Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Escravidão no século 21

Ainda que possa parecer exagerado e extemporâneo à primeira vista, compreender minimamente o Brasil passa por uma profunda investigação do papel da escravidão entre nós. Aqui, a mídia como um todo, carregada de bobagens, vem perdendo o talento até mesmo para escrever um título.

Neste contexto de alienação desanimadora, quando 15 minutos são o bastante para se ler uma edição dominical, é preciso fazer justiça a trabalhos de qualidade como o que fez a repórter Elvira Lobato e foi a manchete principal de capa da Folha de S. Paulo de domingo (18/7): ‘Lavoura moderna ainda usa escravidão’.

Retirando da frase o advérbio de tempo (‘ainda’) a manchete seria atual no Brasil desde 1550, quando os primeiros escravos africanos vieram para o estado de Pernambuco e a cidade de São Vicente, no litoral de São Paulo, para trabalhar no que era então a moderna agricultura canavieira.

As semelhanças entre as cenas de 1550 e as atuais, mais de 450 anos depois, evidentemente não são meras coincidências. São uma memória histórica, as marcas de um passado tenebroso que insiste em se fazer presente.

Elvira Lobato cumpriu bem a obrigação de todo bom repórter. Levantou dados, comparou números, identificou regiões e saiu a campo para ouvir as personagens de sua história. O resultado está distribuído ao longo de cinco páginas da edição de domingo e uma sexta, que saiu na segunda-feira.

Em resumo, pode-se dizer que excluindo uma certa tecnicidade histórica, a escravidão continua presente e atuante no Brasil, atravessando todas nossas relações sociais, manifestando-se no sistema de poder político e refletida nas decisões oficiais diluídas no cotidiano.

Elvira Lobato foi mais pontual que isso. Somou os números que têm sido publicados nos rodapés das páginas sobre libertação de trabalho escravo. Constatou que, de 1995 até início deste mês, agentes do Ministério do Trabalho libertaram 11.969 trabalhadores mantidos como escravos em fazendas de soja, trigo, cana-de-açúcar e pecuária de corte de norte a sul do Brasil.

Assim, uma das primeiras conclusões que apresenta é que a agricultura tida como altamente tecnificada, responsável pelos excedentes comerciais do Brasil, tem, diluída em seu interior, a força de trabalho escravo.

Essa situação é tanto abjeta do ponto de vista moral como denunciadora, num país de mentalidade escravista, do significado de ‘moderno’.

Tecnologia e violência social

‘Agronegócios e pecuária de ponta usam trabalho escravo.’ Este é o título do primeiro texto, na página A 4, rigorosamente exata. Vale a pena repetir parte do que a repórter ouviu da secretária de Inspeção do Ministério do trabalho, Ruth Vilela:

‘Há casos de resgate em fazendas com pistas de pouso para aviões de médio porte e sedes suntuosas, mas que alojam os trabalhadores temporários [mantido em regime de trabalho escravo] nos currais ou barracas de plástico, sem paredes, escondidas na mata’.

Quem são os proprietários dessas fazendas quase sempre enormes distribuídas pelo Brasil profundo? Déspotas truculentos, homens sem apreço à lei, ignorantes eles mesmo de sua humanidade? Nada disso.

Alguns certamente podem ser pouco mais do que bestas humanas. Mas outros não têm sequer como alegar ignorância para se defenderem. São empresários e políticos bem cientes da contemporaneidade do mundo.

O deputado federal Inocêncio Oliveira (PFL-PE), o senador João Ribeiro (PFL-TO) e o ex-deputado federal Augusto Farias (irmão de PC Farias) estão entre os políticos que contestam as acusações de se beneficiarem do trabalho escravo.

O senador Ribeiro argumenta que os relatórios da fiscalização são ‘uma bravata’ e os fiscais têm ‘agido de má-fé’. O presidente da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, Jorge Sayed (PMDB), também foi autuado por uso de trabalho escravo numa fazenda em São Félix do Araguaia (TO). Sayed reconheceu a acusação e fez acordo com os trabalhadores.

Entre os empresários estão três dos maiores produtores de soja de Mato Grosso: Darcy Ferrarin, Valdir Daroit e Nei Frâncio, do município de Sorriso, autuados no ano passado. O prefeito da cidade, José Domingos Fraga Filho (PMDB), ouvido pela repórter, diz que na cidade, criada há 18 anos e hoje com 52 mil habitantes, onde estão as propriedades dos acusados, ‘quase não se usa mão-de-obra bruta braçal aqui, é tudo tecnologia de ponta’. O secretário-geral do Sindicato Rural de Sorriso, Rubens Bernardi, rebate ao dizer que os empresários maculam o município que tem, de fato, uma das agriculturas mais avançadas do mundo.

