Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Emissoras ganham mais tempo para se adaptar

A novela da construção das regras para a classificação indicativa de programas audiovisuais ganhou um novo capítulo. Desde a publicação da nova portaria, há 90 dias, a classificação vem sendo pautada como ‘censura’ pelos radiodifusores, que agem como podem para modificar ou mesmo derrubar as normas do Ministério da Justiça, defendidas por organizações da sociedade civil que lutam pela democratização da comunicação, pelos direitos humanos e pelos direitos das crianças e adolescentes. O final desta história pode não ser feliz, se o interesse público, mais uma vez, for submetido aos interesses privados das grandes emissoras de televisão do país.


O artigo 19 da portaria 264/2007, que define a vinculação entre faixa etária e horária, questionado pelos representantes das emissoras, está suspenso por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). E agora, outros três artigos da portaria – 15, 20 e 21 – entram novamente em discussão: por 45 dias, representantes de emissoras, da sociedade civil e de entidades de defesa dos direitos humanos e da infância deverão debater a padronização dos símbolos que informam a classificação indicativa dos programas de TV, a necessidade de informar a faixa etária em chamadas e trailers da programação e a reclassificação cautelar, conforme previsto na portaria.


A decisão do Ministério da Justiça de estender as discussões a respeito dos artigos foi uma resposta ao pedido de reconsideração de pontos considerados como negativos pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert) e do manifesto apresentado recentemente pela Abert, pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) e pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner).


Recuo ou debate estratégico?


Para entidades da sociedade civil, a decisão do MJ poderia indicar um recuo, mas esse risco é afastado pelo diretor de Justiça e Classificação do Ministério da Justiça, José Eduardo Romão, que garante que não haverá mudanças em qualquer dos pontos da portaria. ‘Acreditamos que esta discussão servirá para amadurecermos alguns pontos relativos a estes artigos e para que as emissoras se adequem às novas regras’, diz. Segundo ele, em paralelo ao debate dos três artigos, o MJ vai recorrer ao Superior Tribunal Federal (STF) para reverter a suspensão do artigo 19. ‘As emissoras de televisão resolveram correr este risco. A decisão pode ser julgada pelo STJ a qualquer momento e cair. Assim, todas terão que se adaptar’, explica.


Romão diz que ‘a pretensão das emissoras nestes 45 dias é de modificar as regras, mas até agora não há razão para que isso ocorra. A Abert não está oferecendo alternativas concretas para os pontos que contesta’, diz, exemplificando com a questão do fuso horário: ‘O nosso princípio é de que não pode haver discriminação entre crianças e adolescentes que vivem em horários diferentes. Para nós, a solução é que as emissoras de adequem ao fuso. Se elas nos apresentassem outra solução que fosse plausível, poderíamos discutir’, afirma.


O coordenador de relações acadêmicas da Andi – Agência de Notícias dos Direitos da Criança e do Adolescente, Guilherme Canela, concorda: ‘É saudável para a democracia que todos os temas sejam amplamente discutidos. Mas para rediscutir uma política é preciso que algum fato novo justifique. Qual o motivo para se colocar em discussão a portaria, que é resultado de um processo de três anos de debate? Nosso temor é de que o debate retroceda e que voltemos a discutir o que é ou não censura’.


A contradição das posições


Marcos Ferreira, presidente da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia e membro do GT de Comunicação do Conselho Federal de Psicologia, sinaliza na mesma direção. ‘É claro que nesse processo sempre encontraremos questões que poderiam ser melhor discutidas, mas o essencial é que não podemos viver no Brasil sem que existam instâncias públicas que façam essa avaliação do que é produzido e indiquem à sociedade referências concretas’, afirma.


Romão reforça que os pontos não estão em discussão. ‘Avaliamos que seria razoável suspender estes três artigos não só para que as pequenas emissoras e as que têm menos recursos – entre elas, as públicas e as comunitárias – e reclamam de dificuldades, se adaptem, mas também para que todas as outras possam se apropriar melhor das regras e das soluções que estamos oferecendo para sua implantação. O (ministro) Tarso (Genro) e o (secretário nacional de Justiça, Antônio) Biscaia estão seguros do trabalho realizado e têm a clara compreensão de que foi participativo, de que houve democracia no processo e legitimidade’, diz o diretor.


Não há expectativa de realização de consulta. Segundo Romão, aquelas entidades que quiserem debater devem encaminhar requerimento ao gabinete do ministro e terão oportunidade de explicitar suas defesas, críticas e justificativas. ‘A idéia é realizar encontros com a presença de interessados de diferentes campos para que o ministro possa, pessoalmente, vivenciar a contradição das posições’, explica. ‘Mas o Ministério não vai alterar a portaria e não haverá retrocesso no debate. As emissoras vão ganhar tempo para se adaptar. E em relação ao artigo 19, o STF tem que julgar’.


Os três artigos


O artigo 15, foco das principais críticas de censura das emissoras, segundo o diretor do Departamento de Classificação, ‘resolve o problema do atraso e da demora em decidir’. Ele explica que é comum as emissoras ganharem tempo com processos administrativos. Muitas das vezes, até que se chegue a uma conclusão, leva-se dois anos. ‘Da forma que propomos, podemos reduzir este tempo para até seis meses. Estrategicamente, as emissoras inserem cenas inadequadas nas novelas livres porque o processo administrativo pode acabar depois da conclusão da obra. Com a reclassificação, isso vai mudar’, diz. A reclassificação cautelar, no fundo, é uma medida para evitar que emissoras façam uso perverso da demora do processo judicial. A diferença é que, agora, a emissora terá que provar que aquela classificação condiz ou não com a produção. ‘O ônus da prova é delas’, diz Romão. ‘E quando se trata de crianças e adolescentes, na dúvida, a gente protege e não expõe.’


