Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Factóides e TV Globo: tudo a ver!

No calor do debate sobre o papel da mídia no recém-encerrado processo eleitoral de 2006, um caso emblemático joga luzes profundas sobre as possibilidades de enquadramento e arranjos de versões e ‘suposições’ de parte de duas grandes empresas de comunicação do país: revista Veja e TV Globo. Estamos falando do depoimento dos jornalistas Júlia Duailibi, Camila Pereira e Marcelo Carneiro ao delegado Moysés Eduardo Ferreira (PF/São Paulo), na tarde de 31 de outubro.

Comecemos pela denúncia de Veja, em dois pontos centrais:

1) ‘A pretexto de obter informações para investigação interna da corregedoria sobre delitos funcionais de seus agentes e delegados, a Polícia Federal intimou cinco jornalistas de Veja a prestar depoimentos’;

2) ‘Não houve violência física. O relato dos repórteres e da advogada que os acompanhou deixa claro, no entanto, que foram cometidos abusos, constrangimentos e ameaças em um claro e inaceitável ataque à liberdade de expressão garantida na Constituição’.

A nota consegue, forçando a barra, fazer uma ligação entre este episódio e o caso, condenável sob qualquer análise, da agressão aos jornalistas em Brasília, vendo nisso o alvorecer de uma ‘ditadura da maioria’ (?).

Desmentidos categóricos

No mesmo dia, o Departamento de Polícia Federal (DPF) divulga ‘nota à imprensa’ negando, categoricamente, as acusações da revista. Em seis breves parágrafos, a PF ressalta que os depoimentos foram tomados com o acompanhamento da procuradora da República Elizabeth Kobayashi (controladora externa da PF) e da advogada de Veja Ana Rita de Souza Dutra, e dois escrivães da PF, Carlos Henriques Santos Rosa e Raph Gomes. Destaca o texto:

‘Em nenhum momento os repórteres, ou sua advogada, manifestaram às referidas autoridades a contrariedade ou discordância com a condução do depoimento, causando surpresa a este órgão a conotação de suposta arbitrariedade que vem sendo dada ao procedimento em questão (…). A PF aguarda manifestação formal dos jornalistas para tomar as providências apuratórias cabíveis’.

No dia seguinte, a procuradora Elizabeth Kobayashi divulga também sua posição sobre as supostas denúncias, em dois pontos centrais contraria a denúncia:

1) ‘Sobre a nota da revista Veja, não é correto afirmar que os jornalistas prestaram depoimentos para uma investigação interna da corregedoria da PF. Os jornalistas foram ouvidos como testemunhas em inquérito policial para apurar se houve conduta indevida de policiais no interior da PF em SP. A PF ainda não instaurou procedimento administrativo interno sobre os episódios narrados na revista’;

2) ‘Embora as imperfeições ocorridas durante a redução a termo dos depoimentos tenham sido corrigidas e que no meu entendimento pessoal não tenha havido qualquer ato de intimidação por parte da PF, o que teria provocado imediata reação de minha parte, o MPF está aberto para receber qualquer comunicação formal por parte da revista Veja‘.

Vastidão subjetiva

Não se tem conhecimento de que a revista acionara até esta data (4/11/06) o MPF para apuração das supostas irregularidades praticadas pelo delegado. Ao receber a negativa pública de uma autoridade, até prova em contrário insuspeita, que acompanhou o depoimento de seus repórteres, a revista apostou num recurso extremo: zombar da inteligência média dos cidadãos. Em texto assinado pelos jornalistas Eurípides Alcântara (diretor de Redação) e Mario Sabino (redator-chefe), não se deixa ‘convencer’ e nos brinda com um sofisma dantesco: ‘A nota da procuradora não desmente os fatos relatados pela revista’ (sic???).

Ora, se a acusação central de coação, intimidação, ligada à idéia de que a PF buscara elementos para uma investigação interna, foram lapidarmente contraditados por Elizabeth Kobayashi, o que sobrou aos dois executivos?

Recuam e jogam a questão para a vastidão subjetiva da alma humana. E finalizam a segunda nota de Veja fazendo um jogo de palavras quase desconexo, remetendo o fundamento maior de sua denúncia ao olhar subjetivo: ‘Como diz a procuradora, no seu entendimento pessoal não houve intimidação. No entendimento dos repórteres da revista, porém, pela forma como os depoimentos foram conduzidos, eles foram, sim, intimidados’.

