Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Conflito leva o jornalismo para as ruas

Com a chegada do 7D, o propalado 7 de dezembro, data em que entra em vigor o artigo 161 da Lei de Meios, que pode pulverizar o patrimônio do maior grupo de comunicação da Argentina, o país parece vivenciar o momento em que mais se discute jornalismo em sua história. Longe de ser um assunto fácil como o futebol, outro dos mais populares, surpreende a abrangência do interesse e envolvimento dos argentinos na polêmica relacionada com a nova legislação. Ainda que naturalmente a maioria não esteja a par dos pormenores do dia a dia do ofício, todos parecem estar cada vez mais inteirados e curiosos sobre o processo de produção de notícias em um país onde a batalha entre a Presidência nacional e o grupo responsável pelo principal oligopólio de comunicação é exposta todos os dias na televisão, nas rádios e mesmo nos discursos oficiais de Cristina Kirchner.

O confronto se manifestou de maneira cada vez mais agressiva de ambos os lados, conforme se aproximava a data. Nos intervalos comerciais, era possível ver spots bem editados e recheados de ironia contra o lado adversário. Nos telejornais, os comentários opinativos não se restringiam aos analistas: apresentadores e repórteres não se furtavam de expor seu ponto de vista antes e depois, durante as notícias. O mesmo vale para locutores de rádio, o que desconstrói nas estações FM o estereótipo de puro entretenimento que se opõe ao caráter informativo das AM. Isso tudo sem mencionar programas exclusivamente dedicados a debater o jornalismo, que vão ao ar em canais pró-governo (6,7,8, todos os dias na TV Pública) e do Clarín (Periodismo para todos, aos domingos, no Trece, emissora pertencente ao grupo).

A guerra explícita não expôs apenas os bastidores da notícia – que incluem os processos de edição e de produção de discursos – nos jornais, revistas, canais de TV e estações de rádio. Também está à mostra o delicado jogo de forças entre diretores, editores e repórteres no que diz respeito a decisões editoriais e interesses econômicos dos grupos que estão por trás das manchetes.

Fontes diversas

Há dias, a TV Pública exibiu e discutiu o desconforto de uma entrevistadora da TVE, canal público do governo espanhol, quando o presidente do Equador, Rafael Correa, inverteu o jogo durante uma entrevista e lhe perguntou o que havia ocorrido com uma ex-colega de redação, Ana Pastor. A jornalista foi recentemente demitida do canal após uma série de episódios que provocaram irritação em seus entrevistados, muitos deles figuras do governo atual, acusado de contribuir e agravar um dos momentos de maior convulsão socioeconômica da história recente do país europeu. A agenda sobre a imprensa e os oligopólios da mídia argentina está tão quente, que até episódios fora do país são inseridos na discussão.

A revista de cultura e política Sudestada produziu duas edições especiais em meados deste ano sobre “O jornalismo na era K”. Nelas, foram entrevistadas figuras importantes do meio – a maioria pró-governo, há que se admitir – que, sem travas, expuseram entranhas éticas da profissão que próceres da imprensa no Brasil ainda preferem ocultar por trás de mitos como a imparcialidade, a busca pela verdade e a prestação de serviço público.

Alguns exemplos retratam o que muita gente já sabe nas ruas de Buenos Aires:

>> “O confronto entre o governo e o Clarín significou uma ruptura cultural e uma forma de interpelar a profissão. As pessoas começaram a perguntar sobre o que é ser jornalista, quem ele representa, a que tipo de deveres deve responder. A visão binária que supunha que o jornalista era a voz da sociedade civil frente a um único poder – o do governo – agora é mais complexa. Hoje o poder está do outro lado e isso desorientou o jornalismo a ponto de que a própria profissão está em questão.” (Dante Palma, filósofo, cientista político, escritor e professor da Universidad de San Martín)

>> “O jornalista não é uma pessoa cética, desprovida de dramas, posturas e erros (…). Que eu saiba, os jornalistas sempre tomaram posição. Nossa conjuntura política não pode exigir a nenhum jornalista que não tome posição. Porque ele já tem posição, sempre teve, e pensar o contrário é uma ingenuidade.” (López Echague, jornalista e escritor)

O debate sobre o jornalismo está tão difundido que no dia a dia das ruas portenhas não é difícil ouvir algo sobre o assunto, mesmo en pasant, ainda que não seja o centro da conversa. Em Buenos Aires, ao se tomar um táxi, conversar com um desconhecido no ônibus ou comprar um pão na confeitaria, não é nada raro que, em algum momento, seu interlocutor mencione, direta ou indiretamente, o jornais La Nación (oposição) ou o Página/12 (pró-governo), ou a última edição de Periodismo para todos. Isso vale também para muitos pueblitos,de poucos milhares de habitantes, mesmo em lugares distantes da Capital Federal e do epicentro das decisões institucionais do país.

