Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A moderna tragédia brasileira

Para o crítico literário inglês Raymond Williams, autor de Tragédia Moderna (2002), as guerras, os acidentes de trânsito, os sequestros, a especulação imobiliária, a mercantilização da vida, a fome; violências urbanas como o roubo, sequestro, assassinatos, estupros; o abandono à própria sorte da maior parte da população do planeta, sem eira nem beira; sem trabalho, moradia, sem acesso a saneamento básico, água potável, enfim, as mais diversas formas de violência econômica, de gênero, étnica, simbólica; de violação de direitos básicos, de humilhação, indiferenças, vividas passiva e ativamente no coração de nosso cotidiano, são, na maior parte das vezes, o resultado quase que previsível da concepção/prática liberal que domina todo o planeta, estando na base das relações de produção material e simbólica do mundo desde, pelo menos, a emergência da sociedade burguesa, como consequência da Primeira Revolução Industrial.

A essa concepção e prática liberais Raymond Williams deu o nome de tragédia moderna, a qual está estruturalmente relacionada com o modo como a modernidade burguesa se organizou, razão pela qual a Tragédia, com T maiúsculo, diz respeito à organização mesma da sociedade burguesa, que é produzida através de duas irreconciliáveis formas trágicas de ação, a saber: de um lado a ação naturalista, apresentada e realizada como racional, objetiva, determinista, impessoal, impositiva, total; de outro a ação romântica, concebida e vivida como irracional, subjetiva, criativa, pessoal, plural, democrática.

Segundo Raymond Williams, resulta daí, da primeira ação trágica, a naturalista liberal, a ideia de modernização como independente da vontade humana, sendo ela própria a ação por excelência, por constituir-se como o desejado progresso autoevolutivo, imparável e inquestionável, o que significa dizer que, no seu âmbito, a política – entendida como consciente cenário de decisão humana sobre o destino das sociedades – deve ser totalmente descartada e descartável, simplesmente porque o modelo de produção econômica, com suas sedimentações de classe, simbólica, jurídica, social, é-nos apresentado como impessoal, racional, inevitável; aceitemos ou não.

A premissa antropocêntrica

Por sua vez, o lado romântico, pessoal, subjetivo, voluntarista da ação trágica é individual e se opõe ao primeiro não para criticá-lo ou subvertê-lo, de vez que o aceita como inevitável, mas para absolutizar o lugar do sujeito, concebido e vivido como o epicentro legítimo de tudo que diz respeito ao amor, à arte e à vida, à liberdade de expressão, à justiça, na suposição de que o sujeito isolado se garante por si mesmo, com sua irracionalidade, sua ousadia, inteligência, beleza, estilo, criatividade, engenho, autoconfiança, teatralidade.

O horizonte da ação política, sendo descartado da coletiva dimensão naturalista e impessoal, é, por sua vez, deslocado e concentrado para o campo romântico da pessoalidade em tese livre para agir segundo orientações individuais, privadas, pessoais, familiares ou, quando muito, segundo perspectivas restritas ligadas a segmentos de gênero, étnicos, profissionais, desde que não pleiteiem transformações coletivas; desde que não, enfim, pessoalizem a suposta impessoalidade do eixo social, coletivo, relacionado com o modelo de civilização que produzimos.

A tragédia moderna, portanto, diz respeito à impossibilidade de um encontro criativo, revolucionário e democrático entre a subjetividade e a coletividade; o individual e o social; as particularidades de gênero, de classe, étnicas, culturais e a possibilidade politica de discutir e transformar o conjunto da sociedade, pondo em destaque questões como a propriedade privada, a concentração de riqueza, o mercado ou mesmo o modelo produtivo de nossa atual civilização, marcado pela inevitabilidade desejável do progresso técnico-científico, usado para explorar as riquezas do planeta a partir da premissa antropocêntrica de que os outros seres são inferiores e também a partir da premissa de que o presente é o absoluto tempo do lucro pessoal, particular, privado, oligárquico.

