Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Democracia ameaçada

O Brasil, historicamente, é um país no qual as elites se apoderam do Estado e perpetram toda a sorte de pilhagem dos bens públicos. Muitos sabem que boa parte dos ricos dos nossos dias, aquele 1% da população que detém mais de 70% do Produto Interno Bruto Brasileiro (IBGE, 2004), conseguiram essa façanha à custa do Estado.

O povo, cada vez mais miserável e excluído dos direitos de cidadania, com o pires na mão, sempre serviu de massa de manobra desses senhores feudais de antanho e da atualidade. José Murilo de Carvalho em seu excelente livro Cidadania no Brasil, o longo caminho (Civilização Brasileira, 2001), nos mostra, de forma clara e precisa, como esse processo foi-se constituindo na história de nosso país.

Porém, a Constituição Federal de 1988, entre outros pontos positivos, cuidou de devolver aos brasileiros os instrumentos e mecanismos institucionais de participação social, como o controle externo sobre a atividade do Estado. Afinal, num contexto (verdadeiramente) democrático, a sociedade deve participar do planejamento, da fiscalização, da avaliação e do monitoramento das ações dos agentes públicos. Com nossa Carta Magna, o ideal democrático da autonomia individual e dos grupos abarca também instituições do Estado e da sociedade civil. Uma das maiores conquistas de 1988 foi a autonomia do Ministério Público em todas as instâncias, federais e estaduais.

Antes de mais nada, devo dizer que não tenho procuração para defender o Ministério Público e não sou amigo ou parente de nenhum promotor ou procurador. Como cidadão, reconheço as deficiências desse órgão público (também formado em boa parte por segmentos da elite brasileira e que, muitas vezes, através de alguns de seus membros, incorpora certo messianismo), mas conheço sua importância para que a democracia verdadeira (não essa quase que meramente procedimental que conhecemos) possa se tornar realidade nestas plagas tupiniquins.

Com o poder determinado pela Carta de 88, o Ministério Público conseguiu restaurar em parte a confiança dos cidadãos no Estado. O combate à corrupção nas administrações públicas e privadas, a atenção na defesa da cidadania nos campos econômico, ecológico, dos direitos atribuídos às minorias, enfim, em todos os ângulos da vida nacional, fizeram do Ministério Público um dos sustentáculos do Estado democrático de Direito.

Porém, o Ministério Público tem incomodado muita gente poderosa: políticos e agentes públicos corruptos, mafiosos que comandam organizações criminosas em nosso país, quadrilhas especializadas em fraudar licitações e corromper políticos, policiais, fiscais etc.; enfim, o verdadeiro crime organizado que campeia pelo Brasil afora, desafiando a todos e sem que ninguém faça nada está se articulando para providenciar um ‘cala-boca’ ao Ministério Público. Por falar em cala-boca, justamente neste ano em que rememoramos os 40 anos do início da ditadura militar, parece que esse expediente de cerceamento da liberdade de expressão anda em moda no Brasil. Recentemente, jornalistas como o irrepreensível Alberto Dines, um dos pilares do jornalismo brasileiro, e Jorge Kajuru, que ancorava programa jornalístico de esporte na TV Bandeirantes, foram sumariamente demitidos por criticar políticos.

Momento delicado

Mas voltando ao nosso assunto: a ação do Ministério Público colocou na mira de alguns marginais do colarinho branco as conquistas alcançadas com o limiar da Constituição de 1988 e que agora estão ameaçadas. Medidas contrárias ao desempenho essencial do múnus que define a ação do Ministério Público estão, inicialmente na surdina e agora bem à frente dos nossos olhos, sendo preparadas nos três poderes da República.

A situação é tão vergonhosa que a Magistrats Européens pour la Démocratie et les Libertés (Medel), entidade que congrega juízes e promotores de Justiça da Europa, demonstrou em recente publicação sua preocupação com a ameaça de retirada dos poderes de investigação do Ministério Público brasileiro em formal manifestação de apoio à instituição.

Em carta enviada à Associação Movimento do Ministério Público Democrático, o presidente da Medel, Ignazio Patrone, adverte que a medida pode caracterizar ofensa a preceito aprovado no 8º Congresso da ONU para a Prevenção de Crime e Tratamento aos Infratores, realizado em Cuba. Naquela ocasião, a ONU reconheceu a participação direta do Ministério Público na condução das investigações relacionadas aos crimes cometidos por agentes públicos como garantia à manutenção do Estado Democrático de Direito.

Tanto a chamada ‘lei da mordaça’ que engessa a ação do Ministério Público e vira e mexe volta à pauta do Congresso Nacional quanto o julgamento que está para se realizar no Supremo Tribunal Federal, impedindo o Ministério Público da ação investigativa (limitando essa ação às polícias que, como sabemos, dirigidas pelos Executivos estaduais –cheios de interesses muitas vezes duvidosos e escusos – e, em boa parte, minadas pela corrupção, e que, portanto, não têm condições nem objetivas e muito menos morais para fazê-lo à altura dos ditames democráticos) representam grave ameaça à incipiente democracia brasileira.

Onde estão os organismos da sociedade civil organizada, a imprensa, as universidades e as igrejas que se omitem neste delicado momento da vida nacional? Será que os ecos isolados de alguns cidadãos serão ouvidos pelas elites incomodadas com a ação do Ministério Público? Resta-nos esperar que a impunidade não prevaleça, mais uma vez, em nosso país.

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Filósofo e comunicólogo, especialista em estudos de criminalidade e segurança pública, mestre em Administração Pública, professor da PUC-Minas e pesquisador do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG