Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Dois deuses dos cartuns argentinos

Em 1996 estive atrás do cartunista Quino para tentar uma entrevista. Quino passava na época metade do ano na Europa, onde morava, e a outra metade na Argentina (entre Buenos Aires e Mendoza, visitando os parentes e amigos). Comecei a ligar para Quino no primeiro mês em que estava em Buenos Aires. Quino, polido, mas tímido, sempre me indicava que não tinha tempo por um motivo ou outro. Depois de cinco meses tentando, deixei de telefonar. Nesse intervalo, também havia pedido uma entrevista com o cartunista Roberto Fontanarrosa, muito popular na Argentina, embora pouco conhecido no Brasil.

Fontanarrosa, que morava em Rosario, teria que viajar para Córdoba. Mas, por incrível que pareça, a segunda e a terceira maior cidade do país não estavam conectadas por um voo direto, fato que o levaria a passar pelo aeroporto metropolitano de Buenos Aires, o Aeroparque Jorge Newbery. Algo como ir de Belo Horizonte à Brasília, fazendo escala em São Paulo.

Fontanarrosa me disse que poderia me conceder a entrevista durante a brevíssima escala que faria no Aeroparque. Fui ao Aeroparque…e ali encontrei Quino!

Há dias eu queria postar no blog esta entrevista, já que no dia 19 de julho completaram-se dois anos do falecimento de Fontanarrosa. Esta foi a entrevista, publicada em 1996.

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‘Quino é Deus, Mafalda é sua profeta’, poderiam dizer os fãs dos cartuns argentinos. Depois de semanas assediando Deus por telefone, o Estado o encontrou por acaso no aeroporto de Buenos Aires. Deus, aliás, Joaquin Lavado, aliás Quino, folheava sem pressa uma revista numa banca do hall. O enviado do Estado pensou que o arredio Quino recusaria uma entrevista improvisada e somente perguntou se havia visto Roberto Fontanarrosa, com quem havia marcado uma entrevista no aeroporto, enquanto esperava uma conexão aérea.

Fontanarrosa, é outro deus do Olimpo argentino dos cartunistas, mas cujo profeta, pouco conhecido no Brasil, chama-se Inodoro Pereyra. O pai de Mafalda disse com um amplo e generoso sorriso: ‘Viajo junto com ele. Você queria me entrevistar há tempo, não? Então vamos fazer a entrevista todos juntos, que acha?’. Não se discute a voz de Deus.

Fontanarrosa viajava junto com su esposa Liliana e Quino para um encontro de cartunistas em Córdoba. Autor de Inodoro Pereyra, um gaucho que explica suas malandragens com inesperados jogos de palavras, Fontanarrosa é também o desenhista de Boogie, um cínico detetive ao melhor estilo de Humphrey Bogart. Em 45 minutos, os dois papas do cartum argentino explicaram o que pensam sobre o humor, suas criações e algo fundamental: os tamanhos dos balões das tirinhas.

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O sr. está desenhando de forma mais sintética. Isso é intencional?

Quino – Sim. Sempre quis desenhar de forma mais simples. Quando desenho começo a fazer o cadarço dos sapatos, as unhazinhas…E quando percebo, é um desenho complicadíssimo. Por isso tento simplificar ao máximo, mas nem sempre consigo. A complicação é uma tendência natural que tenho. Talvez porque seja filho de andaluzes, que por sua vez têm influência árabe: os arabescos, o Alhambra e tudo o mais. Deve ser genético (faz cara de espanto)…

Falando em gens e clones…Como foi encontrar-se com um robô com seu rosto na Expo de Sevilha, em 1992?

Quino – Fizeram uma mostra enorme da Mafalda. Havia um robô com minha imagem sentado em uma mesa de desenho. Ele falava e dizia: ‘Oi, sou Quino, tudo bem?’. Era impressionante, estar diante de um robô com minha cara. Ainda mais quando lembro que ele continua na Espanha, em uma caixa! Penso às vezes que ele sairá do ataúde e estrangulará alguém (ri).

A fama o angustia?

Quino – Não, pois não tenho uma cara conhecida. Posso caminhar pela rua incógnito. A não ser como agora, que junto com o Fontanarrosa vou para um evento de caricaturistas, onde as pessoas pedem que lhe dedique um desenhinho, perguntam por que parei de fazer a Mafalda…

Essa seria minha próxima pergunta…

Quino – Comecei Mafalda em 1963 e terminei em 1973. Estava muito cansado. Repetia-me muito. Achei mais honesto parar. Não repetir-me era um esforço tão grande que não valia a pena. Para mim era uma historinha que entregava e publicavam. Nunca achei que 23 anos depois viraria o que virou, com sucessivas reedições e que as crianças gostariam. Não havia pensado nelas quando desenhava Mafalda. Com a expansão da TV elas tem a mesma informação que os adultos. Mas quando as novas gerações vejam que na Mafalda não há computadores, começarão a abandoná-la.

Identifica-se com algum personagem?

Quino – É inevitável, ao desenhar, reproduzir os movimentos que sente em seu corpo. Sou mais parecido ao Felipe e Miguelito. Bem, eles saíram de mim…

Por que não há avós na Mafalda?

Quino – Sabe que nunca pensei nisso?…Aí estão eles! (chega o casal Fontanarrosa e todos sentam-se no bar do aeroporto)

Por quem foi influenciado?

Quino – Quando era criança, por Lino Palacios e Di Vito. Aos 18 anos, caiu em minhas mãos um Paris Match e aí fui influenciado por Bosch e Chaval. Acho que eles tiveram muita influência no Brasil também, pois nota-se isso em Borjalo. Ziraldo, todos nós, começamos juntos. Eu o conheci quando fui de ônibus ao Rio de Janeiro em 1960, de lua-de-mel com minha esposa. Desde então nos encontramos quase todos os anos.

Fontanarrosa – Conheço pouco do humor brasileiro. Faz tempo que não se vê material do Brasil por aqui.

Quino – Tem razão. Nem eu.

Fontanarrosa – Citaria Jaguar, Henfil, Emílio Fernandes, Edgar Vasques…

Quino – Posso ir a pé daqui ao outro lado do mundo e no meio do caminho sempre encontro o Ziraldo…

É muito diferente o humor brasileiro do argentino?

Quino – Lembra quando caiu o avião do time do Uruguai nos Andes nos anos 1970? O Pasquim fez um suplemento especial com piadas de um humor tão negro… nenhum de nós teria tido coragem para fazer algo assim (ri).

O humor argentino é muito psicanalítico?

Quino – Talvez o ‘Matias’ de Sendra…

Fontanarrosa – É difícil englobar tudo. Como tema, talvez. Mas não ideologicamente psicanalítico…

O humor argentino seria mais literário que o europeu?

Quino – Humm…deixe pedir uma cerveja primeiro (Fontanarrosa e a esposa pedem chá)

Fontanarrosa – O cartunista espanhol Peridis diz que nós trabalhamos muito o desenho. Eles fazem um desenho rápido… Mas é arriscado rotular o humor argentino assim.

Quino – Como também o europeu. O humor espanhol é muito diferente do italiano. O espanhol é muito direto. O outro é mais sinuoso. Por exemplo, um desenho que vi em Milão, há pouco: um velhinho todo estropiado que diz: ‘Eu bebo porque meu filho se droga’ (ri). Ou uma velhinha que olha o netinho da outra e pergunta: ‘Que bonitinho. Já mente?’ (riem todos).

Há quanto tempo mora em Milão?

Quino – Há 20 anos. Mas nos últimos 17 anos passo 4 meses lá e 8 aqui.

Seu humor mudou nesse período milanês?

Quino – Eu mesmo não percebo. Tento fazer com elementos que não sejam muito locais da Argentina. Na Itália há muita sátira política. O mesmo que é feito na Argentina pela revista ‘Humor’. São caricaturas de personagens conhecidos. Eu nunca gostei…porque não sei fazer caricaturas (ri). Gosto de fazer um humor que perdure no tempo.

Inodoro Pereyra seria muito regional?

Fontanarrosa – Regional, sim, mas não por ser um gaucho, mas pela linguagem, que está muito deformada, e onde aparecem os regionalismos. Com exceção do Uruguai, não é publicado em fora da Argentina. É intraduzível.

Mas ‘Boogie, el aceitoso’ (que seria algo como ‘Boogie, o escorregadio’), sim…

Fontanarrosa – Porque é um castelhano neutro, como se fosse a tradução de uma tirinha dos EUA.

Quino – É como O menino maluquinho virar ‘El niño piola’. Não dá para traduzir!

Fontanarrosa – Esse aspecto das traduções é muito complexo. O mesmo personagem tem uma recepção diferente na Europa do que na América Latina. A leitura é diferente.

Os chineses estão fazendo CDs piratas há anos. Agora estão pirateando Mafalda. O sr. já é parte indissociável da aldeia global…

Quino – (ri) Não sei como interpretar. Vi algumas traduções em francês e alemão…mas em chinês!

O sr. pensou em dedicar-se à literatura, como Fontanarrosa?

Quino – (Fontanarrosa ri e sussurra ‘está fazendo uma biografia’, enquanto Quino fala) Não, não. Tenho problemas de redação, com os acentos…

Como foi quando em uma conferência de Jorge Luis Borges, o sr. levantou-se e perguntou se o verbo ‘aguaitar’ tinha …

Quino – …Se não tinha a ver com ‘To wait’, e me disse que não (ri). E evidentemente sim, tinha! Comprei um dicionário etimológico e vi que existe ‘aguate’, no italiano, e em catalão há um similar. Na minha província, Mendoza, existe o verbo ‘aguaitar’, no sentido de espiar. Não exatamente no sentido de ‘esperar’.

Sua incursão na literatura começou antes dos cartuns?

Fontanarrosa – Foi um pouco simultâneo. O gosto pela literatura começa com os quadrinhos, depois passa aos livros. O que sempre tentei de escrever são as coisas que gostaria ler. Escrevia coisas pequenas. Imaginava que meu gosto por escrever estava saciado com os diálogos das tirinhas. Depois vi que não era assim, e que não havia um limite no conto, ao contrário do cartum, limitado pelo tempo, espaço… O texto deve ser reduzido ao mínimo. Sempre tenho problemas para reduzir o texto de Inodoro Pereyra. Rezo para que o leitor faça um esforço e comece. Eu sou muito preguiçoso para ler. Há uns balões imensos em minhas tirinhas. Se fosse ler algo meu, nem começava. As pessoas leem as piadas nos jornais porque são curtinhas.

Quino – Eu até me assusto com Asterix…

Para vocês, a inspiração é um parto?

Fontanarrosa – (ri) Há coisas que aparecem mais facilmente do que outras. Mas deve-se a agentes externos. Agora começaram a aparecer casos de descobertas de fósseis de dinossauros na Patagônia. Talvez tome esse tema.

Quino – O problema não é pegar um tema…é solucioná-lo!

Mas o sr. não tem personagens definidos, e Fontanarrosa, sim. Isso não dá mais liberdade a um e complica mais a resolução de outro?

Fontanarrosa – Podem aparecer personagens subalternos, mas o difícil mesmo é resolver situações complicadas.

O sr. agora debuta no mundo do cinema, com a produtora brasileira Flávia Moraes…

Fontanarrosa – Houve adaptações de contos meus para o teatro. A Flávia achou que um conto meu serviria cinematograficamente, mas não são textos feitos com intenções de virar cinema. O filme da Flávia será como estes bons e velhos filmes italianos, onde são contadas quatro histórias diferentes.

Quino – Coisas minhas feitas com atores ficaram tão diferentes…eram adaptações de piadas sobre a morte. Sem ter visto a historinha antes, não se entendia…

Gostou dos seus desenhos com a animação feita em Cuba?

Quino – Sim, mas havia desenhos que eu avisava, ‘isto ficará incompreensível’. E acontecia.

O sr. havia pensado vários finais para a Mafalda. Em um deles a matava (Quino esbugalha os olhos e ri)… é o que se fala por aí. É o normal com todo mito e sua morte: Gardel, o Che Guevara…

Quino – Disseram que eu tinha desenhado uma cena em que ela é atropelada por um caminhão da polícia… Mas eu mesmo desenhei uma em que ela tirava a roupa e via-se que ela era um menino. É só um esboço, que guardei para mim (ri)…

Fontanarrosa – Isso é uma crueldade…

Ressuscitaria Mafalda?

Quino – Não sei. Não sei…

Fontanarrosa – Nunca deve-se fechar a porta…Mas isso implica em um compromisso de continuidade.

O personagem de Inodoro Pereyra mudou muito?

Quino – (interrompendo Fontanarrosa) Nossa, como mudou. Na última página que fiz até o coloquei.

Fontanarrosa – Como é??

Quino – É um cartum onde há um filho de nazistas que não cresceu como os pais queriam. A mãe costura suásticas na roupa e no quarto do garoto há um pôster do Inodoro Pereyra (riem).

Fontanarrosa – Mudou muito porque era um gaucho de uma historinha avulsa. Quando pensei em continuá-lo, foi modificando-se. Mas isso acontece com todos e não é uma mudança que percebamos.

Quino – É como uma assinatura, muda com os anos.

A proporção dos desenhos de Quino parece que vai ficando menor…

Fontanarrosa – Inodoro também. Foi ficando mais cabeçudo. Os quadrinhos ficam menores. E o maior ponto de expressão é a cara. E se ela é muito pequena, é difícil enxergar. Mas essas mudanças nunca são abruptas.

Hoje sentem-se influenciados por outros desenhistas, que provoquem mudanças ou ideias novas?

Fontanarrosa – Hoje é só olhar o trabalho dos outros. Às vezes acontece ‘algo’ sem querer…temos vários desenhistas incorporados.

Quino – Não. Mas tenho colocado alguns personagens pequeninos que são decorrentes de uma exposição que vi de Chagall. Chamou-se a atenção de como esse sujeito fazia homens pequenininhos ao lado de homens grandes. Tinha vontade de fazer coisas assim. Outra coisa é que eu não sei usar o espaço em branco. Morro de inveja de quem sabe.

Fontanarrosa – Nós não somos grandes desenhistas. No máximo somos desenhistas ‘corretos’. Grande é Hermenegildo Sábat.

A sra. dá opiniões sobre os desenhos de seu marido?

Liliana – Nunca vejo o que ele faz (sorri). Só quando sai publicado.

Fontanarrosa – Preciso de um estúdio longe de casa.

Quino – Quando desenho e entra alguém no escritório, seja a minha esposa Alicia, ou não, imediatamente cubro o desenho com as mãos.

O sr. era parecido à Mafalda, quando era pequeno, mentalmente falando?

Quino – Acho que não. Falava pouquíssimo.

Fontanarrosa – É um denominador comum dos desenhistas…

Dá para viver bem como cartunista?

Fontanarrosa – Considero que sim. E porque faço algo que gosto.

Quando terminam de desenhar dão um gargalhada do que fizeram?

Quino – Agora não. Antes sim. Sempre rio de um desenho dos anos 60s, onde há uma orquestra e um músico que corre desesperado atrás de seu imenso tambor que rola em direção à plateia.

Fontanarrosa – Eu sinto tranquilidade quando faço uma boa piada. No máximo uma risadinha. Em geral se faz o que é de rotina, dentro de determinado nível.

Quino – E outras coisas que a gente entrega com muita vergonha…

Fontanarrosa – Às vezes, procurando material em arquivo, digo, ‘esta é um boa piada’. Mas parece que fosse de outro. E lamento porque não faço piadas tão boas mais frequentemente…

Quino – Joan Manuel Serrat, o cantor catalão, diz: ‘aquelas canções que fazia no começo…porque diabos não me acontecem mais?’ (riem todos)

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Correspondente do Estado de S.Paulo em Buenos Aires