Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Memória de uma cidade sitiada

No dia 12 de maio de 2006, quando o crime mostrou sua força em São Paulo e deixou uma população de mais de 40 milhões de pessoas apavorada, com medo, e a polícia completamente desnorteada, confesso que eu já esperava. Durante anos me perguntei como seria o dia em que os criminosos soubessem a força que tinham e se organizassem. E a resposta veio no final daquela manhã e nos dias seguintes.

Passados seis anos muita coisa mudou. O crime se organizou ainda mais dentro e fora dos presídios. Os setores de inteligência da polícia e do sistema penitenciário também se prepararam. A maioria das mortes ficou sem esclarecimento. E pouca gente foi punida.
Naquele dia, milhares de pessoas voltaram para casa, o comércio e a indústria fecharam, o trânsito em São Paulo ficou caótico, telefonemas e mais telefonemas para pais, filhos, irmãos, maridos e mulheres informando que estavam bem e a caminho. Algumas emissoras de rádio chegaram a noticiar toque de recolher.

A demonstração de impotência da lei e da ordem diante do crime organizado estava mais do que caracterizada. Nos mais de 30 anos como jornalista na área policial acompanhando o dia a dia da violência, do trabalho da polícia, da Justiça, do sistema carcerário, jamais tinha visto uma situação daquelas. Pessoas em pânico querendo voltar rapidamente e trancar-se em casa.

“Agora não dá mais”

Um pequeno grupo de criminosos organizou e liderou de suas celas, através do celular e de recados passados por advogados, os ataques que terminaram com a morte, segundo dados oficiais, de 154 pessoas: 24 militares, 11 policiais civis, 9 agentes penitenciários e 110 civis entre eles 79 que seriam ligados ao crime organizado, o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Ônibus e carros foram incendiados, quartéis, delegacias, estações de trens e metrô atacados, metralhados. Muitas pessoas foram presas e poucas ficaram atrás das grades. O motivo dos ataques e das rebeliões: a extorsão de 300 mil reais praticada quase um ano antes por dois investigadores da Polícia Civil contra o filho adotivo de Marcos Herbas Camacho, o Marcola, apontado na época como o chefe do crime organizado. Os policiais sabiam quem era o rapaz, exigiram o dinheiro para libertá-lo e somente o liberaram após a entrega dos 300 mil reais. Marcola, que mandara pagar, afirmou a um carcereiro que aquela atitude “não ia ficar barato”. 

Os órgãos de segurança souberam da movimentação nas cadeias semanas antes. Remanejaram 776 presos ligados ao PCC para diversos penitenciárias e centros de detenção na tentativa de abortar o que acreditavam ser uma sequência de rebeliões no sistema carcerário do estado de São Paulo. Ao mesmo tempo isolaram os chefes da facção criminosa.

Nem a polícia nem os responsáveis pelo sistema penitenciário acreditaram na força dos criminosos. Quando a cúpula da Secretaria da Segurança teve certeza que o crime iria colocar São Paulo “de joelhos”, decidiu levar os chefes da organização criminosa dos presídios de segurança máxima, no interior de São Paulo, para a sede do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), na zona norte da capital.

Na reunião com os delegados, um dos policiais pediu a Marcola que parasse com o que fora determinado. Se desse a ordem, a transferência dos presos seria revista. “Agora não dá mais, doutor”, respondeu. “Vocês pagaram para ver. E vão ver!”

Fora de serviço

E foi exatamente o que se viu. Em oito dias, o governo contou 373 ataques. As rebeliões aconteceram em todos os presídios e também nas unidades da então Febem – atual Fundação Casa –, onde atuava o PCC Jovem. Alguns criminosos foram processados e condenados pela morte de militares, policiais civis e agentes penitenciários. Mas as mortes de inocentes pelas forças policiais não foram esclarecidas. Os confrontos teriam deixado um saldo de 493 mortos a tiros – 475 homens e 18 mulheres – entre 12 e 20 de maio em todo o estado, e não apenas os 154 oficiais.

Um estudo realizado pela ONG Justiça Global e pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade Harvard lançou uma série de dúvidas e interrogações sobre o que aconteceu naquele maio de 2006. Um relatório com 251 páginas preparado com base em registros da Secretaria da Segurança e do Instituto Médico Legal revelou o envolvimento de policiais em 122 das 493 mortes. O estudo com o título “São Paulo sob achaque” citou a corrupção dos agentes públicos de segurança que teria fortalecido o PCC em sua organização dentro e fora dos presídios.

O levantamento afirmou também que o Estado ”teria falhado em gerir seu sistema prisional realizando acordos com facções criminosas, não protegendo seus agentes públicos, ao acobertar os crimes de maio ou investigá-los de forma corporativista”. Dos mortos, segundo o estudo, 62% tinham entre 21 e 41 anos, com média de 5,8 tiros cada um.

A Corregedoria da Polícia Civil concluiu que o sequestro e a extorsão do filho de Marcola pelos investigadores identificados, processados e demitidos “ajudou a deflagrar a revolta do PCC”.

A ONG Justiça Global acrescentou que dos agentes públicos mortos, a maioria estava fora de serviço, sendo atacados “em emboscadas organizadas supostamente pelo PCC. Depois disso começam as mortes de civis justamente quando cessam os ataques aos agentes e prédios públicos”.

Sem saber

A mídia tinha pouca ou quase nenhuma informação sobre o início do ataque do crime organizado. Alguns jornalistas conseguiram saber o que ocorrera, mas, como a polícia, não tinham noção do que poderia acontecer. A conduta da polícia e do sistema penitenciário passou a ser analisada e, pela cobertura, chegou-se à conclusão que os criminosos estavam mais bem organizados em seus ataques do que a polícia preparada para defender a população. 

A reunião dos delegados com os chefes do crime organizado, na madrugada de uma sexta-feira para o sábado, chegou ao conhecimento da mídia no domingo quando a violência já atingia todo o estado em ataques a delegacias, quartéis e estações. A morte de um bombeiro na zona norte de São Paulo chamou a atenção de parte da população e foi explorada pelos meios de comunicação. O soldado estava na porta do quartel quando foi chamado por dois homens em uma moto e executado a tiros.

A situação começou a se acalmar depois de outra conversa da polícia com os chefes da facção criminosa. Quatro dias depois as rebeliões terminaram nos presídios, mas os ataques nas ruas continuaram. A mídia explorou muito os danos provocados pelos atentados. A sequência de mortos também passou a fazer parte do noticiário dos jornais, das rádios e tevês. Mas com a situação de normalidade o assunto saiu do noticiário. E isso infelizmente acontece. Basta aparecer um fato novo.

Os jornais deixaram de acompanhar as investigações. As emissoras de tevê, sem imagens, acabaram dando pequenas notas. Seis anos depois não se sabe o que aconteceu com os acusados das mortes, se todos casos foram apurados, se houve punição aos envolvidos. Um fato tão grave como esse, com quase 500 mortos, jamais poderia ser esquecido pela mídia.

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[Renato Lombardi é jornalista]