Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Fatos que a imprensa ignorou

Nadim Mazloum é meu dileto companheiro de Ministério Público Estadual (São Paulo). Convivemos coisa de cinco anos na Promotoria de Justiça de Guarulhos, circunstância que me possibilitou acompanhar e admirar sua valente atuação na defesa dos interesses da sociedade, muito particularmente da probidade administrativa. Possibilitou-me, também, uma vez estourado o escândalo da chamada Operação Anaconda, dar testemunho do sofrimento e da revolta causados pela acusação aos seus irmãos, Casem e Ali.

É a propósito disto, Operação Anaconda e os irmãos Mazloum, que escrevo ao OI.

Ressalvada a possibilidade de que os laços de amizade com Nadim impeçam-me de enxergar a realidade, o certo é que não compreendo como fatos tão disparatados (ao menos em relação aos irmãos Mazloum) sirvam para erigir escândalo que envolve corrupção, quadrilha e outras podridões por parte de magistrados.

De idêntico modo, penso que soa difícil ao leitor de jornal estabelecer correlação entre os fatos noticiados e a acusação de venda de sentença e quadrilha.

Ei-los (os fatos):

Ali Mazloum

Fato: requisitou (= ordem de apresentação de provas) as fitas de escuta telefônica realizadas em investigação que culminou em processo; Ali deveria proferir sentença no processo em que requisitou as fitas.

Independentemente de aprofundados conhecimentos da ciência do direito, fica difícil estabelecer relação de pertinência lógica entre o fato (requisição de fitas do seu processo) e a conclusão (integra quadrilha que vende sentença).

Veja-se que o juiz que substituiu Ali, afastado de suas funções por conta da Operação Anaconda, proferiu decisão na mesma direção: ordenou a vinda integral das fitas aos autos do processo.

Veja-se, ainda, que o MPF requisitou inquérito policial para apurar escuta clandestina (= criminosa) por parte dos policiais que desobedeciam à ordem de entrega integral das fitas requisitadas por Ali.

Tudo indica, portanto, que Ali agiu acertadamente em seu despacho; não se consegue compreender o silogismo: requisitou as fitas de seu processo logo o juiz é corrupto, quadrilheiro e comete abuso de autoridade.

A imputação poderia fazer algum sentido se houvesse interesse subalterno de Ali ao requisitar as fitas. A primeira idéia que acode nesse terreno de meras conjecturas é o interesse de beneficiar o réu do processo. Mas essa hipótese também fica descartada de plano. Ali condenou o réu (Ari Natalino) e aplicou-lhe severa apenação; deferiu todos os pedidos do Ministério Público, inclusive prisão preventiva, conforme informa a própria promotora (procuradora da República na designação do MPF) Karen, que trabalhou no caso.

Nada, absolutamente nada, indica a mínima sombra das condutas alardeadas sobre a Operação Anaconda. Salvo algum fato ou percepção que escapam ao meu alcance, mas parece muito óbvio que o juiz Ali não incorreu em erro nenhum.

Será que a imprensa tem outra visão dos fatos, ou evita postura analítica em relação ao que lhe é passado sobre o caso?

Conquanto professe enorme admiração pelo papel da imprensa, fico com a impressão de que neste caso ela já percebeu muito bem a inconsistência da história; porém esquiva-se de apontar o despropósito. E posto que o Judiciário parece acuado com todo o escândalo, a omissão da mídia assume uma importância particular e transcendente.

Casem Mazloum

Fato 1: recebeu de presente da quadrilha passagens aéreas para o Líbano.

Tem-se por inelutável que este fato, sim, é de extrema gravidade e justificaria toda a bulha em torno do caso, bem assim o manejo de medidas judiciais de índole criminal e a pretensão de afastamento cautelar do magistrado acusado.

Todavia, a própria imprensa noticiou que Casem anexou aos autos do processo o recibo e a cópia da microfilmagem do cheque que serviu de pagamento das passagens.

Evidencia-se aqui a deficiência da investigação. Ao que consta, a prova do processo escora-se exclusivamente em escuta telefônica, sem outras diligências capazes de confirmar os ditos da prosa por telefone (não entendo por que a imprensa chama de ‘mega-investigação’). Uma terceira pessoa diz que deu passagens com destino ao Líbano de presente ao juiz. Com base na fala constante da escuta e sem outras iniciativas probatórias aptas a checar a veracidade do fato (expedição de simples ofício à empresa aérea esclareceria o fato), formulou-se para logo a denúncia que deu origem ao processo. Quando se fia em mero comentário de terceiro as chances de erro são enormes. Parece que tal se deu neste caso.

