Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O papel preventivo da imprensa

Fui procurado recentemente por um grupo de alunos em fase de coleta de material empírico para um trabalho de conclusão de curso e uma das perguntas era: “Acha que a imprensa deveria ter uma atuação preventiva para com os problemas da sociedade?”

A indagação fora feita num contexto de análise da receptividade da ideia do jornalismo público no Brasil. E digo ideia porque, no Brasil, o jornalismo público (civic journalism) não aconteceu de forma programática, mediante parcerias financeiras entre fundações e redações, como originalmente se deu nos Estados Unidos. No Brasil, o jornalismo público (que é muito mais um movimento do que um gênero) comumente é tomado como sinônimo de jornalismo estatal, o que é muito restritivo, pois as redações de empresas de mercado também se dedicam a coberturas de natureza estritamente social, cidadã e em apoio a movimentos e campanhas públicos, especialmente quando motivadas por organizações do terceiro setor, como é o caso da Agência de Direitos da Infância (Andi), em Brasília.

No Brasil, a forma de jornalismo público que possivelmente mais prosperou foi essa que resulta de parcerias informais entre ONGs e redações, fenômeno que em nossas pesquisas temos denominado de “coagendamento”, uma espécie de agenda-setting compartilhada, em contraste com o tradicional “agendamento” (da mídia para a sociedade) e com o que temos chamado de “contra-agendamento” (da sociedade para a mídia).

“Jornalismo é oposição, o resto é secos e molhados”

Nos Estados Unidos, foi difundida a sentença escrita por Robert M. Steele: “A tarefa dos jornais é confortar os aflitos e afligir os que estão acomodados”, acerca do papel ético do civic journalism. Um dos mais dedicados estudiosos do tema, o espanhol Carlos Álvarez Teijeiro, assim resumiu os principais mandamentos do jornalismo público, a partir dos textos de Emund B. Lambeth, um dos autores de fôlego no assunto:

“1. Escuchar sistemáticamente las historias e ideas de los ciudadanos manteniendo, al mismo tiempo, la libertad para elegir a cuáles de esas historias prestar atención. 2. Examinar maneras alternativas de enmarcar las historias a partir de los temas que resultan importantes para la comunidad. 3. Escoger aquellos enfoques, en la presentación de los temas, que ofrezcan la mejor oportunidad para estimular la deliberación ciudadana y la comprensión de los temas por parte del público. 4. Tomar la iniciativa a la hora de informar acerca de los problemas públicos sobresalientes en un modo que aumente el conocimiento del público acerca de las posibles soluciones y acerca de los valores comprometidos en los cursos de acción alternativos. 5. Prestar atención continua y sistemática a si la relación comunicativa con el público es creíble y de buena calidad.”

A literatura especializada não se refere expressamente ao desejado papel preventivo do jornalismo, mas, creio, cairia muito bem se fosse acrescentado aos seus deveres fundamentais. Afinal, muito antes de existir um jornalismo propriamente dito, já havia o provérbio segundo o qual é melhor prevenir do que curar, em outros termos, antes enunciar do que denunciar. A denunciação, no entanto, é a forma enunciativa que se tornou mais apropriada ao jornalismo ao longo dos séculos, especialmente em países nos quais se convencionou entender que a sua principal função é a da denúncia, como é o caso do Brasil. Mas essa expectativa vem de longe.

Atribui-se a editores ingleses e norte-americanos a máxima segundo a qual “notícia é denúncia, o resto é secos e molhados”. Vários jornalistas brasileiros já se apropriaram desse lema, por vezes convertido em “jornalismo é oposição, o resto é secos e molhados”, como no tempo da ditadura militar pós-64. Numa democracia, porém, não faz sentido esperar que a imprensa faça oposição política a quem quer que seja. Se se espera que a imprensa seja o Quarto Poder na estruturação de uma sociedade democrática e plural, não se espera, contudo, que ela se desempenhe como partido político, nem venha compor ou descompor, por exemplo, o que no momento se denomina de “base aliada”.

