Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

CPMF, provisória desde o século passado

Vamos dar às coisas os nomes que elas têm? Parece que progredimos. A mídia já trocou abalo por terremoto, por exemplo.

O nome correto da CPMF deveria ser Contribuição Permanente sobre a Movimentação Financeira. Pois, no Brasil, provisório é sinônimo de permanente.

Faz muitos anos que esta palavra passou a significar o contrário do que significava no berço, quando designava uma contribuição provisória, isto é, passageira.

Passageiros são apenas os contribuintes, alguns dos quais, e dos que mais precisavam da saúde pública, morreram antes que a CPMF fosse revogada, ainda que tenha sido criada na década de 1990 para durar apenas um ano e com o fim exclusivo de que seus recursos fossem integralmente aplicados à saúde. A saúde, que deveria ser permanente, ficou provisória para milhões de brasileiros. Permanente é o atendimento, no mínimo insuficiente, na saúde pública.

A mãe da palavra ‘provisório’

O caráter supostamente provisório da CPMF nos acompanha há muito tempo com o significado de permanente. Não nos esqueçamos de que a própria República começou com um governo provisório.

A palavra ‘provisório’ chegou à língua portuguesa por ínvios caminhos e, na prática, mudou de significado. Veio do latim medieval provisus, radicado no verbo providere – ver antes, precaver-se, preparar-se.

O significado de transitório estava evidenciado nas lides guerreiras romanas. As provisões de trigo eram provisórias, não apenas porque logo consumidas, mas também porque as guerras deveriam ser provisórias para que permanente fosse a pax romana.

A mãe comum da palavra provisório/a é uma raiz indo-européia, weid, ver. Mas fez escala no francês provisoire, provisório, ligado a proviseur, provedor, diretor de cursos na Sorbonne. O proviseur estava encarregado de fazer provision, provisão, como hoje aparece escrito até nos extratos bancários: ‘provisão para a CPMF’.

Patrimônio insaqueável

Na mídia, procuro escrever sobre letras considerando a língua portuguesa como um automóvel. Para dirigi-lo, o motorista não precisa saber mecânica ou eletrônica. Precisa ser um motorista bem-educado, que respeita os sinais de trânsito e não atropela os pedestres. Se o carro tiver problemas mecânicos ou eletrônicos, o condutor vai a um especialista. Ele não precisa e nem pode consertar seu automóvel. De nada adiantará tampouco o mecânico explicar-lhe tudo tintim por tintim o que se passa, se não fizer os reparos. Outra metáfora é a do médico, a quem devemos obedecer quando nos faz suas prescrições, que têm o fim de consertar-nos. Ou a do advogado, que nos garante bens preciosos de nossa existência, como a liberdade, por exemplo.

Mas, ah, que caminho perigoso este! Se você explica direitinho, está sendo pernóstico, exibindo um saber desnecessário. Afinal, para que saber, se hoje no Brasil vale a esperteza, freqüentemente confundida com inteligência?

O caso é que ninguém pode dar um golpe cultural. Fica-se rico de um dia para outro, mas se o golpista ou sortudo era pobre burro, continua rico burro. Já o inverso é mais reconfortante: o saber que tem, é seu único patrimônio insaqueável.

Pseudônimo permanente

Um dos melhores exemplos disso é brasileiro: o de Graciliano Ramos que, no fundo do cárcere, escreve Memórias do Cárcere, sua melhor intervenção, sua grande resposta àqueles que o perseguiram e tanto prejudicaram o Brasil. Perdeu tudo, inclusive a liberdade, mas não perdeu o que melhor sabia fazer: escrever.

Não esperemos das intervenções parlamentares atuais o nível que encontramos nos parlamentos do passado, no Brasil e no exterior, pois parece que o rebaixamento dos padrões é assustador também em outras paragens.

De todo modo, quem fez o primeiro registro da palavra ‘provisório’ na língua portuguesa foi um parlamentar do século 19, que, aliás, tornou permanente o pseudônimo Almeida Garrett, adotado por ele e por sua família, depois que João Baptista da Silva Leitão, seu verdadeiro nome, foi considerado um autor materialista, ateu e imoral, pechas que lhe foram atribuídas provisoriamente após a publicação de O Retrato de Vênus, que lhe valeu um processo judicial.

Erro na formulação

Provisórios tornaram-se seus detratores e acusadores. O acusado é autor permanente e glória das literaturas de língua portuguesa.

Se os recursos da CPMF forem bem aplicados, teremos muitos leitores para Almeida Garrett e para tantos outros escritores que ninguém lê nem cita. Deixando-os escreverem em paz, porém, já é um bom começo e para muitos é tudo o que sempre desejaram.

Há aqueles que se preocupam em produzir, além de livros, leitores. Não para si mesmos, mas para que tirem o Brasil dos problemas permanentes, sempre tidos como provisórios.

Mas, se começamos errando na formulação dos problemas, como os resolveremos?

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br