar ao largo dos que abraçam as carreiras jurídicas. É preciso ensinar para o bacharelando, que será o futuro juiz, promotor, defensor, advogado ou delegado, que em todos esses campos de trabalho, o último caminho a ser tomado deveria ser a judicialização do conflito.

As sociedades mais civilizadas sempre priorizaram a solução extrajudicial dos conflitos. Países menos desenvolvidos que o Brasil fazem hoje o mesmo, a exemplo da Índia e Argentina, que têm um sistema sólido de conciliação e mediação que precede a entrada no Judiciário. Hoje, nos cinco fóruns regionais da capital paulista diariamente são realizadas cerca de 200 audiências. Um verdadeiro exército de pacificadores, mais de uma centena de voluntários capacitados por nós, realizam atualmente esse trabalho.

“Nosso serviço teve grande ampliação”

Como foi o processo de criação do Setor de Conciliação no Tribunal de Justiça de São Paulo?

M.L.P. – Oficialmente começamos este trabalho, inédito no Judiciário brasileiro, em 30 de agosto de 2004. Muita gente me abriu portas e isso facilitou o trabalho de convencimento de alguns magistrados civilistas mais conservadores. Eu defendia que meu projeto de criar uma setor de conciliação tinha de começar dentro do TJSP, pois na cabeça do cidadão é aqui que ele encontra resposta para suas demandas. Internamente foram travados muitos debates e depois de vencidas as resistências, consegui uma área exclusiva para a fase piloto do Setor de Conciliação no 21º andar do Fórum Central João Mendes Jr. Para iniciar o trabalho, convidei dez juizes, lotados em cinco varas cíveis do João Mendes Jr. Todos nós tínhamos vocação para a composição de conflitos, éramos idealistas e estávamos dispostos a trabalhar de forma voluntária, sem qualquer beneficio extra, pois mantínhamos a rotina normal em nossas varas com o acúmulo da nova incumbência.

O que aconteceu depois?

M.L.P. – Em menos de um ano, entrou em vigor o Provimento CSM 953, publicado em 7 de julho de 2005, cujo texto ajudamos a elaborar. O documento disciplina a criação, instalação e funcionamento do Setor de Conciliação nas Comarcas e fóruns de todo o estado de São Paulo. Comemoramos muito a conquista, pois essa norma administrativa representava um aval do êxito e da necessidade de expansão de nosso trabalho que a presidência do TJSP passava a legitimar. Hoje alcançamos nas audiências realizadas diariamente aproximadamente 30% de acordos no âmbito judicial e entre 70% e 80% no extrajudicial. Nosso serviço teve grande ampliação. Está presente em mais de 150 comarcas paulistas. Os espaços onde são realizadas as audiências de conciliação não têm luxo, mas contam com uma estrutura adequado para receber as pessoas de forma acolhedora e com privacidade.

“A nova modalidade de serviço público”

O trabalho de composição que o Setor de Conciliação realiza difere em que medida do que o magistrado faz em sala de audiência?

M.L.P. – A diferença já começa na forma como o espaço físico é organizado para receber as pessoas interessadas em resolver seus conflitos e tudo está normatizado no referido Provimento, que tem linguagem simples e objetiva. Um Setor de Conciliação deve, necessariamente, ser instalado em local isolado da atividade jurisdicional. Nossas sessões de conciliação, por exemplo, não podem ser realizadas na mesma sala da audiência judicial ou ficar perto do cartório ou de qualquer outra rotina forense. Essa acomodação das pessoas faz toda a diferença. Para se ter uma ideia, sete anos atrás o projeto-piloto no Fórum João Mendes Jr. acontecia em uma sala pequena, mas muito acolhedora. Hoje temos mesas redondas para reunir as pessoas, mas naquela época contávamos apenas com as mesas de ângulo reto que são o padrão nos tribunais. Eu fazia questão de ressaltar aos meus colegas conciliadores, que como eu eram juízes togados, que naquelas sessões não havia lado esquerdo ou direito nem cabeceira. Todos que estavam ali reunidos estavam no mesmo nível para, juntos, tentar uma conciliação. Hoje, não são mais juízes togados e, sim, voluntários, com formação superior das mais diversas áreas, que capacitamos para realizar esse trabalho.

Como chegaram ao Setor de Conciliação os primeiras casos?

M.L.P. – Aqueles dez juízes que fizeram parte do projeto-piloto realizaram um levantamento dos processos em curso em suas varas para verificar quais estavam mais “maduros” para uma tentativa de conciliação. A maioria versava sobre questões de baixa complexidade e eram processos que estavam há um tempo razoável à espera da primeira audiência com o magistrado. Assim, realizamos as primeiras sessões no Setor de Conciliação convidando as partes por meio de carta para participar da nova modalidade de serviço público. As pessoas eram informadas de que tinham livre escolha e caso se negassem a comparecer à audiência, não sofreriam qualquer sanção no andamento de seus processos. O juiz que fazia a remessa do processo ao nosso setor não atuava na fase de conciliação. O processo também ficava suspenso no que se referia à contagem de prazos, sem qualquer prejuízo para as partes. Caso não vingasse a composição do conflito, o processo voltava para o juiz de origem. Tudo devidamente autorizado pelo Provimento interno.

“A magistratura é um ambiente bastante conservador”

A suspensão dos prazos processuais é benéfica ao réu. Esse fato não cria resistência na suposta vítima e seu advogado para participar de uma sessão no Setor de Conciliação?

M.L.P.– Muito importante sua colocação porque traz uma das perspectivas basilares da cultura do litígio. A conciliação rompe com esse paradigma. Vejamos. Se uma pessoa que se sente lesada prefere o caminho da ação judicial, ela necessariamente terá de dar inicio a um processo. Com ou sem razão, o réu precisará constituir um advogado rapidamente, que por sua vez terá pouco tempo para estudar o processo e elaborar a contestação. Assim, costumo afirmar de forma enfática nas palestras e cursos que profiro que, num piscar de olhos, o que era um conflito de proporções “normais” transforma-se em um litígio “enorme” porque adentrou a esfera judicial. Os advogados das partes, que podem até ser bons amigos em suas vida privadas, passam a ser ex adverso, inimigos no tribunal. As partes normalmente têm a carga de agressividade fortalecida ou aumentada. Nosso Provimento tem o condão de suspender todos esses efeitos nefastos quanto paralisa a contagem dos prazos processuais, como no caso em que permite intimar o réu sem citá-lo ou citá-lo deixando suspenso o prazo para a contestação até que se tente a conciliação. Portanto, o trabalho do Setor de Conciliação não favorece o réu, mas abre uma nova porta para as partes em conflito, a da composição, A boa noticia é que a maioria desses conflitos têm um ponto final nas audiências realizadas no Setor de Conciliação.

Quanto tempo durou o projeto-piloto?

M.L.P. – Em meados de 2005, portanto depois de poucos meses do lançamento do projeto-piloto, a iniciativa virou definitiva. Na época, o presidente do TJSP, desembargador Luiz Tambara, convocou uma reunião com todos os juízes da capital na qual pude explicar como funcionava o Setor de Conciliação. A receptividade foi extraordinária. Não critico aqueles que, dentro do tribunal, ofereceram resistência quando demos inicio ao Setor de Conciliação. O ser humano tem muito medo do novo e a magistratura é um ambiente bastante conservador.

“Professores e pedagogos encontram formas de mediar conflitos”

Esta resistência ao novo se mantém entre os operadores do direito?

M.L.P. – Costumo fazer alusão ao trabalho do médico, que tem uma relação de exclusividade com seu paciente. O magistrado não tem essa exclusividade em relação às partes do processo. Não era e ainda não é fácil convencer os advogados de que a conciliação é uma boa esfera de trabalho. Também não é fácil convencer os juízes a abrirem mão de seus processos porque isso, de alguma forma muito sutil, afeta sua autoestima. Para o magistrado é como se ele estivesse transferindo seu poder para alguém que não é da área jurídica. Outros também têm a visão equivocada que entregar um processo para a conciliação é o mesmo que assinar um atestado de incompetência. Os magistrados em geral só veem um caminho para o encerramento de um processo, a imposição de uma decisão judicial. Interessante notar que desde o inicio dos trabalhos do Setor de Conciliação houve uma adesão muito rápida do jurisdicionado a esse novo sistema. Não podemos perder de vista que o Fórum Cível João Mendes Jr. pertence ao maior tribunal do mundo, o TJSP, em cujas varas e câmaras são julgados cerca de 50% das ações em curso em nosso país. Tenho uma estratégia de raciocínio. Penso que se você vai começar algo novo, faça-o nas piores condições possíveis, pois se ali der certo, vai funcionar em qualquer outro lugar. Por isso nosso projeto tinha de começar dentro do Fórum Central e não em uma comarca-modelo, onde se poderia dizer que a iniciativa deu certo só por ter encontrado uma situação ideal.

