Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O pavão Assange

Do jeito que ele gosta, Julian Assange ocupa o centro do noticiário mundial. Quando escrevo, o australiano ainda está na embaixada em Londres do Equador, país que lhe concedeu asilo. Mas o governo britânico não deixa que ele saia. Quer despachá-lo para a Suécia, onde Assange é réu em dois casos de abuso sexual.

Assange foi um dos fundadores, em 2006, do site WikiLeaks, especializado em receber e divulgar informações confidenciais. Da cientologia aos defensores do aquecimento global, passando por governos e corporações, muita gente apanhou com a divulgação de documentos secretos por essa tropa combativa. Assange montou um esquema de sonho para um ególatra: no WikiLeaks, todo mundo é anônimo, menos ele.

Os nomes dos informantes são segredos. Os principais colaboradores são conhecidos apenas pelas iniciais. Mas, ele, Assange, dá entrevistas, escreve artigos, assume com gosto o papel de messias da transparência total.

Transparência que ele próprio não pratica. O WikiLeaks funciona em meio a paranoia e segredos, à moda de uma seita. E Assange sempre escondeu sua história de vida. Só em 2010 o repórter Raffi Khatchadourian, da revista “New Yorker”, descobriu algumas coisas: padrasto violento, mãe hippie contestadora e nômade (até os 14 anos de idade, Assange mudou 37 vezes de casa).

O paladino e o perseguidor

O WikiLeaks fez estragos importantes e merecidos desde o começo. Mas Assange só assumiu o papel de celebridade mundial em 2010, quando procurou revistas e jornais respeitados de EUA e Europa para investigar toneladas de documentos secretos da diplomacia americana.

Foi uma grande sacada. Trouxe o WikiLeaks, até então uma operação de fringe, para o domínio da mídia respeitável. Usou a perícia de jornais como Guardian e New York Times de mergulhar em documentos, detectar o que tem interesse jornalístico e transformar isso em reportagens.

Mas, como disse Fernando Rodrigues na Folha de 15/8, também decretou o início do fim do Wikileaks: “Os meios de comunicação tradicionais aprenderam o caminho. Vários já usam sistemas on-line, recebem dados e preservam as fontes”.

A organização se esgotou, mas Assange obteve a fama.

Em abril passado, participei de uma feira de televisão, em Cannes. O glamour e a visibilidade não se comparam, mas local e estrutura são os mesmos do famoso festival de cinema.

A fachada do Palais des Festivals estava coberta por um cartaz imenso, anunciando “The World Tomorrow”, um talk show apresentado por Assange no Russia Today, RT, canal bancado pelo Kremlim para ser tipo uma Fox News “alternativa”.

O programa ia ao ar do apartamento dele. Entrevistado do primeiro dia: Hassan Nasrallah, do grupo terrorista Hizbollah.

Seguiram-se outros do mesmo naipe, até chegar a vez de Rafael Correa, presidente do Equador, país que acabou lhe oferecendo asilo. O paladino da liberdade era acolhido por um perseguidor de jornalistas.

Arauto da revolução

Inescapável, também, a ironia de o cofundador do WikiLeaks ganhar espaço no RT, sustentado por Vladimir Putin, de notório histórico de “transparência”.

Mais irônico ainda que, justo na semana em que se decide o destino de Assange, o mesmo governo Putin que lhe dedica tantas mesuras tenha voltado forças contra três meninas do coletivo anarcopunk Pussy Riot.

Em fevereiro, as “punkettes” do Pussy Riot invadiram a catedral do Cristo Salvador, em Moscou. Dançando e pulando, cantaram um rock tosco exigindo a saída de Putin.

As três foram a julgamento, sob risco de cana brava por vandalismo. Escrevo antes do veredicto. E leio no site da Economist que, na quarta-feira (15/8), o trio teve direito a considerações finais. Foi um discurso histórico de Maria Alyokhina, Yekaterina Samutsevich e Nadezhda Tolokonnikova (esta última de uma beleza desconcertante, “riot girl” do Volga).

Assim descreveu a revista: “Elas falaram de arte, de liberdade, da busca por significados, tudo pontuado por referências aos Evangelhos, aos ‘Ensaios’ de Montaigne e à ‘humildade ontológica’”.

Nada disso faz parte da visão de Julian Assange.

Idi Amin acabou na Arábia Saudita, Anastasio Somoza se exilou no Paraguai, carrascos da Segunda Guerra vieram parar na Bolívia, na Argentina e no Brasil.

Se não for preso no caminho do aeroporto, Julian Assange, que parecia arauto de uma revolução jornalística, entra para o rol dos exilados em destinos exóticos. Uma espécie de pária, mas um pária famoso. Deve estar feliz.

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[Álvaro Pereira Júnior é colunista da Folha de S.Paulo]