Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A honestidade, quem diria, virou notícia

Ao mesmo tempo em que a cassação de Demóstenes Torres e o julgamento do mensalão ocupavam as páginas de jornais e o espaço de política na TV, lá num cantinho dos jornais aparecia uma notícia diferente: um casal de catadores de lixo devolveu 20 mil reais roubados de um restaurante em São Paulo. Rejaniel e Sandra mereciam, sem dúvida, muito mais espaço do que todos os políticos de ficha suja que andam de cabeça erguida e peito inflado pedindo aos pobres eleitores que os ajudem a manter o emprego que rende, por ano, muitas vezes mais do que o dinheiro devolvido aos verdadeiros donos. E que rendem, para tristeza de leitores e eleitores, páginas e páginas de notícias desagradáveis.

Os políticos em campanha, o programa “Minha Casa, Minha Vida”, as ONGs que se preocupam em ajudar os pobres e as igrejas estão perdendo uma grande oportunidade: transformar Rejaniel e Sandra (os catadores de lixo de São Paulo) em garotos propaganda de suas causas.

Com 45 mil resultados no Google, o casal do Tatuapé bem que poderia ganhar mais do que os famigerados 15 minutos de fama. Fama, aliás, mais do que merecida por uma boa ação. Por enquanto, ganharam a promessa de um aprendizado de trabalho e, na sequência, um emprego. Para o casal, que já teve casa própria e emprego, isso vale mais – e a avaliação foi do próprio Rejaniel – do que 20 mil reais encontrados na rua.

Notícia em todos os grandes jornais e na TV, os dois comemoraram o almoço (bife, arroz e batata frita) consumido na mesa do restaurante servido em prato limpo, com direito a talheres e tudo mais: “Uma vez na vida eu me lembrei que sou gente. Há tanto tempo eu não me sento para ter uma refeição tão boa”, disse Rejaniel, que ganha, em média, 100 reais por mês. Com esse “salário”, para juntar os 20 mil reais, teria que trabalhar mais de 16 anos e meio, sem gastar nada. “Melhor ter o seu dinheiro suado do que usar um dinheiro roubado”, afirmou.

Lembrança permanente

Deles ficamos sabendo a média mensal de ganho, e lá no meio das milhares de citações do Google, foi possível descobrir também que Rejaniel trabalhava em limpeza, chegou a comprar uma casinha na periferia de São Paulo, mas, desempregado, acabou morando na rua e catando lixo.

A imprensa poderia usar esse casal como exemplo, pesquisar os casos semelhantes e fazer uma reportagem tipo “antes e depois”, mostrando o que aconteceu com outras pessoas que também foram notícia por sua honestidade. Celebrados na hora, o que aconteceu com eles em seguida? O que vai acontecer com Rejaniel e Sandra? Se levarmos em conta o modo como os jornais e as emissoras de TV agem hoje em dia – preocupados apenas com o imediato – dificilmente ouviremos ou leremos alguma coisa sobre esse casal no futuro. A notícia, da segunda-feira (9/7), já desapareceu da mídia. Exceção foi o artigo do antropólogo José de Souza Martins (Estado de S.Paulo, 15/7/12), que fala da simples e velha honestidade:

“Quando a honestidade surpreende e dela se desconfia é porque alguma coisa essencial está mudando na sociedade. É o que incita à compreensão sociológica dessa reação, suas ocultações e seus significados no recente caso da devolução, ao dono de um restaurante, dos R$ 20 mil que lhe foram roubados. O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral, bem-vindo como indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao dono desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia. O homem que achou o dinheiro declarou que gostaria que sua mãe o visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão. Lançado para a margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que é, o antimoderno sentido da honra. Por incrível que pareça, a maioria das pessoas é honrada e faz parte dessa imensa massa invisível dos não notados. Um trabalhador dedicado ao seu trabalho, ou um professor devotado ao ensino e à formação de seus alunos, terá pouquíssima chance de ser aplaudido, mesmo por quem de seu trabalho se beneficia. No entanto, eles têm o que lhes basta como nutrição moral: o sentido da honra e a honestidade. Já não se fala disso, mas os sociólogos sabem que uma das carências humanas destes tempos de liquefação dos valores é a da honradez e da honestidade, o alimento que sacia os que não foram vencidos, os que se mantiveram antiquadamente honestos.”

Nesses tempos de campanhas eleitorais, Rejaniel e Sandra podem ser usados pela mídia como um lembrete permanente aos políticos, e principalmente aos eleitores, sobre os valores que ainda temos e que devem ser cultivados e cobrados.

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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]