O cenário dantesco de indivíduos isolados

Tudo funciona como se o mundo fosse o que é e ponto final, de modo que nós, mulheres, gays, homens, negros, índios, brancos, amarelos, temos apenas que, com força de vontade pessoal, alterar ou dar o desejado rumo às nossas personalidades autocentradas, tendo em vista a eternidade intocável de nosso próprio modelo civilizacional, de modo que aqueles que não conseguem se tornar bem sucedidos, a esmagadora maioria dos seres vivos do planeta, devem ser impessoalmente vistos como inaptos, fracassados, preguiçosos, improdutivos, vagabundos, bárbaros, autoritários, ressentidos, castrados, drogados, terroristas; incômodas e descartáveis não pessoas; lixos.

A cosmológica ordem trágica moderna está tão sedimentada em nosso cotidiano que de fato tendemos a achar que o campo da criatividade, da inteligência, da liberdade, da justiça, do amor, da arte, da política só é válido e mesmo possível quando circundado pelo restrito horizonte da pessoalidade e da segmentação de gênero, étnica, cultural, transformando em tabu ou falta de rigor, ou autoritarismo a tudo e todos que tentarem conectar o pessoal e o impessoal, o individual e o coletivo, o cotidiano e o modelo civilizatório que produzimos, efetivamente como sujeitos, ainda que tragicamente assujeitados.

É por isso que achamos que teoria boa é teoria segmentada e fechada em campos de saber, assim como é igualmente por isso que a literatura – e a arte de modo geral – de qualidade, segundo as teorias segmentadas, é aquela que aceita a premissa da pessoalidade tanto mais criativa e genial, quanto mais referendada em si mesma; quanto mais se inscreva na sua própria dinâmica, sem dialogar, criticamente, criativamente, alternativamente, com a ordem trágica do mundo moderno.

Quando muito, o máximo que é possível, no quadro da criação, é a descrição impessoal da ordem trágica, fazendo valer sua inevitabilidade, como ocorre, no campo da literatura brasileira – mas não apenas – com os livros produzidos pelo escritor gaúcho João Gilberto Noll, cujos romances e contos narram personagens isolados, em busca desenfreada pelo próprio narcísico gozo, num ambiente social desolado, destroçado, motivo pelo qual sua produção literária pode ser lida como exemplar caricatura da tragédia moderna, segundo a perspectiva de Raymond Williams, pois o trágico é precisamente isto: o cenário dantesco de indivíduos isolados, em busca de si e de seu próprio prazer e felicidade, dentro de uma totalidade social intocável e inevitável, dentro da qual ele apenas sobrevive ou tenta tirar o máximo de proveito possível.

Respostas acertadas e corajosas

Num certo sentido, a produção literária de João Gilberto Noll não passa de um intensivo abalo sísmico de uma ordem social e criativa onipresente igualmente no cinema, na produção musical, na dança, na arquitetura, na política, na cidade, no Estado, na vida, pois por todos os lados o que vemos e vivemos é a tragédia moderna de nossa impotência coletiva, ainda que muitas vezes travestida de felicidade privada, amorosa, lírica, pessoal.

Por consequência, os meios de comunicação de massa, sobretudo as mídias corporativas, são exatamente a própria tragédia moderna, pois quase tudo, para não dizer tudo, que produzem, distribuem e transmitem está estritamente relacionado com a divisão irreconciliável entre a impessoalidade do modelo oligárquico do capitalismo contemporâneo, visto e concebido como inevitável e desejável; e a pluralidade pessoal de indivíduos – sobretudo os famosos – alegres, talentosos, bem resolvidos e, portanto, merecedores da fortuna que recebem, precisamente porque se adaptaram bem à tragédia moderna, transformando a impotência em potência, a criação autoral em assujeitada pessoalidade teatral reificada.

Resulta daí, quando da visita da presidenta Dilma Rousseff a Cuba, a trágica e curiosa observação do âncora do Jornal Nacional, William Bonner, em relação às acertadas e corajosas respostas da presidenta, quando interrogada sobre a suposta censura que Estado cubano pratica contra a blogueira cubana Yoani Sánchez.

