Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O MP e as medidas protetivas para o bom jornalismo

A recomendação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para que os promotores priorizem os crimes praticados contra jornalistas é da mais alta importância para a democracia pelo que representa a imprensa em um regime de rédeas soltas e improbidades que nunca são punidas, fortunas do povo jamais devolvidas e julgamentos nem sempre justos. Enquanto uns tiram a força da imprensa, como foi o caso da dispensa do diploma para o exercício da profissão de jornalistas, outros tentam compensar as perdas com medidas protetivas para o bom jornalismo, como essa proposta pelo conselheiro do CNMPAlmino Afonso Fernandes.

Ao justificar a recomendação para que os promotores priorizem os crimes contra jornalistas, Fernandes escreveu que “os membros do Ministério Público brasileiro, observadas as disposições constitucionais e legais, deverão atuar de forma célere, rigorosa e preferencial na apuração dos crimes praticados em face de jornalistas, apresentadores e demais integrantes da imprensa, por configurarem violação ao direito fundamental à liberdade de expressão”.

Fernandes cita a Declaração de Santiago sobre a Liberdade de Imprensa na América Latina, aprovada no encontro das Associações de Imprensa da América do Sul em abril deste ano.

O coronel não foi a julgamento

Segundo a Declaração de Santiago, 29 jornalistas foram mortos na América Latina em 2011, o que representaria um terço do total de profissionais da informação assassinados no mundo inteiro. Fernandes tem razão. Nos seis primeiros meses de 2012 quatro jornalistas já morreram no Brasil em crimes relacionados ao exercício da profissão, como informa o Comitê para Proteção dos Jornalistas, organização internacional que defende “o direito de jornalistas fazerem reportagens sem medo de represália”.

Esse mesmo comitê revela que aproximadamente 70% dos assassinatos de jornalistas registrados no Brasil nos últimos 20 anos não foram totalmente esclarecidos. Devido à crescente insegurança, o Comitê chegou a publicar, este ano, um Guia para Segurança de Jornalistas. O alerta do Comitê para Proteção dos Jornalistas e as recomendações do CNMP são relevantes e procedentes. Falo isso com a autoridade de quem testemunhou dois golpes mortais contra a liberdade de expressão: primeiro foi a execução do repórter do Correio Braziliense Mário Eugênio, morto com cinco tiros disparados a mando de militares do Exército e da cúpula da Polícia Civil de Brasília, em 1984.

Fiz a minha parte na investigação do caso e o imortalizei no livro Distrito Zero (Maza Edições, 2000). Logo após o seu lançamento em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a prisão do pistoleiro Divino 45, que fez os sete disparos na cabeça do repórter. Ele estava em liberdade, com fama de doido (foi dado como inimputável) e, naturalmente, sob a proteção dos homens do então secretário de Segurança e ex-integrante do Serviço Nacional de Informação (SNI), coronel Lauro Rieth.

O meu esforço para punir os culpados teve o reconhecimento do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) que, na revista comemorativa de seus 40 anos (Projeto Memória), incluiu-me como o único jornalista do país a fazer parte deste documento histórico ao lado do extraordinário desembargador Edson Smaniotto, o juiz do caso que mandou prender preventivamente o coronel Rieth a pedido do promotor Paulo Tavares Lemos, outro entrevistado. Infelizmente o coronel não foi a julgamento.

A farsa e as fraudes

Meu colega foi executado em praça pública porque denunciava o envolvimento de policiais civis e militares do Exército no Esquadrão da Morte. Foi um crime anunciado porque o Correio Braziliense permitiu que ele fosse desarmado dentro da redação e sucumbiu diante da perseguição policial comandada pelo coronel Lauro Rieth, ao não assumir uma postura editorialmente enérgica para evitar o pior. Reclamei isso várias vezes com o então editor-executivo da redação do CB, Fernando Lemos, falecido recentemente, que exigia a apuração do caso como um crime militar, já que o repórter foi abatido com armas das duas corporações – civil e militar – e o crime foi planejado dentro do Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC) e da cúpula da Polícia Civil. Rieth chegou a redigir uma portaria proibindo a entrada do jornalista nas repartições policiais pouco antes do crime.

