Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um passo gigantesco da educação brasileira

O assunto é de extrema importância, mas talvez tenha sido ofuscado pelo julgamento da Ação Penal 470, o famigerado “mensalão”, pela CPI do Cachoeira, pela greve dos servidores federais, pelas eleições municipais ou, ainda, pela novela global. Na verdade, o que tem saído na imprensa burguesa sobre a Lei de Cotas são sempre críticas, desaforos e inconformismos de representantes atuais da Casa Grande, em total descompasso com os anseios da Senzala.

A mídia empresarial brasileira, endossada pela elite conservadora e por boa parte da classe média “metida a rica”, vomitou ferozmente todo o seu racismo e preconceito social após Dilma Rousseff sancionar a Lei de Cotas. “Vai piorar o ensino superior público brasileiro”; “acabou a meritocracia como critério de seleção nas universidades”; “o problema não é a universidade, mas o ensino de base”; “é um tiro no pé, pois só vai aumentar o racismo e o preconceito contra alunos de escola pública”, entre outros, foram alguns dos argumentos tacanhos reiteradamente explorados pelos arautos defensores da educação de privilégios travestidos de jornalistas e analistas políticos.

O que causou tamanho chororô nas hostes conservadoras foi o fato da Lei de Cotas reservar 50% das vagas nas universidades e demais instituições de ensino superior federais para alunos oriundos da rede pública, ou seja, 120.000 das cerca de 240.000 vagas nestas instituições federais terão de ser – obrigatoriamente – destinadas a estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas. Dentro desse universo de 50%, 25% serão reservados a alunos que possuem renda familiar mensal igual ou inferior a um salário mínimo e meio, valor hoje em torno de 933 reais. Os outros 25% se destinarão a estudantes negros, pardos e indígenas, de acordo com a proporção populacional dessas etnias em cada estado brasileiro. As universidades brasileiras terão quatro anos para se adequar à nova lei, sendo que em 2013 já têm a obrigação de reservar 25% das vagas aos cotistas.

Chance aos que nunca a tiveram

Desta forma, está absurdamente claro que a lei, ao ombrear as condições de acesso à educação superior entre o ensino particular e o ensino público, entre o rico e o pobre, entre o branco, o negro, o pardo e o índio, representa um passo gigantesco da educação brasileira no sentido de democratizar as oportunidades para todos, independente das condições econômicas e étnicas – que sempre serviram para aprofundar o fosso das desigualdades sociais e raciais –, a partir da perspectiva de igualar os historicamente desiguais. O pior cego é aquele que não quer enxergar isso!

De fato, as cotas não são a fórmula mágica ou o truque final para eliminar as iniquidades brasileiras, que são parte da nossa estrutura social, principalmente no acesso à educação superior, mas são, certamente, um dos meios mais eficazes de mitigá-las em curto e médio prazo, sendo extremamente necessárias no atual contexto, portanto. Decerto, as cotas não atacam a raiz do problema, o cerne da questão, posto que esta solução repousa em um amplo programa nacional suprapartidário de investimento maciço e de revalorização do ensino público, desde as creches, passando pela séries alfabetizantes, pelos ensinos fundamental e médio e desembocando, finalmente, nas universidades. Dentro desse processo, os professores precisam igualmente ser bem mais valorizados, com salários muito além dos atuais e condições de trabalho dignas. O método de ensino-aprendizagem também teria de ser revisto, com a pedagogia freireana assumindo papel primordial nessa nova ideologia educacional. Sem sombra de dúvidas, um largo salto no desenvolvimento crítico-analítico dos estudantes seria possibilitado.

Contudo, essa geração de brasileiros, a próxima e, provavelmente, a que virá após a próxima, não podem mais esperar esse dia chegar. À Senzala urge que o Estado brasileiro lhe dê condições objetivas e favoráveis de arrostar a realidade com esperança de melhores dias, dignidade e sonhos. O discurso vazio e amargo de “um dia as coisas se acertam” não pode ser mais digerido. Não há mais espaço para tolerar, admitir e encarar como natural da sociedade brasileira o privilégio de poucos em detrimento de muitos! Há mais de quinhentos anos o tapete vermelho está estendido à Casa Grande, enquanto à Senzala cabe tão somente o papel de recolhê-lo e guardá-lo ao final da festa. Chega! É preciso, sim, criar mecanismos de reparação de desequilíbrios sociais atávicos. É preciso, sim, dar chance aos que nunca a tiveram. Cotas já!

***

[Artur Pires é jornalista, Fortaleza, CE]