Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Denúncia, nunca mais

Foi cancelada a indenização de Dona Vitória, segundo notícias divulgadas terça-feira. Quem não se lembra mais dela, a Dona Vitória, cujo nome verdadeiro ainda não se sabe? É aquela velhinha de 81 anos que filmou, durante dois anos, a movimentação de traficantes de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro. Por causa de seus vídeos, 32 pessoas foram presas, entre elas, nove policiais militares. [Ver nota do Estado de S.Paulo (31/7/06) e a matéria do Fantástico (5/2/06)]

Isso aconteceu em 2005. Ela foi manchete de vários jornais, tema de reportagens premiadas e programas internacionais. Ganhou na Justiça o direito de ser indenizada por danos morais provocado por reportagens e pela omissão do Estado do Rio. Nada mais justo. Devido àquela denúncia, Dona Vitória teve que sair de sua casinha no morro, onde morava há muitos anos. Ingressou no programa de proteção a testemunhas e agora vive ninguém quem sabe onde. Segundo os desembargadores da 16ª Câmara Cível, que alteraram a decisão da primeira instância, ‘foi a própria aposentada quem se colocou em risco ao registrar imagens do tráfico e, por isso, tem de assumir as conseqüências do ato’.

Recado

Era só o que faltava num país em que a corrupção corre solta nas veias dos Três Poderes. Espera-se que a imprensa, a mesma que a acolheu no momento de glória, dê destaque especial a esta notícia. Que as pessoas saiam às ruas em defesa da pobre velhinha, que ao denunciar o que é errado ficou só, sem casa, sem proteção de testemunha, sem apoio, sem holofotes.

Atitudes assim desencorajam qualquer pessoa a denunciar o que há de errado nesta cidade, neste país, neste mundo. Para que denunciar se posso ser identificado? E se descobrirem que fui eu? Primeiro todos aplaudirão seu heroísmo, sua coragem, cidadania. Mas, quando as luzes se apagarem e o povo já tiver se esquecido do feito épico, os bandidos, aqueles danados que têm memória de elefante, virão cobrar sua vingança. E, adivinhe, você não terá para onde correr. Estará abandonado à sua própria sorte, à sorte de um miserável que não tem amigos influentes que possam comprar sua proteção.

Este é o recado aos cidadãos brasileiros de bem, que querem o bem: não se metam onde não são chamados! Isso é muito claro. Especialmente no Brasil. Que pena.

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A culpa é da vítima

(Carlos Brickmann, copyright Diário do Grande ABC, 2/8, coluna ‘Panorama Político’)

Lembra daquela senhora já velhinha que, por trás da cortina de seu apartamento de Copacabana, no Rio, filmou todo o trabalho dos traficantes?

Essa senhora teve que deixar seu apartamento, em que morava há 38 anos, já que ali não seria difícil identificá-la. Teve de esconder seu nome, e é hoje chamada pelo apelido de Dona Vitória. Seu trabalho rendeu 33 horas de gravação da atividade do tráfico e levou 34 pessoas à prisão, entre elas nove policiais – o que talvez explique por que ela teve de fazer o trabalho que a Polícia não fazia.

Esta senhora cumpriu o seu dever, e com isso perdeu seu ambiente, seus vizinhos, seus amigos. E pediu uma indenização ao Estado: as perdas que teve foram provocadas pela falta de ação do Poder Público, que deveria ter policiado as ruas para evitar que, à vista de todos, os traficantes exercessem seu ofício.

Dona Vitória não pediu nada de excessivo: 500 salários mínimos, algo como R$ 175 mil, por danos morais e materiais. É barato; é um preço baixo que a sociedade paga para se livrar de tantos bandidos, para limpar (ao menos um pouco) a Polícia. E perdeu: de acordo com a 16ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio, ‘o pagamento de indenização a Dona Vitória iria estimular outras vítimas da violência a entrar na Justiça com pedidos semelhantes’. Dona Vitória só não teve de pagar as custas porque lhe havia sido concedida a gratuidade do processo.

O recado está dado: que ninguém se meta a besta denunciando crimes. Pobre Dona Vitória: ela é do tempo em que honestidade era um valor a ser preservado.

Bagaço

A coragem de Dona Vitória permitiu que o Governo prendesse os bandidos e deu excelentes imagens às emissoras de TV. Todos ganharam – menos ela.

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Jornalista