Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Direitos humanos contra o preconceito

Em 2001, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira universidade a implantar o sistema de cotas para viabilizar o acesso ao ensino superior através de seu exame vestibular. Nesses oito anos, dezenas de outras universidades públicas e privadas alteraram seus exames seletivos para incorporar os critérios raciais – em muitos casos aliados a critérios de renda – no acesso à universidade, permitindo incorporar efetivamente um maior número de estudantes negros ao ensino superior.

Em 2004, por meio da criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), o governo federal iniciou um grande programa de inclusão de estudantes negros ao ensino superior, que concede bolsas de estudo a alunos negros, indígenas e de menor renda – entre outros grupos – que ingressem em instituições de ensino superior privadas. É já comprovado que o Prouni resultou em inclusão numérica significativa de estudantes que há bem pouco tempo talvez nem considerassem minimamente factível a possibilidade de ingressar no ensino superior.

Quem acompanha a cobertura dos grandes jornais sabe que a trinca Folha de S.Paulo, O Globo e Estado de S.Paulo é contra as chamadas ações afirmativas. E isto está claramente expresso em seus editoriais. A liberdade de opinião exercida pelos jornais é legítima e não há reparos a fazer quanto a isto – afinal, vivemos em uma sociedade democrática. E sabe também que se busca demonizar as ações afirmativas como incitadoras de um ‘racismo às avessas’. Iniciativa, no mínimo, falaciosa.

Resultados decepcionantes

É bem conhecida a dificuldade dos estudantes negros ingressarem no ensino superior, principalmente nas universidades públicas. E não se trata de questões falaciosas como inteligência inferior ou mesmo desinteresse para com a própria educação e o aperfeiçoamento profissional. É, sim, resultante da colheita de muitas desvantagens que vitimaram estes indivíduos ao longo de sua vida. Existe aqui um componente histórico (e grave) de exclusão social. A aplicação de uma política de cotas para universidades públicas pode ser entendida como sinalização bastante positiva para alterar este quadro. Por outro lado defender a inutilidade das cotas ou simplesmente sua extinção significa o mesmo que apostar na manutenção do status quo: pessoas historicamente marginalizadas, excluídas, continuarão a não ter acesso a escolas de qualidade e, em conseqüência, estarão sumariamente excluídas de empregos com boa remuneração.

Não vou cair nessa cilada de tratar as ações afirmativas apenas pelo ângulo das cotas de negros nas universidades etc., etc. Resolvi refletir um pouco mais sobre o racismo, o preconceito racial. E também a intolerância daqueles que se abrigam na marquise da academia como forma de se resguardar de seus próprios sentimentos de superioridade. Algumas vezes racial, outras acadêmicas.

Antes de tudo devemos ter em consideração que a ciência tem buscado exaustivamente definir as raças que compõem nossa espécie. Após reconhecer que medir o diâmetro de crâneos, braços, pés constituíam trabalho muito complicado para a definição de uma raça, com o progresso da genética os antropólogos observaram que através de algumas gotas de sangue era possível referenciar as coleções de genes, mas chegaram à conclusão que existem quatro grupos sanguíneos e esses quatro grupos se encontram em todo e qualquer grupo racial.

Posteriormente foram definidos outros sistemas: Rhesus, MNSs, Duffy, Diego, GM e ainda o HL-A. Utilizando todos esses sistemas, os cientistas chegaram à conclusão que devido à multiplicidade de informações recolhidas a classificação em grupos homogêneos tornava-se extremamente difícil. A opção então recai para o método estatístico, segundo os genes que são específicos de cada grupo. Chegamos ao ponto: sendo a cor negra característica da raça negra, buscaram-se então os genes ‘marcadores’ responsáveis pela cor da pele. Os resultados foram também decepcionantes: os genes não são específicos a uma ou duas raças e as conclusões apontaram para o fato de que todas as populações têm mais ou menos os mesmos genes.