Sempre é possível encontrar pessoas envolvidas com o tema ou que, no mínimo, tenham uma opinião sobre ele. Isso não quer dizer que todos tenham se tornado experts no assunto ou que a queda de braço entre o kirchnerismo e o Clarín interesse a todos os argentinos. No entanto, ao menos a questão ajudou a abrir um pouco a caixa-preta da produção de conteúdo nas redações do país.

 Tudo se tornou tão público e claro na Argentina que todos sabem quem está de qual lado, derrubando antigas e hipócritas máximas jornalísticas, como a da neutralidade. O 7D marcado pelo governo (mas, na verdade, resultado de uma luta de vários atores sociais que começou após o fim da última ditadura, já que a lei que regulava os meios audiovisuais fora promulgada pelos militares, em 1980) contribuiu para que a maioria tivesse que escolher um lado, ainda que não esteja totalmente de acordo com os métodos e discursos por ele empregados ou com os resultados alcançados pelo governo ou pela oposição.

Escolher um lado político não significa necessariamente acreditar que um veículo que o apoia seja ideal ou revele toda a verdade. Embora muitos “não-especialistas” até acreditem nisso, outros tantos nem sempre estão totalmente de acordo com o dizem estrelas dos principais canais do país, como Jorge Lanata (do Trece)ou debatedores do programa oficialista 6,7,8 (TV Pública).

O lado negativo da situação é que o embate fez muitos meios prejudicarem a informação, principal matéria-prima do jornalismo. O resultado são declarações distorcidas, notícias intencionalmente incompletas e a ausência de um dos pressupostos básicos do ofício: escutar os dois lados. Logo, não é raro encontrar matérias que não estão preocupadas em informar, mas em apresentar um olhar deliberadamente alterado da realidade. De outra parte, felizmente vivemos em uma época em que o progresso da tecnologia coloca à disposição múltiplas fontes de informação, possibilitando a busca por outras vozes que representem suas ideias ou que, ao menos, possam contribuir com mais conteúdo para ajudar a formar opiniões próprias.

Passo importante

O olhar crítico em relação ao jornalismo para muitos se tornou um exercício de cidadania na Argentina, neste momento tão agudo da política do país. Por isso, não se justificam quaisquer críticas ao cerceamento da liberdade de expressão. A imprensa conta com um nível tão amplo de abertura que permite até manifestação de ideias que vão além dos melhores padrões do bom senso e do respeito. Assim como são muitos os exemplos de legitimidade de opinião, tampouco são escassas as manifestações de falta de civilidade e de respeito.

Somente em um país onde a liberdade de expressão não tem limites, uma publicação semanal do alcance da revista Notícias (oposição) pode ilustrar uma capa com um desenho da presidenta do país e o título “O gozo de Cristina”, chamando para uma matéria sobre a suposta erotização do poder atribuída à máxima representante institucional da Argentina. O mesmo vale para o diário governista Página/12, que estampou em sua primeira página uma foto do rosto do chefe de Governo de Buenos Aires (prefeito), Mauricio Macri, com a manchete em letras garrafais: “Estuprador serial”. A falta de limites ocorreu no dia seguinte ao veto de Macri, opositor ao governo de Cristina, à lei que regulamenta o aborto não punível. A atitude do político é inquestionavelmente conservadora, mas alicerçada na legitimidade que o cargo lhe dá.

É possível falar em cerco à liberdade de expressão na Argentina onde, muitas vezes, como no Brasil, a liberdade de imprensa se confunde com a liberdade de empresa? Ou quando a intenção é manifestar algo além de uma opinião, como uma agressão gratuita, uma difamação? Ou, ainda, quando há mais preocupação com os interesses políticos e econômicos das empresas de comunicação do que em “dar voz aos que não têm voz” (triste clichê que ainda ouvimos pelas redações em pleno século 21)?

Na semana decisiva do 7D, ainda há muitas dúvidas e pontos nebulosos sobre as novas concessões para que vários meios entrem em operação e outros legalizem sua situação. Ainda faltam esclarecer e realizar incontáveis ajustes legais, explicar por que outros grandes grupos de comunicação não estão tanto na mira do governo quanto o Clarín, e revelar ainda mais as entranhas econômicas dos negócios relacionados com a imprensa. Ou seja: é longo o caminho até o fim dos oligopólios midiáticos e da verdadeira democratização da informação. Mas as conquistas alcançadas por grande parte dos argentinos, com lucidez, conhecimento e interesse sobre a informação que consomem, já é um passo que coloca este país de inflação alta, presidenta arrogante e de supostas ameaças à liberdade de imprensa à frente de outros mais desenvolvidos, pelo menos no que diz respeito à consciência política e cidadã.

Leia também

As origens da batalha entre o Clarín e o governo argentino – Sylvia Colombo

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[Maria Martha Bruno é jornalista, em Buenos Aires]