Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Entre o direito e a justiça

‘Teu dever é lutar pelo direito. Mas no dia em que encontrares o direito em conflito com a justiça, luta pela justiça.’


A frase é do professor de direito do Largo de São Francisco, o saudoso André Franco Montoro, combatente dos mais ardorosos pela redemocratização do Brasil e dos mais limpos e eficazes governadores de São Paulo.


É uma frase irretocável, que cai como luva para abrir o raciocínio que segue abaixo, com o correspondente pedido de desculpas ao leitor que esperava ler aqui o comentário sobre a rodada que manteve o São Paulo na liderança.


Mas não dá.


Não dá diante da condenação do editor e presidente do diário Lance!, Walter de Mattos Jr., em primeira instância, pelo juiz da 45ª Vara Civil do Rio Janeiro. Ele foi condenado a pagar indenização de R$ 9.000 a Ricardo Teixeira por causa de um artigo que escreveu, em 31 de julho de 2005, para o jornal O Globo e republicado pelo diário Lance!.


No artigo, com absoluto equilíbrio, lamenta-se a impunidade da cartolagem do futebol diante de tudo que foi denunciado por duas CPIs no Congresso Nacional.


O punido, embora ainda caiba recurso, foi, mais uma vez, quem exerceu o sagrado direito da crítica e não quem descumpre as leis vigentes no país.


Curiosamente, aliás, Teixeira não processou O Globo, que publicou originalmente o artigo, mas, apenas, Mattos e o Lance!.


Fosse a condenação uma exceção e já seria gravíssimo.


Infelizmente, porém, tem sido a norma, muito porque o Judiciário parece querer se vingar da imprensa que, ainda bem, vem há tempos revelando como andam mal as coisas no chamado Terceiro Poder.


E não é preciso ir ao Estado de Rondônia, onde o presidente do Tribunal de Justiça está preso por envolvimento com venda de sentenças, para fazer a constatação. São raros os Estados, na verdade, em que não há casos semelhantes, e, particularmente no Rio, a promiscuidade é tamanha que não são poucos os membros do Judiciário que viajam à custa de entidades privadas, por exemplo, como a CBF, principalmente nas Copas do Mundo, fato fartamente noticiado desde a Copa de 1990.


Nem por isso os que se deliciam em hotéis cinco estrelas se dão por impedidos de julgar casos da CBF ou de seu presidente, o grande promotor das mordomias.


Se alguém com o espaço que Mattos tem para espernear é vítima de tamanha injustiça, imagine-se o cidadão comum, que não pode se queixar nem para o bispo.


A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) não podem ficar silentes diante de tais atentados à liberdade de imprensa. Porque tudo faz parte da desconstrução do Brasil que os homens de bem querem edificar.


Filho de promotor público, este colunista jamais se esquecerá do que ouviu de seu pai pouco antes deste se aposentar, desiludido com a aplicação da Justiça no país e com o sistema penitenciário.


‘Meu filho, fique o mais longe que puder dos Fóruns e delegacias. Procure evitá-los até como testemunha. Porque eu sei como é feito o direito no Brasil.’ A história já fez justiça a Franco Montoro e tem dado razão ao procurador de Justiça Carlos Alberto Gouvêa Kfouri, meu pai.


Sem dúvida, fará justiça também à luta que travam homens como Walter de Mattos Jr. Mas, neste caso, a que preço? Ao preço da intimidação, do sentimento de impotência e da pior das sensações que é a que sente a vítima de uma injustiça?


[Abaixo, o artigo que motivou a condenação do jornalista.]


***


Da CPI do Futebol à CPI do Mensalão


Walter de Mattos Jr. # copyright O Globo, 31/7/2005


Era uma vez um país, o do futebol, que, no ano de 2000, indignado com tantas suspeitas, decide criar duas CPIs, uma no Senado, chamada de CPI do Futebol, e outra na Câmara, de CBF/ Nike. Essas ocuparam o espaço de toda a mídia (geraram uma edição do Globo Repórter e uma capa da revista Veja) durante 13 meses de intenso escrutínio público, em dezenas de audiências que capturaram a atenção nacional.


Revivemos esta situação após a abertura das três novas CPIs (Correios, Mensalão e Bingos), desta vez com muito mais holofotes do que aquelas do nosso fulgurante, ainda que pobre, futebol. E agora? Que país sairá no fim deste escuro túnel? Melhor? Pior? O governo Lula chega ao fim? É a nossa angústia cotidiana que não cessa de indagar.


Já sabíamos que a corrupção freqüentava os mais diversos ambientes, mas a extensão e a audácia com que foi praticada nos casos já divulgados são prova de que este tumor segue avançando em vez de ser extirpado ou ao menos controlado. Nem o mais cínico dos brasileiros deixa de se surpreender. E lembro que já passamos pelos traumas do Collor e dos Anões cassados, entre outros eventos que deveriam gerar temor pelo menos nos delinqüentes de Brasília.


Podemos sair no outro lado da crise com muitos avanços institucionais. Reforma política, punições, menos cargos partidários e mais técnicos de carreira, uma burocracia mais eficaz são alguns desejos viáveis. Será que chegaríamos a algo como uma Operação Mãos Limpas do Cone Sul? Seria sonhar demais?


Mas há o grave risco de emergir deste mar de denúncias um país muito pior. Como? Pela instabilidade nos mercados? Por um eventual novo impeachment? Não é isto o que devemos temer. Sinto o Brasil habilitado para passar por esses incidentes tal e qual nossos atacantes da seleção driblam as defesas mais fechadas mundo afora.


O que me mete medo é a impunidade. Tal e qual como nos casos do futebol, esta chaga pode jogar mais uma de suas cartadas sinistras: punir o mínimo necessário ou não punir e assim deixar de produzir a ação exemplar para a nação.


Depois de tomarmos consciência do intolerável, o que não pode acontecer é nada ser feito. Aí, o efeito mais nefasto será aumentar, em vez de reduzir, a tolerância da sociedade para com a corrupção. Como aconteceu no futebol.


Recordo com profunda tristeza que as CPIs do futebol produziram 17 pedidos de indiciamento dos Teixeiras, Edmundos e Euricos. Que punição tivemos, já passados 4 anos? O que sucedeu, depois de escancarados os crimes não punidos, foi mais tolerância.


E prova inequívoca é a forma como Ricardo Teixeira segue dirigindo a CBF (como se a instituição a ele pertencesse) e como passou a ser tolerado nas mais altas instâncias do poder (com Lula em viagens ao Haiti, em reuniões palacianas sorridentes e sabe-se mais onde) num toma-lá-dá-cá perverso para a cena nacional. E, se a Copa de 2014 for no Brasil, ele ainda quer ‘comandar’ os investimentos de bilhões.


O futebol tem um papel único na sociedade brasileira e ofereceu-nos uma oportunidade extraordinária de, punindo os culpados, contribuir como nunca para a redução da sensação de impunidade. É certo que estes sinais seriam compreendidos por todos os brasileiros e brasileiras.


Podemos evitar um triste destino para as CPIs atuais. E quem sabe, se dessa vez se fizer justiça, não seja até possível aproveitar a onda para, enfim, tratar de dar conseqüência às do futebol e mostrar de verdade que o país não tolera mais a corrupção. [Walter de Mattos Jr. é editor e presidente dos veículos Lance!]