Diversidade humana

Chegam então os biólogos e imaginam uma medida chamada ‘distância genética’. Esta distância é tanto maior quanto maior for a diferença entre os patrimônios genéticos de duas ou mais populações comparadas. A conclusão é clara: a humanidade não pode ser classificada em raças pela simples comparação dos patrimônios genéticos, chegando François Jacob, prêmio Nobel de Biologia, a afirmar categoricamente: ‘O conceito de raça é, para nossa espécie, não operacional’. Jacob não fica solitário nessa declaração. O duplamente premiado com o Nobel de Medicina e de Psicologia Jean Dausset declara que ‘a idéia de `raça pura´ é um contra-senso biológico.’

Se considerarmos a afirmação de muitos expoentes da ciência, de que não existem raças, no entanto, temos que conviver com este pernicioso defeito de nossa civilização: o racismo existe! É patético então encontrar alguém racista, se não existem meios científicos que elabore a distinção de raças? O geneticista e escritor francês Albert Jacquard afirma que ‘na verdade, temos medo do desconhecido, de encontrar alguém que não seja nosso semelhante, este medo, por sua vez, transforma-se em agressividade e ódio e assim nasce o racismo’. Fruto do medo e do ódio aos que achamos ser nossos ‘dessemelhantes’. E a cada vitória do medo e do ódio corresponde uma derrota para a Humanidade como um todo. Aliás, é bom reter a lição do físico Albert Einstein que, ao preencher o formulário da imigração nos EUA, escreveu ‘raça humana’.

É notório o reconhecimento de que as questões dos testes de QI supervalorizavam o conhecimento científico, prático, objetivo, bem ao gosto do atual estágio da nossa civilização ocidental, o que nos remete a outro questionamento: como seriam os resultados desses testes se aplicados a culturas guiadas por padrões espirituais, místicos, esotéricos, tais como a cultura oriental ou islâmica? E, depois, seria justificável e mesmo razoável considerar superior uma raça unicamente pelos números obtidos por alguns de seus integrantes em um Teste de Inteligência?

Nesse caso, seria bom para a raça humana – a única raça realmente existente – que alguém se sinta superior a outro ser humano graças aos números que mensurem sua inteligência? O que pode levar alguém a ser superior, parece-me razoável, seria a capacidade desse alguém levar avante o progresso da civilização e possuir uma conduta digna e louvável, capaz de não apenas tolerar mas, antes, saber apreciar a imensa diversidade humana e não se sentir superior devido à cor da pele ou aos contornos do mapa de sua engenharia genética.

Conflitos étnicos

Sei que é perigoso levantar a bandeira da inexistência de raças. É que enquanto foi bom para a classe dominante a existência bem fornida de raças era um contra-senso total dizer que essas não passavam de uma criação mental. É que durante muitos séculos o poder do branco se firmava no reconhecimento falacioso de que podiam dominar, liderar, comandar as massas da humanidade porque, no final das contas, os povos dominados ‘pertenciam a raças inferiores’.

Sei que parece oportunismo histórico invocar a não-existência de raças e apenas a existência de uma raça, a humana, principalmente quando me dou conta que não poderia existir um melhor momento no Brasil para que se começasse a liquidar a pesada fatura que contraímos com os povos afrodescendentes. Não teremos melhor ocasião para reforçar as ações afirmativas do que hoje, agora. É como querer mudar as regras do jogo apenas quando o time favorito em muitos campeonatos começa a sentir cheiro de queimado, cheiro de derrota. E isso não é justo. Nem pode ser justo.

Boa parte da polêmica levantada pela manutenção ou extinção das ações afirmativas no Brasil cresceu em força e amplitude devido ao cabo de força estendido entre militantes racistas, francamente em baixa nestes anos iniciais do século 21, e essa crescente legião de pessoas de boa vontade que concebem a visão de um mundo unido, onde cada cidadão possa exercitar o novo paradigma da cidadania mundial. O contraste entre essas duas forças é que a humanidade foi violentada por muito longo tempo por aceitar ou se omitir ante aqueles que pregavam os falaciosos dogmas de uma pretensa pureza racial.

