Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Empresários choram o leite derramado

Finalizada a 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), setores empresariais publicam notas e editoriais denunciando o que seria um risco para a democracia e a liberdade de expressão no país. Curiosamente, o evento foi organizado justamente em nome da democracia e da liberdade de expressão.

Independentemente das intenções deste ou daquele grupo, o fato é que também os empresários da comunicação foram convidados a participar do diálogo que se travou em Brasília entre os dias 14 e 17 de dezembro. Foi a primeira vez na história nacional que governos (federal, estaduais e municipais), sociedade civil e sociedade civil empresarial tiveram a oportunidade de se reunir para tratar de assuntos relevantes relacionados à comunicação e à mídia.

Em vez de sentarem à mesa para defender seus pontos de vista de maneira direta e transparente, entidades como a Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), bem como alguns jornalões de circulação nacional, preferiram boicotar a Confecom, pensando que assim ela pudesse ser ofuscada. Como não alcançaram esse intento, agora querem desqualificar a conferência denunciando a aprovação de propostas que ameaçam seus interesses. No seu discurso durante a abertura da conferência, o presidente Lula comparou os ausentes a avestruzes que enfiam a cabeça na areia quando se sentem ameaçados.

Governo Serra se esquivou

As pressões da grande mídia começaram antes mesmo do evento nacional tomar forma. Em São Paulo, por exemplo, a conferência estadual teve que ser convocada pela Assembleia Legislativa. O governo estadual se esquivou dessa responsabilidade, provavelmente para não contrariar a grande imprensa às vésperas de um ano eleitoral.

Ora, a convocação da Confecom pelo executivo federal cumpre um dispositivo constitucional e suas deliberações ainda terão que virar lei para de fato se tornarem realidade. Por incrível que pareça, o Brasil ainda não tem uma lei de comunicação. As leis da radiodifusão, do Cabo e das Telecomunicações já se mostram ultrapassadas em vários aspectos, principalmente devido ao avanço das tecnologias e ao surgimento de novos meios de informação.

Embora muitas das mais de 600 propostas aprovadas na Confecom possam ser polêmicas ou até mesmo utópicas, o fato é que elas refletem o anseio da sociedade civil organizada, dos governos e de empresários que se fizeram representar nas discussões que tomaram conta do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília. Lá estiveram, por exemplo, o presidente da Rede Bandeirantes, Johnny Saad, e o ministro das Comunicações, Hélio Costa, visto como um representante dos grandes grupos de comunicação. Mesmo sendo vaiados durante a abertura da conferência, ambos defenderam seus pontos de vista em total respeito aos demais participantes.

Proibição da propriedade cruzada

O que certamente mais incomoda os grandes grupos de comunicação é justamente o risco de perderem dinheiro e poder. Em plena crise da mídia impressa e com a crescente ameaça atribuída aos novos meios, como Internet e Twitter, empresários do setor que não quiseram expor seus motivos e defender seus interesses na Confecom tentam agora acusar os grupos participantes de golpistas e autoritários. Sequer admitem discutir os critérios de concessão de rádio e TV ou a criação de uma entidade normativa para o exercício do Jornalismo no país.

Há que se notar que a maioria das propostas analisadas pelos Grupos de Trabalho foi exaustivamente discutida. Muitas acabaram sendo aprovadas por consenso, inclusive com a anuência de representantes do segmento empresarial que compareceram à Confecom. O fato é que a ANJ e a Abert, entidades que conspiraram contra a Lei de Imprensa, o diploma e a própria regulamentação da profissão de jornalista, estão perdendo o trem da história e agora esperneiam discursando em nome da liberdade. É bom lembrar que foi também em nome da liberdade que os militares tomaram o poder em 1964, sendo apoiados por órgãos de imprensa que passaram a lucrar com o regime autoritário que durou duas décadas.

Os conservadores reclamam, por exemplo, da sugestão de criação dos conselhos nacional, estaduais e municipais de comunicação. Alegam que o principal objetivo desses órgãos seria censurar a imprensa a serviço de ideologias esdrúxulas e antiquadas. Será mesmo? Até que ponto a Ordem dos Advogados do Brasil e os conselhos nacional e regionais de Medicina, Odontologia ou Veterinária estariam a serviço dessas mesmas ideologias?

Pelo que consta da proposta aprovada na Confecom, os conselhos de comunicação deverão ser constituídos por representantes da sociedade civil e dos próprios comunicadores, sem a tutela do Estado. O objetivo seria semelhante ao dos demais conselhos de categorias profissionais, que atuam no país sem colocar em risco a liberdade de pensamento ou de informação. Também irrita o setor empresarial a possibilidade de se proibir a propriedade cruzada de veículos de comunicação, prática esta coibida legalmente nos Estados Unidos e em outros países.

Conviver com as diferenças

Outro item que incomoda os capitães da comunicação é a proposta de criação de um Código de Ética do Jornalismo, sendo este extensivo aos jornalistas e aos veículos onde trabalham. Por que será que a palavra ética irrita tanto esses senhores, uma vez que se dizem defensores da liberdade e da democracia? Provavelmente pretendem continuar usando os meios de que dispõem para defender interesses privados ou de grupos políticos sem dar satisfação a ninguém, indiferentes aos anseios da sociedade brasileira.

Se quem não deve não teme, por que temer a vigência de regras que visam justamente o respeito à privacidade individual e aos direitos do cidadão? Imaginar que uma federação de jornalistas, como a Fenaj, estaria defendendo a volta da censura seria jogar por terra toda uma história de militância contra o autoritarismo na qual os profissionais da informação tiveram papel preponderante.

Seja lá como for, a Confecom saiu do papel para se tornar realidade e, segundo seus organizadores, a ideia é que ela se realize a cada dois anos. Suas propostas não têm o peso de lei e muita água vai correr embaixo da ponte até que algumas possam de fato entrar em vigor. Os empresários que se omitiram no primeiro momento e que agora reclamam dos resultados ainda terão tempo para cruzar essa mesma ponte e participar da segunda edição, programada para 2011. Afinal, esse é o lado mais chato da democracia: conviver com as diferenças, defender ideias de maneira transparente, gastar saliva para convencer os outros e aceitar a derrota, sempre que nos colocarmos contra o desejo da maioria.

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Jornalista e escritor, Belo Horizonte; seu site