Em Dom Eliseu, no Pará, mesmo uma empresa multinacional belga, a Sipef, já foi autuada por utilizar mão-de-obra escrava.

Substrato mental

Cinismo à parte, a reação de surpresa de alguns de políticos e empresários é praticamente a reafirmação da fala de Joaquim Nabuco (1849-1910) de que acabar com a escravidão no Brasil não era tarefa das mais difíceis. O desafio, disse ele em O Abolicionismo, obra escrita durante exílio voluntário em Londres, era exterminar com o pensamento escravista, tarefa que exigiria séculos de determinação consciente.

Joaquim Nabuco, mais que qualquer intelectual brasileiro, empenhou-se na denúncia desse crime contra a humanidade. Em setembro de 1880, assumiu a presidência da Sociedade Brasileira Contra a Escravidão que ele mesmo havia fundado – e, na companhia do engenheiro negro André Rebouças, entre outros abolicionistas, condenou esse modo de produção como degradante e irracional.

José Bonifácio de Andrada e Silva, o ‘patriarca da Independência’ (1763-1838), antes de Nabuco havia sido o maior adversário do escravismo no Brasil. Seus escritos revelam o sonho de o Brasil poder ser, na América, a contrapartida de um país desenvolvido, nos moldes das nações européias em que passou boa parte de sua vida. Assim, suas críticas sobre a estrutura do poder político, do ensino defasado nas escolas à condenação do escravismo por razões morais e de racionalidade, continuam tristemente atuais.

Cenas cotidianas

Uma observação mais atenta indica claramente a presença da mentalidade escravista diluída no cotidiano.

Há duas semanas, por exemplo, os jornais retomaram uma discussão sobre o preço exorbitante dos pedágios nas rodovias de São Paulo, legado de Mario Covas ampliado por Geraldo Alckmin. Fizeram isso como resultado de um encontro entre representantes de empresas de transporte e das concessionárias das rodovias. O lobby dos empresários de transporte está em reduzir o valor cobrado. Mas os usuários proprietários de ‘carros de passeio’ estão fora.

‘Carro de passeio’, na verdade, pode parecer uma caracterização inocente. Não é. Utilizamos nossos carros no trabalho, inclusive como forma de contornar a deficiência do transporte público, portanto não temos ‘carros de passeio’. Essa terminologia, no entanto, é bastante conveniente às concessionárias das rodovias que se sentem à vontade para cobrar um preço absurdo de quem ‘está passeando’, penalização típica de quem considera que deveríamos confinar toda nossa vida inteira ao trabalho.

Uma das caracterizações clássicas do trabalho escravo no Brasil esteve no chamado ‘negro de ganho’. Eram escravos das casas-grandes enviados às ruas pelos seus senhores para assegurar-lhes ganhos. Trabalhavam como alfaiates, sapateiros, carpinteiros e vendedores ambulantes, especialmente vendedores de doces.

A figura do ‘negro de ganho’ continua presente na estrutura das frotas de táxi, nas quais o motorista deve arcar, a cada dia, com um certo pagamento à pessoa ou empresa proprietária do veículo.

No Brasil colonial, as escravas cuidavam da comida, da limpeza doméstica e da lavagem da roupa nos rios mais próximos. A manutenção dessa ordem está na empregada doméstica atual – que, ao contrário de suas ancestrais, apenas não lava mais a roupa nos rios.

O escravismo, como tem sido demonstrado ao longo de séculos de resistência abolicionista, está na base de um sistema de poder que não permite justiça social – e, portanto, a construção de cidadania.

Neste contexto, decisões envolvendo sistemas de cotas para entrada de estudantes negros nas universidades revela-se recurso meramente paliativo, incapaz de estimular uma reforma do pensamento, como defendeu Nabuco.

Conquistamos a abolição não pela sensibilidade da princesa Isabel, mas pelas exigências da Inglaterra que precisava abrir mercados para as máquinas que produziam com a Revolução Industrial.

No século 21, como seria de se esperar de um substrato mental social cindido entre valores contraditórios, tentamos, de alguma maneira, conciliar o inconciliável com discursos de bons modos e alegadas inocências.

Um país subdesenvolvido, como escreveu de muitas maneiras o filósofo da ciência argentino Mario Bunge, é uma nação que abriga uma mentalidade atrasada, uma imagem do mundo que não faz qualquer sentido em termos de dignidade humana e racionalidade intelectual.

A imprensa não é a única responsável pelas transformações por que devem passar as sociedades. Mas é uma via de fundamental importância para essas reflexões. E trabalhos como o realizado por Elvira Lobato são uma contribuição fundamental para que isso tenha ao menos a possibilidade de vir acontecer.