Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

É fantástico! Eles nunca aprendem

Na verdade, o comentário não é sobre o Fantástico, da Globo, mas sim sobre outro produto já antigo: o Globo Repórter.

Mais do que cansativo, chega a ser até estúpido ter que repetir que saúde é sempre assunto para a mídia, que nem sempre as fontes são checadas e assim por diante. Por outro lado, que se dê o direito de a TV mostrar as mais diversas opções de cuidados com a saúde e liberdade de imprensa é óbvio; mas isso exige responsabilidade, o que nem sempre ocorre, e o Globo Repórter de 24/01/2009 foi glorioso exemplo, dentre tantos.

Anunciado com a ênfase espantosamente otimista de Sergio Chapelin, o assunto do programa em questão foi, resumidamente, a melhoria ou cura de vários problemas de saúde sem remédios. Claro, eles existem, desde as tradicionais cirurgias até medidas de medicina fisiátrica, a reabilitação. Mas, claro, esse não era o foco: exercícios orientais, auto-massagem, a ‘milagrosa’ medicação para dengue que resolveu a infecção em uma cidade (monumental mentira que há já dois anos rendeu artigo meu na Folha de S.Paulo e entrevista à CBN) e por aí adiante.

Nem a composição se conhecia

Sei que há médicos arrogantes em demasia, que o sistema de saúde pública, o SUS, fica a desejar, e o sistema suplementar de planos de saúde também não agrada em cheio à população, que fica entre notícias ‘fantásticas’ do exterior mescladas a reportagens sobre instituições de ponta brasileiras, ilhas de exceção, e as maravilhas da auto-massagem, da urinoterapia, ou seja lá o que o for. Aonde está a responsabilidade pela informação? Liberdade de imprensa, sim, evidente, mas com alguns cuidados e especialmente sem cair no ridículo, no quackery.

Vá lá que se mostre alguma coisa de fitoterapia (até porque há um lado sério e importante no assunto, embora haja polêmica quanto ao tempo que se vai levar para descobrir uma planta, digamos, efetivamente ativa contra uma doença, e prepará-la de acordo com os princípios farmacêuticos, médicos e científicos, alem de éticos, para ofertá-la a população) e a pesquisa com compostos sintéticos – haverá contestações de caráter ideológico e financeiro, bem sei, mas ao menos não se pode acusar toda a fitoterapia de charlatanismo ou atraso.

Mas vamos ao caso da dengue: ora, o misterioso composto ofertado por várias cidades do interior paulista sem avaliação médica, dito como homeopático por gente dessa área, foi claramente desmentido como pertencendo a essa categoria. Disseram alguns homeopatas que há um pesquisador sério no Rio de Janeiro trabalhando com isso: até hoje espero alguma publicação sua.

Do que se conseguiu apurar, uma pessoa, sem formação definida, convenceu secretários municipais da saúde a comprar seu produto e dispensá-lo nos postos sem avaliação médica. Nem ao menos se sabia qual a composição do suposto remédio! Parece que o inventor da coisa ganhou muito dinheiro e sumiu, o que tem lógica, pois a tal medicação deveria poder ser comprada com dispensa de licitação, por não haver similar no mercado.

Como dogmas religiosos

Resultados? Não curou ninguém da dengue e ainda incentivou as pessoas a tomarem o remédio para se prevenirem da doença, abandonando as práticas conhecidas de prevenção contra o mosquito. Cidades inteiras de São Paulo sofreram epidemias da doença.

Na ocasião, a Secretaria Estadual da Saúde proibiu a dispensa da medicação, as prefeituras recorreram à Justiça, a Anvisa entrou na história e acabou por ser permitida sua utilização, desde que sob prescrição médica: mas qual profissional da área teria coragem de receitar algo completamente desconhecido e repleto de dúvidas? E a história volta agora, via Globo…

Costuma-se dizer que medicina e arte – sob alguns aspectos – podem ser consideradas como algo similar. Mas, basicamente medicina e ciência, goste-se ou não dessa abordagem. O bom e velho Hipocrates, há mais de 2.000 anos, retirou a medicina do mundo espiritual e a trouxe para o material, o científico. E assim e até hoje: boa prática médica e de saúde se faz com método cientifico, evidências, constatações, estatística. Isso não invalida, e nem deve, a atitude do médico como ser humano, dedicado e atento a seu paciente, atencioso, educado – mas quem não aprendeu ou ‘desaprendeu’ essas práticas no curso de Medicina, e sim, trouxe alguma coisa errada de sua bagagem cultural, de sua formação, da família, sabe-se lá.

Dizer que uma determinada prática é boa para a saúde, pois, é natural e bobagem: há muita coisa na natureza, até vendida em feiras livres, que pode matar. Da mesma forma, dizer que uma prática é milenar não quer dizer nada: guerras também o são, e matam – e como! As coisas ditas milenares, na saúde, em geral ficaram estanques desde há muitos anos e adoradas como dogmas religiosos; nada tem a ver com a medicina científica que, bem ou mal, avança em benefício da saúde individual e coletiva.

Mortes no carnaval

Tive várias experiências no decorrer dos anos com os meios de comunicação, como entrevistado. Reconheço que na maioria das vezes as coisas correram bem e as informações foram passadas adequadamente. Há um episódio, contudo, que merece registro.

Alguns anos atrás, um rapaz chegou a uma unidade do hospital Albert Einstein com um quadro estranho: universitário, esportista, freqüentador de academias, foi trazido pelos pais à emergência com um mal-estar indefinido; logo houve alterações de sua pressão arterial e freqüência cardíaca e entrou em coma. Os colegas do primeiro atendimento solicitaram minha avaliação e apenas graças a um parente do paciente conseguiu-se saber que ele havia tomado certa quantidade de 1,4 butanodiol, ou BD – droga ainda nova no exterior e o primeiro caso no Brasil – para, em tese, melhorar seu desempenho físico. Felizmente o tratamento deu resultados e, após curto período em UTI, houve a recuperação completa. Por ser o primeiro caso de overdose dessa substância no país, por acaso atendido por nossa equipe, foram feitos os devidos relatos às autoridades sanitárias, centros de intoxicação e publicações científicas.

Mas a imprensa ficou sabendo. Preservando o sigilo médico e a identidade do paciente, dei entrevistas à Folha de S.Paulo e a rádios desconhecidas. Tudo bem: era importante divulgar uma nova droga de abuso sintética, com potencial para matar uma pessoa.

Eis que alguns dias após entra em contato comigo um produtor do Fantástico: queria fazer uma matéria a respeito, mas entrevistar o paciente, ocultado com as técnicas conhecidas. O rapaz considerou importante a divulgação, mas recusou-se terminantemente a dar entrevistas, mesmo disfarçado. O dito produtor da Globo me disse que a matéria não iria para o ar.

Um ano após, o mesmo jornalista me telefona e diz que naquele carnaval, do ano em curso, no Rio a substância mais usada foi o tal do BD, gente havia morrido e um sobrevivente concedeu entrevista disfarçado. E quiseram me ouvir por alguns segundos.

Interesse comercial e conteúdo

Ora: será que uma matéria em um programa com milhões de espectadores não poderia ter alertado de alguma forma aqueles que usaram o tal do BD no ano seguinte? Difícil ter certeza, mas por ser droga nova no Brasil, e cara, talvez não ocorressem óbitos. Mas o Fantástico preferiu ignorar a reportagem inicial, pois sem a imagem da vítima não teria como…

Isso lá é serviço público? Não cheguemos ao exagero de culpar as eventuais mortes no Rio de Janeiro por conta do programa dominical, mas uma concessão pública deveria ser mais responsável. E, creio eu, mesmo sem a imagem do rapaz, a mensagem seria dada, e algo importante poderia ter sido feito para uma parcela da população, adepta de drogas sintéticas novas.

Exemplos de péssimo jornalismo, com veículo poderoso de comunicação que poderia prestar um serviço importante, mas por causa do detalhe da imagem, deixou para lá e correu atrás do prejuízo um ano depois…

Será sempre assim com vários órgãos de imprensa? Por mais que os médicos quisessem divulgar eticamente o caso, no máximo conseguiram divulgação no meio profissional e em alguns órgãos de imprensa. Mas nenhum com o alcance popular do Fantástico.

Fantasticamente, eles parecem não ter se importado com as mortes. Aliás, como houve a recuperação do primeiro paciente, mais lacrimoso certamente foi mostrar um sobrevivente anos depois – sem prestar o devido serviço no início. Lamentável sob todos os ângulos.

Vamos aguardar o dia em que o interesse de audiência, comercial, será subjugado pelo conteúdo das matérias em si. Otimismo.

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Médico, mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do Cremesp