Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fatos desvirtuados, informações distorcidas

Na terça-feira (4/1), no Jornal da Band, Joelmir Beting aproveitou a divulgação dos protestos na Itália contra a decisão do governo brasileiro de conceder asilo diplomático a Cesare Battisti para alfinetar a esquerda. Disse que se Cesare Battisti fosse um fascista, a extradição seria concedida. Além de deliberadamente desprezar os antecedentes históricos (durante a ditadura, vários fascistas receberam asilo político no Brasil, dentre eles alguns ditadores latino-americanos), o jornalista da TV Bandeirantes omitiu o que consta da Constituição Federal de 1988.

Gostemos ou não, a competência para conceder ou não asilo diplomático é do presidente da República. O jornalista não gosta da decisão proferida por Lula? OK, a liberdade de imprensa lhe confere este direito. Mas os jornalistas não deveriam colocar em dúvida o poder atribuído pela Constituição ao presidente da República. A decisão presidencial de concessão ou não de asilo não precisa ser legitimada pela imprensa ou pelo governo italiano. O que legitima a concessão de asilo diplomático a Battisti pelo ex-presidente é a Constituição Federal, cujo conteúdo deveria ser integralmente valorizado pelos jornalistas, pois é nela que está garantida a liberdade de imprensa.

Questão de gosto?

Não satisfeito, Beting afirmou que o governo desvirtuou o conteúdo da Lei da Anistia, pois durante a ditadura os esquerdistas mataram e foram mortos. Aqui, a distorção cometida é ainda mais grave. O comentarista do Jornal da Band deliberadamente omitiu a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que julgou inválida a Lei de Anistia aprovada durante a ditadura. Fato, aliás, amplamente divulgada pela imprensa:

‘A Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Brasil por não ter punido os responsáveis pelas mortes e desaparecimentos ocorridos na Guerrilha do Araguaia e determinou que sejam feitos todos os esforços para localizar os corpos dos desaparecidos. O Tribunal concluiu que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974.

Em uma sentença divulgada na noite de terça-feira, a Corte considerou que as disposições da Lei de Anistia brasileira não podem impedir a investigação e a sanção de graves violações de direitos humanos. Para ela, `as disposições da lei são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis´’ (ver aqui).

Todo jornalista tem o direito de se posicionar sobre os fatos noticiados e sobre as decisões governamentais que forem proferidas. Mas o direito de opinar não deve ser exercido de maneira abusiva. Infelizmente, foi exatamente isto o que ocorreu em relação à Anistia.

Quando se referiu a esta questão no Jornal da Band de hoje, desautorizando a posição adotada por algumas autoridades brasileira, Joelmir Beting jogou deliberadamente os telespectadores contra o governo Dilma. Mas sonegou do público o conteúdo da decisão válida proferida pelo Tribunal da OEA que, sem dúvida alguma, confere legitimidade à tese que Beting parece não gostar. Mas desde quando jornalismo é uma questão de gosto? O jornalista lida com fatos e os fatos não devem ser distorcidos, omitidos, editados, inventados ou sonegados só porque o jornalista quer manipular a opinião pública.

Humilhação injustificada

Ao fim da I Guerra Mundial, questionado sobre as sanções duras que pretendia impor à Alemanha, Georges Clemenceu afirmou que ‘ninguém pode dizer que a Bélgica invadiu a Alemanha’. Fatos são fatos e não se pode dizer que o Tribunal da OEA considerou válida a Lei da Anistia brasileira quando aquela corte decidiu exatamente o oposto.

Mas as alfinetadas de Beting na esquerda não rasgaram apenas os fatos. Rasgaram sentimentos também.

Em 1967, quando eu tinha apenas três anos de idade, minha casa foi invadida a chutes várias vezes pelos gorilas da ditadura porque meu pai ousava defender a legitimidade do mandato de João Goulart. Os verdugos chamavam meu pai de comunista e de criminoso, mas eu, que também sofri em razão daquelas investidas brutais, apenas chupava chupetas e mijava naquele homem perseguido.

Os crimes que meu pai eventualmente cometeu naquele período, desconheço. Enquanto estava vivo, ele nunca quis conversar comigo sobre o assunto. Os crimes que eu mesmo cometi, também desconheço. Talvez o senhor Joelmir Beting possa investigá-los e divulgá-los no Jornal da Band. Se os crimes contra a Segurança Nacional que cometi na primeira infância forem realmente imperdoáveis, não ficarei aborrecido ao ser novamente humilhado em público. Ao menos saberei que a humilhação que sofri foi merecida. Mas no dia de hoje, tenho certeza de que não merecia tanta humilhação injustificada no Jornal da Band.

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Advogado, Osasco, SP