Trevas vindouras

O professor Nilson Lemos Lage (UFSC), em sua obra Ideologia e técnica da notícia, discute um conceito elementar das teorias da notícia e noticialibilidade: a natureza axiomática da notícia. Ou seja, deu na imprensa (especialmente na TV), logo é verdade. Este é um conceito que deveria ser respeitado (integralmente com sua apreensão sábia pelo senso comum), com zelo e delicadeza, pelos profissionais do jornalismo.

Reporto-me ao conceito de ‘natureza axiomática’ para discutir brevemente a repercussão da denúncia de Veja nas edições de 31/10/06 e 1º/11/06 do Jornal Nacional, da TV Globo. A cobertura da Globo, nesse caso singelo, continua sendo orientada pela mesma lógica: reverberar os aspectos negativos que possam ser imputados ao governo Lula, e minimizar desmentidos, contraditórios e informações que possam colocar em xeque a ‘denúncia’.

No dia 31 de outubro, terça, o Jornal Nacional estampou em manchete: ‘Revista Veja denuncia que seus repórteres foram intimidados pela PF’. Uma longa nota, que abria quase 16 linhas (vou usar essa unidade de análise para simplificar) de texto, com fartos recursos de edição, conferindo a máxima veracidade à palavra da revista. E concluía profetizando sobre as trevas vindouras: ‘A estranheza dos fatos é potencializada pela crescente hostilidade oficial aos meios de comunicação independentes. Quando a imprensa torna-se alvo de uma força política, no exercício do poder, deve-se acender o sinal de alerta’.

‘Evidente tentativa’

Em seguida, o JN abre pouco mais de quatro linhas ao contraditório, destacando trecho da nota oficial da PF. Mas, o fim da matéria revelaria com clareza a opção de enquadramento. Qual a fonte escolhida? O senador Heráclito Fortes (PFL-PI) fecha a reportagem afirmando: ‘Existe a lei de imprensa que coloca penalidades e responsabilidades sobre aqueles que infringem essa legislação. Daí porque acho que o melhor caminho é o caminho da Justiça, e não das salas fechadas da Polícia Federal’. Antes de Heráclito, o JN ouviu a senadora Ideli Salvatti (PT-SC), que prometera ‘buscar informações sobre o caso’.

Na suíte da matéria (‘nota pelada’, ou sem imagem), que foi ao ar na edição de 1º de novembro, o JN fechou seu enquadramento ‘isento e imparcial’, desapaixonado e asséptico, dando sete linhas para a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) mentir e repetir as mentiras, já desmentidas publicamente pela representante do Ministério Público Federal naquela altura dos acontecimentos. A própria manchete já evidencia essa claríssima intenção: ‘ANJ divulga nota contra a intimidação sofrida por repórteres’. Ou seja, para o telejornal da Globo a intimidação já era um fato comprovado, sem margem a nenhuma dúvida de quem quer que fosse…

A nota da ANJ, assinada por Júlio César Mesquita, denuncia a ‘evidente tentativa de intimidar o livre exercício do jornalismo’. O telejornal da Globo confere ainda três soberbas linhas para o ministro Márcio Thomaz Bastos reafirmar que a ‘liberdade de imprensa é um valor prezado pelo governo’.

Zelosa autocrítica

Contudo, a principal manifestação do ‘outro lado’, a nota da procuradora da República Elizabeth Kobayashi, recebeu tratamento burocrático e espaço equivalente a quatro linhas no fim da matéria, que é assim traduzido por mera intenção de desinformar: ‘A procuradora da República (…) disse que houve imperfeições durante a transcrição dos depoimentos, que foram corrigidas. E que, no entendimento dela, não teria havido intimidação por parte da Polícia Federal’.

Ora, do ponto de vista jornalístico a fonte de informação essencial para confirmar ou refutar a denúncia de Veja (no caso, a representante do MPF) é tratada de forma marginal. Por razões óbvias, a Globo privilegiou a nota da ANJ.

Para que o ‘juízo’ seja encontrado e as ‘cabeças’ voltem ao lugar, como preconiza Alberto Dines em seu último texto publicado no OI (‘Mãos limpas e cabeça no lugar‘), será fundamental abrir mão de adjetivos e delírios, ante-sala da loucura: onda antimídia, verdadeiro linchamento, estouro da ‘boiada’ (seriam os neo-observadores?), fanatismo, doideira grupal ou individual, nova Klu-Klux-Klan, neo-seguidores de Adolf Hitler… A lista é interminável. Há muitas mãos ‘sujas’ no comando da mídia, a quem caberia uma zelosa autocrítica e reposicionamento, em nome dos princípios democráticos e do interesse público.

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Jornalista, doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina, docente e coordenador do curso de Jornalismo do Instituto Bom Jesus/Ielusc, Joinville (SC)