Os gritos e gemidos, os ossos alquebrados de seis milhões de judeus, há pouco mais de cinco décadas, os massacres na Namíbia, Sudão ou Soweto, não terão sido suficientes para comprovar a estupidez e a falácia de se imaginar uma raça superior? Teriam sido os carrascos nazistas mais inteligentes e poderiam ser considerados membros de uma raça superior por colocarem em marcha a solução final, massacrando milhões de seres inocentes cuja única culpa era não pertencer ao mesmo credo e ter a mesma cor da pele?

Ainda podemos ouvir os sons dos passos apressados de milhares de negros – nas ruas de Memphis e de San Francisco – participando de manifestações públicas convocadas pelo líder negro Martin Luther King na busca dos direitos civis negados aos negros nos Estados Unidos. Mais extremado, temos a figura de Malcolm X em busca da dignidade humana: ‘Não lutamos por integração ou por separação. Lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos. Lutamos por… direitos humanos’. E podemos visualizar as ruas de Johanesburgo e de Soweto em festa com a realização das primeiras eleições majoritárias em clima de unidade racial, consagrando Nelson Mandela para a presidência da África do Sul. E entronizando-o na galeria dos grandes heróis da humanidade.

Uma luta tenaz e constante contra a discriminação e o preconceito racial já recebeu forte impulso internacional com a premiação de três líderes negros com o Prêmio Nobel da Paz – Albert Luthulli (1960), Martin Luther King (1964) e Desmond Tutu (1984) –, evidenciando que o racismo não é uma luta apenas das vítimas, mas, antes, deve ser uma luta de todos os cidadãos de boa vontade, não importando a cor da pele, sua ascendência étnica, nacionalidade, classe social ou a coleção de vistosos títulos acadêmicos.

Além desses heróis da unidade racial, um tributo especial deve ser dado ao líder indiano Mahatma Gandhi, que encontrou uma Índia incendiada por conflitos étnicos, subjugada enquanto colônia inglesa, e através de ação sistemática e não violenta unificou o país, mesmo que depois tenha sucumbido à ode do fanatismo e da intolerância entre hindus e muçulmanos de seu país.

Doença epidêmica

Se submetidos a testes de inteligência, poderíamos considerar Luther King, Gandhi, Mandela, Steve Biko como seres inferiores? O bispo anglicano Desmond Tutu certa vez observou, com muita propriedade, que ‘de um modo geral os brancos acham que somos humanos, mas não tão humanos quanto eles’. A História nos leva a concordar com Protágoras, o sábio do século 4 a.C., que afirmava ser o ‘homem a medida de todas as coisas’.

Fico imaginando quando seria inventado um Teste de Humanidade, pois é necessário que, vez por outra, procuremos saber como está o nosso nível de humanidade e se estamos mais ou menos humanos que… da última vez. Busco na literatura sagrada alguma explicação que possa justificar a superioridade de alguma raça em detrimento de outra: se o Criador deu ao homem o rosto voltado para o Alto, iria Ele distinguir a cor do rosto que busca Sua contemplação? E encontro no velho Talmude, transbordando sua milenar sabedoria, que o homem não deve se sentir enaltecido ou orgulhoso sobre as demais coisas, pois se ele foi criado no sexto dia, o mosquito foi criado bem antes dele.

Guardamos ainda na memória da pele os celulóides com as experiências dantescas conduzidas pelo Dr. Joseph Mengele em busca da pureza racial e que, destinadas ao fracasso, recorreu ao extermínio físico sumário. Temos ainda na memória as cruzes incendiadas do Mississipi, ateadas pelo fogo racista da Ku Klux Klan, essa organização criada em 1866 e cujos objetivos podem ser discernidos nestas palavras de seu chefe supremo, Robert Shelton: ‘Nada faremos contra os negros desde que eles permaneçam em seus lugares, engraxando nossos sapatos e limpando nossas privadas’. Nossa memória sentimental nos leva aos ‘Navio negreiro’ de Castro Alves a amaldiçoar ‘esses borrões nos mares’.