Hoje, quem conduz as audiências no Setor de Conciliação do TJSP não são mais juízes togados, mas voluntários, cerca de 200 pessoas.

M.L.P.– Sempre me perguntam como consegui tantas pessoas qualificadas para formar esse verdadeiro exército de voluntários da paz. Foi graças ao espaço que a Escola Paulista da Magistratura me abriu[a Dra. Matia Lúcia é coordenadora da Área de Solução Alternativa de Lides da EPM]. Dentro da instituição já realizei vários cursos, com duração de dez semanas, onde os voluntários são capacitados. Em março deste ano abrimos 50 inscrições para o curso de conciliação de conflitos em família. Para nossa surpresa tivemos 400 inscritos. Só a Defensoria Pública solicitou 20 vagas. No Setor de Conciliação não admitimos o amadorismo. No nosso ambiente há, sim, o idealismo e pessoas camaradas e vocacionadas para o diálogo, mas como para qualquer trabalho elas são minuciosamente preparadas. Todos os candidatos aos nossos cursos têm nível superior. Eles também têm em comum o íntimo desejo de ampliar sua contribuição nas relações humanas conflituosas. Eles cedem um dia na semana, na quinzena ou no mês para conduzir audiências no Setor de Conciliação. Temos no nosso quadro pessoas das mais variadas áreas de atuação, a exemplo de um dentista que ficou encantado com as técnicas de conciliação. Médicos também se voluntariam e, juntos, temos refletido mais detidamente sobre a relação com os pacientes. Professores e pedagogos encontram no nosso curso formas de mediar os conflitos que enfrentam no ambiente escolar. Empresários aprimoram-se no trato dos consumidores e no mesmo sentido advogados e psicólogos na composição de conflitos familiares e em várias outras áreas.

“A necessidade de se colocar no lugar do outro”

O trabalho realizado pelo Setor de Conciliação alcança só os processos judiciais em andamento na 1ª e 2ª Instâncias do tribunal?

M.L.P. – Não, o Provimento 953 estabelece a possibilidade de se fazer também conciliação e mediação sem a existência de um processo. Essa foi a grande novidade que conseguimos emplacar. Há tempos esse tipo de apoio para a resolução de conflitos de ordem extrajudicial se faz de forma muito profissional nos EUA, Alemanha, França e em outras partes do mundo. Creio que este é o melhor serviço jurisdicional que podemos prestar à sociedade porque antes da judicialização da demanda no cível e família, as pessoas em conflito têm atualmente a oportunidade de se encontrar em um local especialmente preparado, com conciliadores capacitados para conduzir o diálogo entre elas.

A que a senhora atribui o êxito alcançado pelo movimento de conciliação, hoje uma bandeira do Conselho Nacional de Justiça?

M.L.P. – O jurisdicionado gosta de ser olhado no olho e verdadeiramente ouvido em seus pleitos. Os juízes, às vezes, ficam robotizados, encastelados. No Setor de Conciliação não há lugar para esse comportamento. Quem se propõe a compor conflitos precisa ter uma boa dose de sensibilidade.

Que papel tem a conciliação frente aos desafios do Judiciário brasileiro?

M.L.P. – Penso que nada é tão gratificante quanto a arte de conciliar conflitos, que leva a justiça para perto da população, com agilidade e soluções satisfatórias para todos. Uma sociedade que se conduz nessa direção colhe os frutos do genuíno sentido da cidadania. Abrir-se para o aprendizado de ouvir as razões do outro e de saber colocar as próprias razões é uma oportunidade que o Setor de Conciliação oferece a todos que o procuram. Nosso objetivo não é firmar acordos, mas proporcionar essa experiência. Se o acordo for firmado entre as partes, ótimo, porque o conflito de fato terminará ali e novas relações humanas poderão ter início. Se o acordo não for firmado, não encaramos este resultado como um insucesso, pois de uma coisa temos certeza a partir dos depoimentos dos próprios usuários do serviço. Sua conduta frente a situações de conflitos muda completamente. Percebem, por exemplo, a necessidade de se colocar no lugar do outro e que a maior parte dos conflitos que enfrentam frequentemente poderiam ser resolvidos com um sincero pedido de desculpas, algo que a decisão solitária de um magistrado ou de um acórdão nunca poderá fazer.

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[Simone Silva Jardim é jornalista e escritora]