Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Acusação sem prova

A mais recente visita a Cuiabá do senhor Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), deixou-nos a impressão de que os magistrados brasileiros estão muito mal representados por este desembargador de São Paulo. É que ele, no afã de defender a categoria que diz liderar, vez por outra não vacila em atropelar a realidade dos fatos. Imagino que, pretendendo bancar o combativo, na pretensa defesa de seus pares – como se combatividade fosse sinônimo de blasonaria –, o senhor Nelson Calandra só consegue mesmo revelar, em muitos momentos, uma absoluta falta de bom senso.

Em palestra que proferiu na calorenta capital de Mato Grosso na terça-feira (27/3), o desembargador Nelson Calandra constrangeu quem o ouvia e cuidou de espalhar uma nova e surpreendente teoria da conspiração. De acordo com o presidente da AMB, existiria neste estado um grupo de sites que estariam sendo patrocinados por criminosos com o único e absurdo objetivo de denegrir a imagem de magistrados da região. Isso mesmo: Nelson Calandra aventou a hipótese de criminosos terem resolvido investir com tudo na blogosfera para tentar jogar na lama a honra de juízes e desembargadores. Fiquei curioso para sabe se o senhor Nelson Calandra, além de ocupar os ouvidos de seus ocasionais espectadores, expôs algum dado, algum documento que garantisse sustentação à sua tese. As reportagens sobre a palestra, no entanto, registram apenas o rasgo de oratória do inquieto visitante.

Os limites da legalidade

Um rápido passeio pela internet me revelou que esse discurso terrorista não é novo na boca do senhor Nelson Calandra. Em 18 de janeiro deste ano, em sua edição eletrônica registrava o Jornal do Brasil as seguintes palavras do desembargador: “Há mobilizações de organizações criminosas em vários estados se especializando em acusar magistrados de corrupção, tudo para bloquear a ação da justiça criminal. Isso já aconteceu em Goiás e no Pará”.

Quer dizer, de acordo com o boquirroto presidente da AMB, a trama contra a magistratura é enorme, virulenta, mortal – mas parece que tem um só problema: só consegue ser enxergada por ele mesmo. Nos exageros de seus discursos, Nelson Calandra já chegou a afirmar que “não existe juiz ladrão no Brasil, nem bandidos na magistratura”. Quando alguém fala que há ladrão no judiciário, argumenta ele, comete um erro ou, talvez, a julgar por sua tese sobre os sites, divulgada em Cuiabá, um crime.

Ora, o que para mim fica logo evidente é que, ao sustentar um discurso desses, expelido sem qualquer pudor, o desembargador Nelson Calandra me leva à conclusão de que é dado a delírios descontrolados e que tenta inventar conspiradores aos quais atribuir a responsabilidade por fatos e acontecimentos que ele não conseguiu, até agora, justificar de outra maneira. Enquanto toda a nação vibra com o processo de faxina no Judiciário, que vai sendo imposto ao país pela ação cotidiana do Conselho Nacional de Justiça, o senhor Nelson Calandra argumenta contra toda lógica e contra tudo que se tem visto e que tem sido revelado, pelo noticiário, nestes últimos meses.

Como modesto ativista da internet, onde divulgo cotidianamente minhas opiniões através de um blogue de matriz cuiabana, gostaria que o douto Nelson Calandra, dadas as responsabilidades da função que exerce, apresentasse os fatos de que dispõe contra os sites que acusa genericamente. Ou, então, que ele tenha a necessária humildade e cale a boca até se prevenir com algum tipo de prova aceitável. Quando se trata de criminalizar os sites, o ilustre e ilustrado presidente da AMB pode não ter exemplo para dar, mas no caso dos magistrados que romperam os limites da legalidade, os exemplos, infelizmente, são gritantes.

Ataque irresponsável

Aqui em Mato Grosso, como talvez muitos já saibam, muito recentemente, nada menos que 10 (dez) magistrados da alta cúpula do Judiciário foram punidos com aposentadoria compulsória pelo Conselho Nacional de Justiça por envolvimento em corrupção no chamado Escândalo da Maçonaria. (Há quem diga que aposentadoria compulsória não é punição, é prêmio – mas essa é uma discussão para outra hora.) Esse é um fato ao qual nossos sites e blogues mato-grossenses vêm dando grande e merecido destaque desde que o escândalo veio à luz, em 2009, investigado pela corregedoria de Justiça do Tribunal de Justiça e, depois, levado a julgamento no Pleno do CNJ.

O destaque continua porque o caso ainda não teve um deslinde. Punidos pelo CNJ, os 10 magistrados conseguiram uma decisão, no Supremo Tribunal Federal, por intermédio do ministro Celso de Mello, em sede de liminar, que os devolveu provisoriamente às suas funções. Estes 10 magistrados já se encontram, por isso mesmo, há quase dois anos em atuação sub judice sem que o STF se apresse em pacificar a questão. É fácil imaginar a insegurança jurídica imposta a quem recorre à Justiça em Mato Grosso diante de tal realidade – a de contarmos, no Pleno de nosso Tribunal de Justiça, com nada menos que 10 julgadores já punidos porém ainda não definitivamente afastados ou definitivamente reincorporados e que ficam pairando sobre nosso Judiciário em uma situação que me permito caracterizar como permanentemente esdrúxula.

Será que o senhor Nelson Calandra caracterizará como criminosa essa nossa inquietação diante desse julgamento abortado que martiriza a alma do Judiciário de Mato Grosso? Fico imaginando, neste episódio, quem serão os criminosos que o senhor Nelson Calandra tenta inventar. A documentação sobre o Escândalo da Maçonaria (que acabou motivando a punição dos 10 magistrados mato-grossenses), que meu blogue divulgou em primeiríssima mão, foi toda ela produzida em instâncias do Judiciário brasileiro. Nada me foi repassado pelo PCC, pelo Comando Vermelho ou pela quadrilha do comendador Arcanjo (assim como Goiás tem o Carlinhos Cachoeira, nós, em Mato Grosso, temos o nosso bicheiro Arcanjo, também notório no noticiário nacional).

Por que, então, ao invés de comemorar o aperfeiçoamento das práticas da magistratura que processos como este propiciam, fica o senhor Nelson Calandra se entregando a delírios injustificáveis? Por que é que ele cuida de atacar setores da imprensa sem relacionar provas e não demonstra a humildade necessária quanto a este processo de depuração por que passa o Judiciário brasileiro, desde que o controle externo da magistratura se consolidou com a ativação do Conselho Nacional de Justiça?

Quem vê a AMB sob comando deste senhor Nelson Calandra não pode deixar de sentir saudade dos tempos, mais equilibrados, em que a entidade era presidida pelo juiz pernambucano Mozart Valadares, recentemente convocado para compor a qualificada assessoria do ministro Ayres Brito, assim que Ayres Brito assumiu o comando do STF e do CNJ.

Se existe um escândalo, neste caso da palestra do senhor Nelson Calandra, imagino que este escândalo não esteja na possibilidade da existência de sites controlados por criminosos – o que, conforme todas as evidências, não passa de fabulação irresponsável por parte do atual presidente da AMB – mas, sim, no tom do seu discurso e de suas acusações contra quem faz jornalismo na internet, em Mato Grosso – e que não pode deixar de repudiar esse ataque genérico, impreciso e, por isso mesmo, marcadamente irresponsável.

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[Enock Cavalcanti é jornalista e advogado]