Não obstante todo esse drama, fui vítima, dias antes do lançamento do Distrito Zero, de um outro crime contra a liberdade de expressão que também imortalizei no livro de minha autoria (A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou meu lugar no banco dos réus). O livro relata uma trama diabólica da polícia mineira que resultou no misterioso assassinato de minha mulher – mãe de meus cinco filhos – e dos dois indivíduos que a executaram. Para completar o serviço, indiciaram-me como autor do crime em represália às minhas denúncias contra a banda podre da polícia que comandava vários esquemas de corrupção integrada pelos maus elementos das duas corporações.

Escapei-me dessa enrascada por razões afetivas e de caráter, os laços de família (minha e de minha mulher, que me defenderam com o amor que sempre dediquei a elas), a verdade e a coragem porque não vergo ante a opressão, nem sob tortura. Meu advogado Marcelo Leonardo provou na justiça toda a farsa arquitetada para silenciar-me e as fraudes – colocaram uma arma nas proximidades do local onde a minha mulher foi morta e fraudaram laudos, algo tão absurdo que a Justiça inocentou-me à unanimidade em todas as instâncias.

A fama da imprensa

Mas os delegados, peritos, promotores que fizeram isso comigo, cujos nomes relato no livro, continuam impunes porque no Brasil prevalece a máxima de que polícia não prende polícia e a Justiça, que detectou toda a fraude (depenaram o processo com supressão e troca de documentos), julgou apenas o meu caso. Cabia ao órgão corregedor da Polícia Civil avocar o inquérito para expulsar os bandidos da corporação para o bem do serviço público, mas nada disso foi feito porque a coisa funciona assim no Brasil.

Neste processo louco de mais de duas mil páginas, nunca lido por repórter nenhum deste país, apesar do caso ter parado até o Fantástico da TV Globo, até o Ministério Público, que sempre defendi e tive como parceiro, falhou por incompetência dos que atuaram no caso, assim como falhou a imprensa, que foi igualmente covarde. Não guardo mágoa destas instituições. Pelo contrário, glorifico-as como baluartes da democracia. Foram ações individualizadas. Tenho um respeito muito grande pelos promotores e juízes da comarca onde trabalho e sou igualmente respeitado pela polícia local. Vejo hoje um MP bem mais atuante e uma polícia muito fiscalizada. Pena que não posso dizer o mesmo da classe jornalística que está à deriva, vendendo opinião por razões que todos sabem.

Portanto, precisamos urgentemente de lavar a nossa roupa suja para expurgar o rótulo nojento da polícia de que jornalista não pune jornalista e a fama maldita de que a imprensa está cada vez mais comprada. Cobra-se para falar bem, recebe-se para omitir fatos de interesse público e mete-se o pau, com ou sem razão, naqueles que ignoram os pedidos de jabás ou acertos comerciais.

“Bate, mas escuta”

Quando um ou outro repórter resolve afrontar os poderosos é calado pela ameaça de desemprego, corrompido ou sepultado como profissional ou literalmente a sete palmos de terra como herói morto. Nesta mesma cova profunda temos os tombados pela ideologia proibida (os Herzog da vida) e um punhado de jornalistas vítimas das mais variadas formas de perseguição.

É por essas e outras razões que defendo a criação de um Conselho Federal para o controle interno do exercício da profissão de jornalistas e a volta urgente da exigência do diploma que foi, para mim, o maior crime que se praticou contra a categoria em toda a sua história no país. Hoje, qualquer cidadão de bem ou bandido pode obter o registro de jornalista no Ministério do Trabalho e gozar das prerrogativas da profissão e das garantias constitucionais que lhe são dadas pela “profissão de jornalista” assinada na carteira de trabalho.

Infelizmente, temos uma imprensa subjetiva que, como dizia o meu amigo e guru Dídimo Paiva, não ouve os dois lados. Os motivos são vários: incompetência, falta de ética ou total ausência de capacidade cognitiva para o exercício da profissão, porque têm esses repórteres de merda uma visão holística completamente diferente do jornalismo objetivo que lembra Temístocles que, ao se rebelar contra as ordens do general que o comandava (meio século antes de Cristo), não se intimidou e bradou em tom de desafio: “Pode bater, mas escuta.”

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[José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG]