Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Controle remoto não é liberdade de expressão

Ainda na campanha eleitoral de 2010, a então candidata à presidência da República Dilma Rousseff, quando questionada a respeito de uma possível proposta de regulação dos meios de comunicação que constava da versão inicial de seu programa de governo, declarou à imprensa que “o único controle social que existe é o controle remoto”. Estariam determinados ali os rumos que, pouco tempo depois, o governo federal tomaria no que tange ao novo marco legal da radiodifusão?

Até agora pouco se sabe a respeito. Afinal, o governo ainda não tornou público o teor do anteprojeto que revisa a legislação do rádio e da TV, em vigor desde 1962. Mas o fato é que a frase entoada pela então postulante ao cargo de presidente da República fez eco, ganhou adeptos dentro do governo e soa como música aos ouvidos dos radiodifusores. Tanto que durante o seminário de Políticas de (Tele)Comunicações, realizado em Brasília em meados do corrente mês, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, disse: “Se a TV tem conteúdo ruim, para isso tem controle remoto. Se o governo se mete a dizer o que é conteúdo bom e o que é ruim, nós vamos atolar na saída” (ver “Ministro afirma que marco regulatório está próximo”).

Ter em mãos o controle remoto, definitivamente, não significa liberdade de expressão, direito atingido na fala do ministro cujo conceito revela-se histórica e deliberadamente distorcido, esvaziado e privatizado pelos mandantes da grande mídia comercial. O simples ato de trocar de canal não garante que cidadãos e cidadãs, crianças e adolescentes, tenham garantidos pluralidade, diversidade nem qualidade de conteúdo. A TV aberta, em notório desrespeito aos princípios constitucionais contra o monopólio e o oligopólio – práticas prejudiciais ao livre fluxo de informação e de opinião – está concentrada em cinco grandes redes privadas de abrangência nacional (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!). Todas elas, é bom que se diga, com uma programação cada vez mais idêntica, de qualidade duvidosa e uma grade na qual ganha evidência a produção de conteúdos baseados em ideias importadas de grande sucesso comercial.

Princípios sem regulamentação

Ora, se a TV está ruim é sinal de que ela descumpre o que determina a Constituição (em especial o artigo 221) e as leis que regem (ou deveriam reger) o setor. Se a TV está ruim, poder concedente, juntamente com a sociedade civil organizada, deve agir de maneira democrática e participativa no sentido de que as emissoras de radiodifusão – concessões públicas outorgadas pela União a fim de prestar serviço público à sociedade – atendam a demandas de cidadania, de educação, de incentivo e promoção da cultura nacional e regional, além de zelar pelo pluralismo de fontes informativas e pela ética.

Em outra citação do ministro Paulo Bernardo, na Agência Carta Maior (ver “Novo marco da mídia vai a consulta pública”), também inserida no contexto do seminário, ele toca na falsa polêmica da censura: “A nossa Constituição não prevê o controle prévio de conteúdo a não ser em casos bem específicos, como na proibição de propaganda de cigarros, bebidas alcoólicas e agrotóxicos, como já é feito hoje”.

A respeito dessa questão, vale lembrar que a Constituição, em seu artigo 221, também prevê que a programação e a produção das emissoras de radiodifusão dê preferência a conteúdos educativos, culturais, artísticos e informativos e conceda espaço à regionalização de conteúdo e incentive a produção independente, princípios os quais se encontram desprovidos de regulamentação e, mais ainda, longe de ser respeitados pelos concessionários de rádio e TV, embora não se configurem em controle prévio ou censura.

O direito à liberdade de expressão

É fato que nossa lei maior não menciona em nenhuma de suas páginas a possibilidade de controle prévio do que será exibido em qualquer veículo de comunicação. Todavia, em seu artigo 220, parágrafo 3º, a Constituição estabelece que é dever da União, por meio de lei:

I – regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;

II – estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Destaca-se o inciso II, que vai de encontro ao discurso do ministro de transferir a responsabilidade dos concessionários de TV pela programação dita ruim no colo da sociedade, cuja tarefa única e exclusiva nesses casos seria a de “usar o controle remoto”. À exceção da Classificação Indicativa, que pôs em prática o que determina o inciso I com a portaria do Ministério da Justiça nº 1.220, de 2007, não se conhece qualquer “meio legal” que sirva de instrumento de defesa dos telespectadores diante de conteúdos que atinjam, por exemplo, a dignidade de pessoas ou grupos.

Como tem feito há décadas, o Estado se distancia de uma de suas tarefas primordiais, ou seja, elaborar e implementar políticas públicas de comunicação com vistas a garantir os direitos de cidadãos e cidadãs em sua relação com a mídia, como o direito à liberdade de expressão.

O medo de “censura”

É preciso deixar claro que controle social, longe de ser um mecanismo de censura, significa criar espaços ou mecanismos institucionalizados no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo – ou seja, os poderes concedentes – voltados à participação da sociedade na discussão, elaboração e acompanhamento de políticas públicas de comunicação, incluindo, por que não, o conteúdo. Embasados sempre pelo que preconizam a Constituição Federal e as leis do setor.

Afinal, se rádio e TV no Brasil são concessões públicas e devem prestar um serviço público, o que impediria uma participação maior da sociedade nesses meios? O próprio Conselho de Comunicação Social – órgão auxiliar do Congresso Nacional desativado desde 2006 – cumpria, em parte, o papel de exercer determinada incidência social no que tange às questões da comunicação, ainda que sem caráter deliberativo, mas apenas consultivo. Mesmo assim, tinha uma função fundamental sobre questões como: d) produção e a programação de emissoras de rádio e televisão; f) finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas da programação das emissoras de rádio e televisão; g) promoção da cultura nacional e regional, e estímulo à produção independente e à regionalização da produção cultural, artística e jornalística; i) defesa da pessoa e da família de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto na Constituição Federal; entre outras.

E não se deve esquecer: em 2009, foi realizada a 1º Conferência Nacional de Comunicação. Centenas de propostas foram apresentadas e aprovadas com o objetivo de democratizar o defasado modelo regulatório de comunicações. Elas têm que constar no anteprojeto que irá a consulta pública. Além, claro, da Plataforma por um novo Marco Regulatório, construída a partir de contribuição da sociedade, com base nas discussões e deliberações aprovadas na Conferência, e entregue ao ministro Paulo Bernardo.

Por fim, é uma pena que o governo continue falando a língua dos radiodifusores ecomece um debate tão caro à nossa democracia já totalmente pautado pelo discurso do empresariado da grande mídia. Em outras palavras, o medo de uma suposta censura sobre os meios pode determinar toda uma política regulatória das comunicações. Daí tudo muda, mas tudo continuará como hoje está. E se tudo continuar como está, não adianta trocar de canal!

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[Vilson Vieira Jr. é jornalista, Serra, ES]