Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Falta discutir a segurança pública

Circula na internet um texto apócrifo contra a proibição da venda de armas que, a certa altura, argumenta assim:

‘Você não tem armas. OK. Você jamais usaria uma arma para atirar em alguém. OK. Você acha perigoso e não quer uma arma em sua casa. OK. Você não pretende ter armas. OK. MAS VAMOS IMAGINAR UMA SITUAÇÃO COMUM EM NOSSAS CIDADES, HOJE…

‘Você vai concordar comigo que, no caso de um marginal invadir sua casa no meio da noite e começar a arrombar sua porta, [você] ficaria muito feliz se a policia chegasse imediatamente e o prendesse. Concorda?

‘Você vai concordar comigo que a polícia não tem condições de fato, hoje, de atender a todos os chamados e ocorrências no tempo desejado. Concorda?

‘Você vai concordar comigo que, em geral, a polícia chega DEPOIS do assalto. Concorda?’

E segue, em defesa da venda de armas.

Trata-se de uma argumentação que a polícia reitera há anos. Por que policiais insistem em dizer que a polícia não tem condições de combater a criminalidade e incitam cidadãos a se armar?

Não chega a ser um mistério. Basta obter uma lista de policiais civis e militares graduados que são sócios de empresas de segurança. Isso para não mencionar a legião dos que, mais humildemente, fazem bicos como seguranças.

Na Inglaterra as pessoas não usam armas (não sei se têm armas, sei que não as usam, nem a polícia, normalmente), os bandidos sabem que elas não usam armas, mas os cidadãos não se sentiam desprotegidos ou especialmente ameaçados antes do advento dos homens-bomba. E não passarão a andar armados por causa deles.

Querem é discutir a política de segurança, colocada em xeque pelo fuzilamento de um brasileiro que não tinha nada a ver com a história. Mas qualquer cidadão britânico sabe que ele andar armado não impedirá um homem-bomba de mandar tudo pelos ares. Se algo o fizer, será inteligência policial e vigilância civil. Leia-se o ‘balé da rua’ de Jane Jacobs em Morte e vida de grandes cidades.

Qualquer policial honesto e bem formado reconhece que portar uma arma só complica as coisas. Boa parte das armas usadas por bandidos foi tirada das mãos de cidadãos comuns, de vigilantes, de policiais e das Forças Armadas. Se os que têm permissão para andar armados não se garantem – e muitas vezes, como se vê regularmente no noticiário, são fornecedores de armas para bandidos –, imagine-se o que acontece com os que não a têm?

Proibir por lei não vai resolver. O que resolveria seria a polícia adquirir credibilidade. Só isso. Mas este é um longo caminho. É um processo, não um evento. E atrapalha a vida de muita gente interessada no mau funcionamento das forças encarregadas da segurança pública: policiais e juízes corruptos, advogados, bandidos, fornecedores de bandidos, mídia sensacionalista. Um rol interminável.

Se boas intenções resolvessem…

O maior problema do referendo sobre armas é que ele não suscitou a discussão e a cobrança de uma política de segurança séria. Ao contrário. Em certa medida, uma coisa encobre a outra, porque os dois temas correm paralelos no noticiário. A mídia caiu na esparrela.

O referendo soa como manifestação de boas intenções. Lembra a tentativa de pagar a ‘dívida social’ com denúncias, que dominou muitas consciências desde a década de 1980 e produziu muitos equívocos. Será terrível realizar-se uma grande mobilização cívica e eleitoral e descobrir-se daqui a algum tempo que os problemas não foram consideravelmente atenuados.

Será que, além da polícia, ficaria a política e ficariam os meios de comunicação (leia-se Rede Globo, a que mais conta) com seu conceito ainda mais rebaixado?

Gente do ramo deveria avaliar na imprensa os resultados das campanhas de desarmamento já realizadas e a queda de índices de homicídio. Está sendo estabelecida uma relação de causa e efeito entre uma coisa e outra, mas isso não é consenso. Em São Paulo, por exemplo, supõe-se que foram muito importantes a abertura de escolas para as famílias no fim de semana e outras medidas contra a exclusão social. Em Diadema, como se sabe, fechar os bares depois de determinado horário foi decisivo.

Um argumento interessante seria: se foram obtidos bons resultados com uma campanha de entrega de armas, por que não fazer mais campanhas (processo, não evento), por que fazer lei para proibir? O que a lei consegue reprimir no Brasil?

O antropólogo Roberto DaMatta diz que o brasileiro tem mania de querer enquadrar os fenômenos sociais em leis. Em entrevista ao Observatório da Imprensa [remissão abaixo], ele brincou que ia escrever uma crônica dizendo que vão acabar querendo mudar o formato da urna para impedir crimes eleitorais.

Marqueteiros vêm aí

Quando se deveria caminhar na direção de mais inteligência policial, vamos assistir a uma campanha de marqueteiros. E os publicitários, Marcos Valérios e Dudas à parte, estão piorando a olhos vistos. Fazem anúncio de automóvel em que as pessoas caem brutalmente diante do volante. Tempos atrás, um bandido saía da penitenciária para se encantar com um modelo de carro, como se isso demonstrasse o sucesso da montadora. O cliente do outro banco é um pequeno ser submetido ao sadismo de brutamontes estereotipados, num desenho animado.

É uma longa lista de sandices. O varejão clássico se salva pela simplicidade, mas é brega e barulhento.

Na esfera específica da cidadania, a campanha do Instituto Patrícia Galvão sobre violência doméstica, atualmente em exibição, é uma coisa estúpida, que choca pela violência e provavelmente não faz o telespectador prestar atenção na mensagem principal.

Preparem-se para uma temporada de superficialidade e manipulação de emoções de parte a parte.

Nesse clima, duvidar da eficácia da proibição de armas, mesmo sendo totalmente contrário ao discurso alarmista da bancada da bala, é arriscar-se a ser vítima de anátemas. Paciência. Uma coisa é jogar para a arquibancada. Outra é pensar livremente. Como diz Millôr, livre pensar é só pensar.