Calendário e agendas

A imprensa pode e deve ser oposição, mas no sentido dialético, do confronto argumentativo entre tese e antítese, o que, filosoficamente, potencializa o surgimento de uma síntese. Muitas autoridades e personalidades apegam-se à ilusão de que os repórteres têm de ser cooperativos em suas perguntas, e não inquisidores. Na verdade, jornalistas não estão em seu papel para afagar os poderosos, mas para afligi-los com relação às suas responsabilidades – políticas, civis, humanitárias etc. Não devem, entretanto, ultrapassar o estrito cumprimento do dever profissional de questionar, confundindo-o com interrogatório policial. Quando o jornalismo assume o papel intimidador isso se chama “publicidade opressiva”, classificação já incorporada ao jargão jurídico.

Certa vez, tive oportunidade de indagar a um dos editores do Washington Post sobre o não-engajamento do mesmo em relação às “aflições” das comunidades norte-americanas, entre elas a violência urbana e o consumo de drogas, ao que ele respondeu: “Já dá muito trabalho fazer um jornalismo de qualidade. Imagine cuidar de políticas sociais.” Ou seja, nem mesmo na pátria do civic journalism (nascido sob o patrocínio de magnatas altruístas) esse movimento deixa de ser polêmico. Sob esse prisma, caberia ao jornalismo tão somente o clássico papel de se ater aos fatos e nada mais além deles. E quando der opinião, deixar bastante claro para os leitores – e em local apropriado –, que se trata de análise e não de reportagem factual.

Seria demais, então, pedir do jornalismo um papel preventivo? Possivelmente, não. Afinal, jornalistas – sobretudo, os pauteiros –, são muito afeitos ao calendário e às agendas: Ano Novo, Carnaval, Semana Santa, Dias das Mães, Dias dos Namorados, Semana da Pátria, Dia da Criança, Finados, Natal e… roda tudo de novo, mas também problemas que são recorrentes, como enchentes, secas, incêndios, acidentes, tragédias, epidemias, endemias, pandemias etc.

Em Brasília, por exemplo, qualquer repórter de cidade poderia registrar na sua agenda, a partir de junho: “Verificar providências para que o Parque Nacional da Água Mineral não pegue fogo”, como acontece todos os anos. O mesmo vale para o Jardim Botânico, toda seca lambido pelas chamas.

Por que não prevenir?

Quando das últimas cheias e deslizamentos no Rio de Janeiro, uma emissora de TV foi aos arquivos e recuperou imagens de suas próprias coberturas ao longo de décadas. E o tom da matéria era algo como: “Crônica de uma tragédia anunciada”. Eu me lembro de uma charge publicada num jornal carioca, nos anos 1960: um cidadão acordava com água nos joelhos e abria inutilmente a torneira, para escovar os dentes. E Santa Catarina? Eu era jovem repórter (anos 1970 e 80) e já viajava para Santa Catarina a fim de acompanhar autoridades que iam “vistoriar” prejuízos das enchentes e anunciar verbas extras.

Faz sentido, portanto, cobrar do jornalismo que ele seja antecipatório, como já é tradição na economia, quando os comentaristas de mercado e finanças, de porte de dados, emitem advertências e previsões. Jornalistas, afinal, têm fama de “perdigueiros”. No seu faro vocacional, são quase premonitórios. Por que não previdenciários, no sentido de prevenir, antes das remediações? Seria o máximo se os repórteres investigativos conseguissem detectar precocemente sinais de desvios do dinheiro público e não ficar apenas dependendo do repasse de “grampos” realizados pela polícia, depois – como se diz numa ironia bem brasileira –, que a vaca já foi para o brejo.

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[Luiz Martins da Silva é professor da UnB e pesquisador do CNPq (“A ideia do pós-jornalismo”)]