O artigo 20 diz respeito à padronização dos símbolos que informam a classificação indicativa dos programas de TV. As críticas das emissoras estão na obrigação do uso das Libras (Linguagem Brasileira de Sinais). O MJ, reconhecendo esta dificuldade, se antecipou e fez, em parceria com a Radiobrás, 60 modelos de interpretação em Libras que estarão disponíveis para todas as emissoras que os desejarem, mesmo as comerciais. ‘Queríamos deixar este material disponível para derrubar os argumentos de que a questão é complexa. Fizemos isso em pouco menos de dois dias. E nestes 45, vamos oferecer soluções como estas para que as emissoras se adaptem’, conclui Romão.


O artigo 21 versa sobre a necessidade de informar a faixa etária em chamadas e trailers durante a programação. ‘Ao longo da programação, é comum vermos chamadas de programas inadequados. E isso é uma reclamação permanente dos pais’, diz Romão. Pelas regras, se o programa é inadequado mas não tem cenas inadequadas na chamada, a emissora precisa apenas identificar na chamada que aquele conteúdo é recomendado para determinada faixa etária. O que não poderá ser feito é a reprodução na chamada de um trecho com cenas inadequadas (como é comum vermos, em propagandas de novelas e filmes, para ter apelo, com cenas de casais na cama ou mesmo cenas de violência) em horário classificado como livre.


Remédio sem tarja


‘No fundo, vai ficando cada vez mais claro que o que eles querem não é discutir. Eles não querem portaria alguma e isso não é possível’, diz Canela. ‘Podemos fazer uma comparação da ação das emissoras com a tentativa da indústria farmacêutica de abolir as tarjas dos remédios. Como os pais vão saber que remédio exige maior cuidado ao ser ingerido? É como abolir as cores do semáforo. Qual o problema de ter os padrões uniformizados?’, questiona o coordenador da Andi.


‘É preciso haver classificação porque sempre alguém vai classificar: se não for uma instância pública, vai ser uma instância privada. Se não for a sociedade, vai ser o dono da emissora. Queremos ter transparência nesse processo. Isso de estar vinculado ao aparelho de Estado não é um problema, até porque o próprio Estado está se propondo a fazer isso em conjunto com a sociedade. Na verdade, o que o governo fez foi criar um espaço para que a sociedade faça as suas escolhas’, afirma Ferreira, que também é membro da campanha ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’.


Neste sentido, Romão ressalta que o modelo de classificação (inspirado no que é utilizado em outros países, como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha) distribui a responsabilidade entre emissoras, sociedade, Judiciário e Ministério da Justiça, o que aumenta o controle sobre o trabalho do próprio Ministério.


Em entrevista à Agência Brasil, Zico Góes, diretor de programação da MTV – que adotou no último sábado (12/05) as regras para a classificação indicativa –, disse que as normas não são uma novidade, como argumentam algumas televisões que são contra a medida. Segundo ele, a portaria publicada em fevereiro regulamenta normas definidas pela Constituição e discutidas com a sociedade à exaustão: ‘Isso não foi uma coisa que caiu do céu, não foi uma imposição do Ministério da Justiça’, afirmou, acrescentando que tampouco as normas podem ser consideradas como censura. ‘Aceitamos porque concordamos. Sempre discutimos com o Ministério a adequação dos critérios. Quem não quis debater na época tinha outros interesses’, disse.


Campanha velada


O temor de Canela, da Andi, é de que, nesses 45 dias para a discussão dos três artigos, as grandes corporações de comunicação resolvam reforçar a campanha que estão promovendo contra as regras da classificação. ‘Esta discussão é sempre comprometida pela bomba de fumaça que os grandes meios de comunicação lançam sobre ela: a da censura. Não há censura alguma. As emissoras não querem dor de cabeça. Querem fazer seu negócio da forma mais conveniente aos seus interesses’, diz.


Ferreira, do Conselho Federal de Psicologia, concorda: ‘Controle social e classificação não têm nada a ver com cerceamento à liberdade de expressão. Estamos só dizendo que é preciso haver limites, que o controle social é, ao contrário, a maior garantia para o exercício dessa e de outras liberdades’, afirma Ferreira. ‘O problema disso é que quem está organizado para atuar é o empresariado. Eles têm energia pra entrar na Justiça, para exercer mecanismos de pressão sobre o Estado. Por isso, a sociedade precisa se organizar, pois os interesses dos empresários e da sociedade, neste caso, são divergentes’, afirma.


Enquanto o artigo 19 (sobre o fuso horário) permanece suspenso, e os outros três artigos entram em discussão por mais 45 dias, alguns radiodifusores, de um lado, e o Ministério da Justiça e as organizações da sociedade civil, de outro, voltam a travar o debate sobre a pertinência e necessidade da Classificação Indicativa. E, dessa vez, parece que a sociedade brasileira, em seu conjunto, não ficará do lado da Rede Globo.

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Jornalista