Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Truculência na Argentina

A Argentina de Cristina Kirchner é um Estado de Direito – pero no mucho. A concentração de poderes na Casa Rosada, que precedeu a presidência de seu falecido marido, Néstor, e foi por ele exacerbada, não se restringe ao controle, mediante o chicote e o afago, dos atores políticos nacionais e dos setores econômicos cujos interesses podem ser favorecidos ou prejudicados pelo Executivo, conforme a adesão das respectivas lideranças. Nesse país em que as instituições do Estado ainda estão contaminadas pelo entulho autoritário da história nacional, também o Judiciário parece vulnerável ao hiperpresidencialismo, com a sua notória prontidão para premiar ou punir. Para Cristina, como foi para Néstor – e para os autocratas de todas as latitudes -, a fidelidade pessoal do agente público não só é esperada como fato natural, mas constitui a sua maior virtude. Some-se a isso o gosto pela truculência e está traçado o pano de fundo para o mais recente ato de agressão política – não o último, decerto – cometido com o endosso da Casa Rosada.

Na manhã de terça-feira, em Buenos Aires, um destacamento de 50 membros da Gendarmería, a polícia argentina de fronteiras, ocupou durante três horas a sede da Cablevisión, operadora de TV a cabo e internet do Grupo Clarín, o principal conglomerado de comunicação do país, que edita o jornal do mesmo nome, o maior da Argentina, que há três anos, numa mudança de linha editorial, passou de aliado a crítico do governo. Os policiais chegaram acompanhados por uma equipe do programa 6, 7 e 8, da televisão estatal, notabilizado pela sua virulência contra os desafetos do kirchnerismo. Os agentes intimidaram os funcionários, revistaram os seus pertences e exigiram dos executivos da empresa a apresentação de documentos e planilhas financeiras. Eles estavam ali, alegadamente, para garantir o cumprimento da intervenção na empresa, ordenada por um juiz da província de Mendoza, numa ação movida pelo concorrente Supercanal, por suposta concorrência desleal.

Governo no controle

Ocorre, não por acaso, que o Supercanal pertence ao Grupo Uno, dono de uma rede de jornais no interior do país. Os seus controladores, como o peronista José Luiz Manzano, que foi ministro no governo Menem, apoiam ostensivamente a presidente. Este ano, o faturamento do conglomerado com publicidade oficial chegou a US$ 3,7 milhões, quase nove vezes mais do que em 2010. Segundo o porta-voz do Grupo Clarín, Martín Etchevers, o Uno é “testa de ferro” do governo na Justiça. A intervenção, a rigor, foi feita para dar um verniz legal ao pretendido desmembramento da Cablevisión, como parte da obsessão de Cristina em arruinar o grupo. Em 2007, quando tudo ia bem entre a empresa e a Casa Rosada, o então presidente Kirchner aprovou a fusão da Cablevisión com a Multicanal, a gigante da TV por assinatura no país. Desde o ano seguinte, quando o Clarín tomou o partido dos ruralistas no seu conflito com os Kirchners, a presidente tem tentado de tudo para anular o negócio.

Além das ações recorrentes de terrorismo de Estado, como a invasão da sede do jornal por mais de 200 fiscais da Receita, em setembro de 2009, no que seria uma “operação de rotina”, e o piquete sindical diante de policiais impassíveis para impedir a circulação do diário, em um domingo de maio passado, o kirchnerismo se vale de duas armas. Uma é a Lei de Meios, aprovada também em 2009 e suspensa por uma liminar. Ao limitar a participação privada nos setores de TV e rádio, obrigará o Grupo Clarín a se desfazer de parte de seus ativos nessa área. A outra arma é o projeto que declara de “interesse público” a produção, venda e distribuição de papel-jornal na Argentina, monopolizadas pela companhia Papel Prensa, que abastece 172 jornais. O Grupo Clarín detém 49% do seu capital, enquanto a empresa que edita o diário La Nación possui 22% e o Estado argentino, 27%. A proposta, aprovada na Câmara e em vias de votação no Senado, proíbe a empresas de mídia impressa participação acionária na Papel Prensa. Com isso, direta ou indiretamente, o governo assumirá o seu controle – e condicionará o acesso ao insumo à docilidade dos jornais do país.