Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Descumprindo a lei para cercear a liberdade

Foi desmascarado um escândalo vergonhoso cujo principal protagonista foi o governo do estado de São Paulo. A mídia mostrou que um livro de geografia distribuído pelo governo de São Paulo como material de apoio para os alunos da 6ª série do ensino fundamental da rede pública estadual continha erros no mapa da América do Sul. No mapa incorreto, Bolívia e Paraguai são um país só e existem dois Paraguais – inclusive um deles aparece embaixo do Rio Grande do Sul, onde deveria constar o Uruguai (ver aqui).

Ou seja, um aluno que seguir à risca as coordenadas geográficas desse livro vai misturar o Paraguai com a Bolívia; vai literalmente riscar o Uruguai do mapa; abrir portos marítimos de importação no Paraguai (país sem acesso ao mar) e, conseqüentemente, ocasionar a quebra econômica do porto de Paranaguá (no Paraná), pois é de lá que sai a maior parte das exportações paraguaias e de lá que o Paraguai recebe muitas das suas importações, mediante tratados comerciais de longa data.

Infelizmente, a mídia ainda é muito simpática às políticas autoritárias, tanto do governo estadual, quanto de muitas prefeituras. A imprensa apresentou esse problema isolado, quando deveria fazer uma análise profunda de todo o processo que ainda vigora. As crianças não podem se manifestar e, no máximo, vão ficar sem aprender e se tornarem incapazes de alcançar a cidadania com a baixa qualidade da educação que lhes propõe o estado de São Paulo e o país.

Professores ficam engessados

Há muitas razões para preocupação:

1. Ao fazer isso, o governo do estado está afrontando grosseiramente o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Nesse programa, reúnem-se grandes especialistas das várias matérias e pedagogos que fazem a triagem dos livros didáticos. Embora o PNLD não seja perfeito, ele confere, sem dúvida, qualidade razoável aos livros que são postos sob seu crivo. O governo de São Paulo, por razões completamente político-eleitoreiras, ‘inventou’ esses livrinhos e teve um gasto imenso para prepará-los. Mas o crivo de São Paulo é puramente político e os livrinhos têm qualidade infinitamente inferior à dos livros analisados e aprovados pelo PNLD.

Os livros do estado de São Paulo se baseiam em propostas pedagógicas (consideradas por muitos retrógradas) ultrapassadas, usadas nos anos 80, enquanto o PNLD busca as propostas mais ousadas das décadas de 90 e da atualidade.

2. Normalmente, até 2007, os professores das escolas se reuniam e escolhiam dentre os vários livros didáticos aprovados pelo PNLD. Mas, já naquele tempo, aconteciam anomalias. Isso porque as escolas tinham direito a duas escolhas por matéria e muitas vezes recebiam livros diferentes tanto da dita primeira opção como da segunda.

3. O planejamento anual dos professores já vem enlatado e escrito pelo estado. Pois, ao seguirem as cartilhas enviadas pelo governo, eles são bloqueados em seu processo de criação. Eles ficam literalmente engessados.

Governo ataca indiscriminadamente

4. Nesse processo de criação de cartilhas tenta-se impor o que, como e quando ensinar as matérias; há grosserias como a da Geografia, no livro de Português das quintas séries exige-se dos alunos que conheçam os verbos do modo indicativo e subjuntivo no primeiro bimestre, quando eles ainda nem sabem as noções básicas das palavras que nomeiam os seres e sentimentos (substantivos), as qualificadoras (adjetivos) e os pronomes. Logo, além de descumprirem o PNLD, os livros do governo descumprem o bom senso pedagógico.

5. Esses livrinhos foram desenvolvidos sem o aval da classe (os professores). Na verdade, foi perguntado no ano passado para os professores sobre a qualidade desse material e todos o ‘aprovaram’. Mas a aprovação, com certeza, foi feita por temores políticos, pois isso foi feito via computador, com perguntas que já traziam respostas semi-prontas que não permitiam argumentação ou contestação.

Você pode estar perguntando: o governo de São Paulo fez isso? Por quê?

Já apresentamos um motivo: fazer propaganda eleitoral com os pais dos alunos, tentando mostrar que está fazendo um trabalho sério, distribuindo material para os educandos. A propaganda eleitoral também é feita quando se tenta criticar a qualificação do magistério. É inegável que essa qualificação está abaixo do esperado, mas generalizar o problema sem ter programas sérios de bolsa-mestrado, aumento de salário e redução da carga de trabalho (o professor precisa de tempo para o preparo das aulas) é um erro. O governo simplesmente é contra tudo isso, solapa quaisquer iniciativas dessas e também foi contra o piso salarial do magistério planejado pelo MEC. Então, numa terra de miseráveis, ele tenta atacar indiscriminadamente todos os professores como desqualificados.

Desperdício de verbas e conchavos

Mas aí entra o sexto ingrediente dessa confusão que creio ser tão real, e até mais real do que os outros:

6. Há conchavos políticos tanto nos Estados como nas prefeituras que, mediante a produção, confecção, distribuição de materiais didáticos de ‘produção própria e independente’, satisfazem interesses que vão contra o pensamento democrático. Comumente, esses livrinhos (seja do estado ou das prefeituras que os fazem) são elaborados por pedagogos e empresas contratados pelo governo, seguem a cartilha do governo, inclusive na apresentação de ideias políticas (filtrando-se para fora do material ideias que podem soar mal para o governo em pauta). E ocorrem superfaturamentos nos processos de produção, confecção, distribuição de materiais didáticos de ‘produção própria e independente’. Geralmente, esses programas são desenvolvidos a portas fechadas, sem a participação maciça dos professores da cidade ou do estado; têm uma pauta politiqueira que despreza muitos dos sérios fatores pedagógicos.

Agora, supondo que não houve superfaturamento no caso do estado de São Paulo: o próprio gasto bimestral com os livrinhos (pois eles serão enviados a cada dois meses às escolas) é um gasto excessivo, considerando as grandes carências da rede estadual, que necessita de investimentos em bibliotecas, salários etc. Esses recursos e investimentos seriam, sem dúvida, mais necessários do que os livrinhos.

Não tenha dúvida: sempre que o Estado rejeita seu papel de gerenciar a educação com suas muitas variantes regionais, permitindo as suas mais diferentes expressões, mas tenta controlar de forma não transparente (como ocorre em SP) a educação, há:

** desvio de verbas que poderiam ser melhor usadas;

** desperdício de verbas que deveriam ser economizadas para atender às muitas demandas desse segmento;

** fortalecimento dos conchavos políticos e antidemocráticos;

** perdas de conteúdos para a formação de cidadãos críticos e capazes de crescer em sociedade.

Enquanto isso, crescem livremente os educados e selvagens tigres da Ásia, onde a educação é um assunto gerenciado, não conspurcado, controlado, manipulado ou ditado por um estado ditador.

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Professor, Campinas, SP