Direitos humanos não podem ser coletivos

Imediatamente, após ser questionada sobre as violações de direitos humanos, supostamente levadas a cabo pelo governo de Cuba, Dilma Rousseff respondeu dizendo que estava disposta a discutir o assunto desde que colocássemos em pauta as violações de direito cometidas pelo governo americano, citando Guantánamo, por outros governos do mundo, incluindo o Brasil, certamente fazendo referência ao caso da expulsão dos moradores de Pinherinho, essa nossa trágica histórica Canudos moderna, a Canudos da periferia do capitalismo, cuja trágica ação advém da habitação de um território, no caso o brasileiro, por um povo sem território, secular motivo pelo qual a habitação digna no Brasil é essa fortuna que é, sendo igualmente por isso, como parte, repito, de nossa moderna tragédia, que não apontamos o dedo para onde temos que apontar: a especulação imobiliária, por nós mesmos tida e havida como sintoma de progresso e crescimento econômico, inclusive – eis nossa comum contradição – pela própria presidente Dilma Rousseff, a qual, com o “Minha Casa, minha vida”, efetivamente o que tem feito – com um tímido avanço em relação às pessoais políticas públicas anteriores – é transferir recursos públicos direto e indiretamente à especulação imobiliária, a qual, bem entendido, deveria ser considerada criminosa, por afetar o sagrado direito de acesso à moradia, ao contribuir para que o preço da casa própria custe a fortuna que custa, produzindo Pinheirinhos e favelas por todos cantos e recantos do Brasil afora.

De qualquer forma, diante da resposta ousada de Dilma Rousseff – tanto mais legítima porque, como presidenta, não aliviou nem o país que governa – o personalíssimo âncora do Jornal Nacional não poderia apresentar senão essa coerente – tendo em vista o contexto trágico em que vivemos – observação: “Dilma Rousseff relativizou os direitos humanos”.

A absurda e surrealista coerência da observação de William Bonner está intimamente relacionada com a tragédia moderna: a política não é e não pode ser coletiva, logo também os direitos humanos não podem ser coletivos, de vez que devem ser vividos e concebidos como direitos individuais, particulares, isolados, razão pela qual a expressão “direitos humanos”, bem entendida, deve ser traduzida assim: direitos pessoais, personalíssimos, particulares, privados.

O modelo cubano

Vê-se, portanto, que William Bonner não falou nenhuma besteira, pois demostrou uma coerência absurda com a ordem trágica da modernidade. E é essa mesma mentalidade surrealista, vinculada à ordem trágica da modernidade, que está presente, estrategicamente, no imperialismo americano, quando pretende acusar esse ou aquele país de autoritário, terrorista, despótico, residindo aí, do uso consciente da tragédia moderna, a presença da blogueira cubana Yoani Sánchez em Cuba.

Com o fito de justificar o argumento precedente, comecemos pelo adjetivo que qualifica Yaoni Sánchez, blogueira. É evidente que o estereótipo modernamente trágico inscrito no adjetivo blogueiro é o que está implicado com o pressuposto de que ser blogueiro é usar individualmente, pessoalmente, diversamente a liberdade expressiva individualmente possível, num mundo em que a impessoalidade do sistema é intocável.

Por mais que possamos usar blogs de uma forma imprevista, contestando a ordem trágica moderna, de modo geral a proliferação de blogs na internet é uma consequência previsível do espaço delegado à ação política – ou criativa, ou expressiva, ou imaginativa – na sociedade burguesa: o espaço particular, pessoal, subjetivo, individual, isolado, impotente.

Embora tenha nascido em Cuba, Yoani Sánchez voltou para sua terra natal – lembremos que ela morava na Suíça – como “libertária” pessoalidade privada para, estrategicamente, opor-se, em nome da impessoalidade sistêmica, ao projeto cubano de uma coletividade política, o da ideia de comunismo, para dialogar com filósofo francês, Alain Badiou, não obstante as contradições não menos sistêmicas – como parte da tragédia moderna – inscritas no modelo cubano de construção de uma sociedade que ouse pensar e agir sem se submeter à tragédia moderna de um mundo em que a política só pode ser pessoal, individual, isolada, oligárquica, insular.