O preconceito racial é algo que merece uma ampla reflexão sobre suas origens mais remotas. Vejamos a história do Brasil: índios e negros são escravizados para produzir riquezas para o dominador, não por acaso, branco. Tanto negros quanto índios eram considerados inferiores, como seres dotados de baixo nível de inteligência, e isso concedia aos seus ‘senhores’ uma motivação moral para mantê-los no regime escravista. Como Jean-Paul Sartre acertadamente definiu, ‘o racismo é um estado de espírito patológico, uma forma de irracionalidade, um tipo de epidemia’. Nesse caso, já que concordamos com a idéia de ser o racismo similar a uma doença epidêmica, é razoável se acreditar em um estado de saúde alcançável em um mundo direcionado para uma cada vez maior interdependência entre as nações.

Métodos deturpados

Através da popularização de que ‘a cor do demônio é negra’, passando pela falácia supostamente religiosa de que os negros seriam ‘espíritos sem luz’ e estão pagando por crimes cometidos em outras vidas (karmas), é fato que nos aforismos e ditos populares encontramos a utilização de posturas incitadoras de menosprezo às pessoas de cor, como é o caso da expressão ‘é um negro de alma branca’, inspirados nos versos de Blake em ‘minha mãe deu-me a luz no ermo do Sul/ E eu sou preto, mas oh!, minha alma é branca…’ – e do seu oposto, ‘é um branco de alma negra’, passando ainda pelas modinhas populares, como a de Lamartine Babo que tinha como refrão estes versos: ‘Como a cor não pega mulata/ Eu quero é teu amor’.

Nos pampas gaúchos, os maltratos a uma criança negra a tornam milagreira na imaginação popular e é assim que nasce a lenda do Negrinho do Pastoreio. Ao cotejarmos a literatura brasileira, encontraremos uma infinidade de amores voluptuosos entre homens brancos e mulheres negras e, é curioso, esses amores multirraciais não geravam filhos. E no Brasil de 2009, um país urbano, ainda podemos encontrar, em alguns cadernos de classificados dos grandes jornais, anúncios do tipo: ‘Moça branca oferece serviços como auxiliar de escritório’.

Só neste ano de 2009 é que temos uma atriz negra e bela protagonizando a cobiçada novela de oito da emissora de televisão de maior audiência do Brasil. Comum mesmo era assistirmos aos negros desempenhando papéis secundários ou em situações de inferioridade social. A ficção imitava (e ainda imita) a realidade nacional.

O contraponto a qualquer esforço para supressão de direitos é o simples fato de que vivemos em uma era que pode muito bem ser referendada como a Era dos Direitos. Foi esta Era que viu nascer constituições democráticas, Declarações de Direitos do Homem, da Criança, da Terra e uma multiplicidade de instituições civis dedicadas à proteção das minorias e em defesa desses e de outros direitos fundamentais.

O pensamento de James Baldwin é muito oportuno. Ele dizia que quando os brancos aprendessem a se respeitar e a amarem-se uns aos outros, então não haveria mais nenhum problema em seu relacionamento com os negros. Este pensamento encontrou simetria nas palavras de Richard Wright, o escritor negro que dizia que nos Estados Unidos ‘não existe um problema negro, mas sim em problema branco’.

Em 1986, em importante documento da Casa Universal de Justiça, ficou afirmado que ‘o racismo, um dos males mais funestos e mais persistentes, constitui obstáculo importante no caminho da paz’ e que sua prática ‘perpetra uma violação demasiado ultrajante da dignidade do ser humano para poder ser tolerada sob qualquer pretexto’. O senso de justiça de tão veemente declaração invalida por completo uma superioridade racial branca respaldada por testes ditos científicos, que por mais que venham a ser corrigidos de sua tendenciosidade, ainda assim não têm força para impedir a tendenciosidade dos cientistas que os interpretam.

Não obstante detectar a deturpação de determinados métodos estatísticos, principalmente quando os resultados almejados buscam diminuir os direitos à condição humana de outros seres humanos, ressalto duas questões de uma pesquisa realizada pela antropóloga Lilia Schwarcz, autora de O Espetáculo das Raças: (1) ‘Você é preconceituoso?’, 99% responderam ‘não’; e (2) ‘Você conhece alguém preconceituoso?’ 98% responderam ‘sim’.

Agora, leitor, é com você.

******

Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter