Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Empresas de comunicação e projetos educativos

A educação (e a formação, de um modo geral) dos indivíduos deve acompanhar o espírito da época em que estão inseridos, formando sujeitos com condições de ler (criticamente) a realidade. Isso é fato. Assim como é fato que uma das marcas centrais da época em que vivemos é a centralidade da mídia nas nossas vidas. A articulação destes dois fatos de forma natural é perigosa e tem conferido, quase que naturalmente, um novo poder às empresas de comunicação: o poder de educar também nas escolas.

Não satisfeitas com seus monopólios, audiências e shares de mercado exorbitantes, as grandes corporações de comunicação e tecnologia (como, por exemplo, o grupo Abril, a Rede Globo, a Microsoft, os jornais Folha e Estado de S.Paulo e a Telefonica) entraram nas escolas a partir de parcerias com secretarias e, muitas vezes, por intermédio de seus ‘braços sociais’ (institutos, fundações etc.). Também não satisfeitas com o fato de entrarem nas escolas como instrumentos, entraram também com conteúdos.

É certo que a escola precisa se modernizar e acompanhar as tendências da atualidade (ainda que sob diversos riscos). No entanto, é preciso discutir o projeto de modernização da educação antes de entregá-lo nas mãos de empresários do ramo das mídias.

Os políticos ‘benfeitores’

Em geral, o que observamos, é um processo de entrada que desrespeita o campo educacional, não ouvindo sequer quais são as reais demandas das escolas por instrumentos ou conteúdos midiáticos e tecnológicos. Ou seja: os campos midiático e político se articulam e decidem a vida do campo educacional em relação à suposta modernização. Suposta porque, convenhamos, equipar escolas em projetos milionários com multinacionais, deixando penetrar na educação pública a lógica das empresas de comunicação e tecnologia e em projetos executados ‘de cima para baixo’, não se trata necessariamente de modernização. Pelo contrário. Elementos de modernidade convivem com elementos tradicionais da política que ainda precisam de reflexão e solução.

Ou seja, em boa parte das iniciativas, o dinheiro investido em mídia e tecnologia vira discurso de políticos ‘benfeitores’ da educação moderna, salas vazias e equipamentos ociosos por falta de um processo cuidadoso de implementação. Muitas vezes, a ‘culpa’ recai, claro, sobre os profissionais da educação, em tese despreparados para encarar o mundo novo que, ainda segundo o mesmo discurso, é dominado pelos jovens alunos.

Exemplos paulistas

Para não ficarmos no abstrato, vamos a alguns exemplos. Uma das iniciativas que podemos citar é a assinatura da revista Nova Escola, do grupo Abril, para todos os professores da rede pública estadual de São Paulo. Sem ter passado por um processo de licitação ou por qualquer tipo de debate com os agentes e educadores da rede, o material passou a ser entregue na residência dos professores no mês de março de 2008 (leia mais aqui).

Alvo de processos (ver aqui) e protestos por parte de organizações da sociedade civil, a Secretaria estadual alegou que o material trata de algo exclusivo.

A Secretaria tem a prerrogativa legal de adotar materiais que sejam considerados únicos e cujos produtores tenham ‘notório saber’ sobre a matéria a ser desenvolvida através do contrato. No entanto, são conhecidas pelo menos outras três publicações de outras editoras com a mesma proposta que a publicação da Editora Abril, como a Carta na Escola, a revista Pátio e a revista Educação.

Um segundo exemplo é o Telecurso TEC, parceria do Centro Paula Souza, instituto de ensino técnico e profissionalizante do governo do estado de São Paulo, com a Fundação Roberto Marinho (ligada às Organizações Globo) que, firmada em 2006, passou a oferecer cursos técnicos para jovens e adultos pela televisão. Entre os cursos oferecidos estão os de Administração; Gestão de Pequenas Empresas; Assessoria/Secretariado; Vendas e Representação Comercial; e Turismo (saiba mais aqui).

Parceria com a Microsoft

Os laptops subsidiados pelo governo do estado por meio do programa Acessa São Paulo, fornecidos – neste caso, via licitação – pelas empresas Positivo e Brasoftware, são outro exemplo de entrada das mídias (e da lógica midiática e tecnológica) nas escolas.

Além disso, em 2009, o estado firmou parceria com a operadora de telefonia Telefonica, via sua fundação, para fornecimento de equipamentos a escolas de municípios do interior. É também da Telefonica a iniciativa EducaRede, portal de conteúdos educativos que tem como um de seus objetivos oferecer subsídios para educadores.

A parceria, firmada em outubro de 2008 pelo governo do estado com a multinacional Microsoft para ampliar o aceso à informática no sistema de ensino, é uma outra iniciativa, desenvolvida para que alunos e professores da rede estadual tivessem acesso a e-mails gratuitos e uma série de ferramentas fornecidas pela multinacional. Abrange o ensino fundamental, médio e tecnológico. Trecho da matéria publicada no site da empresa diz que a parceria envolve o ‘maior projeto da América Latina nesse segmento com participação da iniciativa privada’.

Em abril de 2009, outras duas iniciativas foram anunciadas: a Secretaria Estadual de Educação – SEE fez mais de 5 mil assinaturas dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo para as escolas da rede.

Discursos corporativistas

Esta entrada das mídias e das tecnologias nas escolas, ilustrada pelos exemplos acima citados, é feita com alguma transparência (publicação no Diário Oficial, anúncio oficial com celebração e presença do governador em alguns casos, ou publicação nos sites das instituições e no site do governo do estado). No entanto, em grande parte delas o processo de contratação do material, tecnologia ou ferramenta em questão (1) não passou por licitações; (2) não passou por qualquer tipo de discussão pública (inclusive via meios de comunicação da imprensa comercial que, em tese, são os veículos de ampliação do debate político) ou com os agentes do campo educacional; (3) em geral, não propõe processos de formação dos educadores e alunos para lidarem com os novos materiais e dinâmicas, o que seria considerado um mínimo de diálogo com o ambiente educacional que vai receber novas ferramentas e dinâmicas de ensino.

A explicação parece simples. Ora, se precisamos modernizar as escolas levando mídias e tecnologias para as salas de aula, por que não fazê-lo com quem ‘mais entende do assunto’?

Mas é preciso pensar que estamos diante de duas afirmações construídas social e culturalmente com a ‘ajuda’ preciosa de ninguém mais ninguém menos que os próprios veículos de comunicação, interessados diretos nas parcerias milionárias com as secretarias e sistemas de ensino. Basta acompanhar por alguns dias as coberturas de jornais, revistas e telejornais para deparar com matérias que afirmam a necessidade de as escolas se modernizarem. Mas não se trata de qualquer modernização. Os discursos são carregados de corporativismo.

Além da idéia de modernidade a ser construída, é construída também a idéia de que ela deve chegar à escola pelas mãos de quem domina o assunto e de que este alguém são as empresas de comunicação.

Dar voz à sociedade

A verdade é que a hegemonia moral, cultural e política de um determinado grupo social (as empresas de comunicação) adentra a escola travestida de consenso. Esta entrada nos espaços educativos se dá, objetivamente, carregada pelos materiais produzidos pelas empresas privadas de comunicação e, subjetivamente, pela adesão ao discurso e valores destas empresas.

Por exemplo, podemos afirmar que a adoção de softwares e ferramentas da multinacional Microsoft proporcionam um tipo de aprendizado diferente daquele que seria proporcionado por ferramentas de software livre ou mesmo de outra fabricante. E o que determina a opção da Secretaria de Educação por este material? Mais do que o material, o que leva a Secretaria a firmar parcerias com a multinacional para que ela realize uma campanha contra a ‘pirataria’ nas escolas? Em lugar disso, não seria a escola o lugar de reflexão sobre a propriedade privada, o conhecimento livre e as formas de patentes em softwares? Afinal, o que está em jogo? O interesse público ou meia dúzia de interesses privados?

O fato é que são muitas as lógicas presentes nestas escolhas. Uma delas é a de não ouvir o campo educacional nas decisões político-pedagógicas colocadas para a educação paulista. Outra é a de reforçar vínculos políticos e de favorecimento com as grandes redes de comunicação e tecnologia do Brasil e do mundo. Outra é a da modernização das escolas a partir de valores construídos por estas próprias empresas na cena pública. E, por fim, a da privatização, ainda que subjetiva, da educação. A entrada sorrateira da lógica empresarial nos espaços educativos.

Mais uma vez, é preciso afirmar que não se trata de defender o atraso e a precariedade das escolas. Trata-se, sobretudo, da entrada deste mundo de mídia no espaço educativo regulada pelo Estado e discutida com a sociedade – em especial, os atores da educação.

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Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), doutoranda em educação (FE-USP) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social