Nem o site da ONU tem tantas traduções simultâneas

Nesse sentido, é bom dizer com todas as letras: Yaoni Sánchez não reside/resiste “sofrivelmente” em Cuba para se opor ao suposto autoritarismo de seu país, mas para estar a serviço de uma trágica ordem sistêmica que faz de tudo, absolutamente de tudo, para que não venhamos, como povos, levar a cabo uma experiência política coletiva a favor do conjunto da sociedade – a única experiência realmente política, porque inevitavelmente conecta a dimensão coletiva com a individual.

Ela, portanto, está em Cuba como ativista do sistema trágico moderno, que confina a dimensão política humana às particularidades isoladas, retirando-a de seu legítimo e democrático cenário: o coletivo, o social, o do comum comunista direito de sermos livremente comumente cuidados por nossas comunidades, sem corruptos privilégios individuais.

Restaria, a partir daí, portanto, a seguinte pergunta: seu gesto de ativista do sistema trágico moderno é realmente pessoal ou patrocinado pela racionalidade impessoal e determinista da modernização tomada por uma oligarquia que tudo faz para evitar que o mundo seja todo nosso, porque de ninguém? Para quem tem olhos para ver, basta entrar em seu blog, Geração Y, para ver que existem menos mistérios no mundo que supõe nossa vã filosofia, para brincar com conhecida frase de Hamlet, protagonista da obra homônima de William Shakespeare.

Será que um blog com tradução simultânea para uma multiplicidade de línguas estrangeiras é tão acessível assim para os comuns pessoais criativos blogueiros mortais como eu, você, qualquer um? Se fosse tão fácil fazer um blog assim, por que nem mesmo o site da ONU tem tantas traduções simultâneas, para tantas diferentes línguas estrangeiras, como o blog de nossa heroína em questão?

O monopólio simbólico e cultural

É claro que Yaoni Sánchez é financiada sistemicamente para cumprir o papel que cumpre.

Imaginemos, a propósito, que fosse o contrário. Imaginemos que o Estado cubano financiasse um blogueiro americano para denunciar os coletivos direitos usurpados pelo governo americano e suas multinacionais no interior dos Estados Unidos e pelo mundo afora. Imaginemos, pois, uma Yaoni Sánchez americana, morando nos EUA, tramada pelo governo cubano para se opor à ditadura planetária americana? Estaria solto tal ousado blogueiro?

Se Política com P maiúsculo é realizável efetivamente quando assumimos a vontade humana no plano coletivo, como coletividade, é claro que fazer política, na atualidade, é não aceitar a inevitabilidade, a racionalidade, a impessoalidade do imperialismo americano, ou de qualquer forma de imperialismo e colonialismo, razão pela qual a política para valer só ocorre quando relativizamos o absolutismo da política pessoal, narcísica, oligarca, como despótica publicidade especulativa de si mesmo em detrimento da vida comum, do comunismo vital.

Dilma Rousseff, ao menos quando respondeu aos racionais jornalistas das mídias sistêmicas, fez política com P maiúsculo. Poderia continuar fazendo se opondo à especulação imobiliária, por exemplo, criando uma estatal da área da construção civil, financiada pela Caixa Econômica Federal, pelo Banco do Brasil e pelo BNDS, a fim de transformar o Brasil num país cujo território seja finalmente de seu povo. Poderia ao menos colaborar para acabar com a mentirosa e usurpadora racionalidade, impessoalidade e fatalidade do controle oligopólio dos meios de comunicação de massa, no Brasil.

Duas fundamentais ações políticas de históricas consequências para eliminar de vez as duas principais tragédias brasileiras modernas: a de o Brasil ser desde seu começo, na verdade, um imenso campo de concentração para o povo brasileiro, condenado a exilar-se em seu próprio território, seja em favelas, seja em viadutos, seja em Pinheirinhos, seja em Canudos periféricos e insalubres; e finalmente a moderna tragédia brasileira do monopólio simbólico, interpretativo, cultural de nossas pessoalidades sob o controle de uma casta hiperpessoal de brasileiros isoladamente felizes, em detrimento das coletividades e suas infinitas possibilidades de justiça, inteligência, alegria, quando detêm os meios de comunicação de suas não menos alegres e criativas coletividades expressivas, pensantes, socialmente mutável, nunca matável, indefinidamente.

***

[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]