A imprensa não deveria reconhecer que divulgou fato inverídico?

Fato 2: declara ao serviço pessoal da Justiça Federal que possui US$ 10 mil no Brasil, mas na verdade dita importância se acha no Afeganistão, consoante declaração de renda anual à Receita Federal.

Diz Casem que ao enviar a declaração à Receita Federal por via eletrônica (internet) deu dois comandos, acreditando que se tratava de confirmação. Na verdade o primeiro comando era de possuir dinheiro no exterior, e na segunda ‘clicada’ registrou o primeiro país estrangeiro da lista (ordem alfabética), o Afeganistão.

Dias depois, ao imprimir a declaração para entrega no serviço pessoal de sua instituição percebeu o erro, retificando a informação: possui o dinheiro em sua casa, no Brasil, e não no Afeganistão.

Ora, o próprio Fisco, em informação colhida pelo jornal Folha de S. Paulo, informou que o fato não constitui ilícito fiscal e não demandaria sequer o envio de declaração retificadora. Mero erro material sem conseqüências nem mesmo no âmbito administrativo, segundo a Receita Federal.

Evidente que se trata de fato irrelevante. Aliás, só um investidor parvo para remeter dinheiro para o Afeganistão (há sistema bancário no país?); os corruptos, como todos sabem, valem-se de paraísos fiscais outros que são a própria antítese do Afeganistão.

Aliás, o que isso tem a ver com quadrilha e esquema de venda de sentença?

Entender como prospera bobagem dessa laia na mídia e no Judiciário é cair no abismo do Inexplicável.

Fato 3: usa placas frias em seu veículo para não ser multado.

Outro fato que beira o ridículo.

Até onde sei, as placas não foram produzidas em abrigo de salteadores; são as chamadas placas reservadas, fornecidas pela própria repartição oficial de trânsito. Não é verdade que impedem imposição de multa; apenas não aparece o endereço do proprietário do veículo. Consta que o serviço endereçado a conferir maior segurança aos magistrados foi oferecido em circular a todos os magistrados criminais da Justiça Federal. Acho legítimo que se questione a validade desse tratamento diferenciado às autoridades; a condição de juiz, sujeitando o indivíduo a maiores riscos em comparação ao cidadão comum, autoriza ou não o benefício de não constar o seu endereço nas consultas do público junto ao órgão de trânsito? Seja como for, o certo é que isto não faz a mais mínima mostra de corrupção, quadrilha, abuso ou venda de sentença.

Fato 4: indagado em conversa telefônica sobre quem faria escuta clandestina, Casem ressalta a invalidade da prova, mas dá o telefone do agente policial que trabalhava no Fórum. A escuta clandestina não foi feita.

O fato, a meu ver, até assume laivos de infração ética. Exige-se de um magistrado, mesmo em conversas informais que nada têm a ver com suas atividades jurisdicionais, comportamento que não combina com a permissividade de aceitar, ainda que de maneira enviesada, escuta clandestina.

Seja como for, nada disso faz prova ou dá mostras de quadrilha, abuso ou corrupção.

Estes são os fatos, até onde sei.

Veja-se que embora em segredo de justiça o processo, estas informações foram obtidas em matérias jornalísticas e em sítio da internet, o Consultor Jurídico.

Insisto que a omissão dos jornalistas em denunciar a inverossimilhança da acusação é grave, com o que não isento a responsabilidade de outras instituições por eventuais abusos. Idiossincrasias pessoais entre juízes, promotores e policiais não são raras no meio forense, campo fértil para exageros e revanches. O Tribunal que os julga já sofre o estigma decorrente do afastamento de vários membros por suspeita de corrupção, a par de abrigar renhida dissensão política.

De outra parte, sem querer incorrer em argumentação demasiado diversionista e conspiratória, mas parece que havia interesses governamentais que quadravam com o caso (reforma do Judiciário e o paradeiro de fitas de um outro caso rumoroso). Como quer que seja, independentemente deste cenário, o xis da questão reside no escândalo fomentado pela mídia e que cria o caldo propício aos erros judiciais, mesmo os mais clamorosos. Vale lembrar o caso da Escola Base: se um primeiro jornalista não dissesse em alto e bom som que a história não fazia sentido, talvez o caso não tivesse precoce esclarecimento.

Precisamente por isso é que escrevo. O bom jornalismo pode esclarecer o leitor sobre a real conduta dos magistrados Casem e Ali, que respondem por abuso, corrupção e formação de quadrilha.

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Promotor