Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha de S. Paulo

MEMÓRIA / JEAN BAUDRILLARD
Marcos Flamínio Peres

O homem que inspirou Matrix

‘Crítico da sociedade de consumo e da massificação das relações humanas, o sociólogo francês Jean Baudrillard, que morreu na terça-feira passada aos 77 anos, foi um dos pensadores mais presentes -e contestados- no debate público desde o fim dos anos 1960.

Noções como simulacro e hiper-realidade ganharam o mundo por meio de seus escritos e de suas intervenções, como na série ‘Matrix’ -embora afirmasse que esta foi ‘uma interpretação incorreta de sua obra’ (leia seus conceitos-chave na pág. ao lado). Germanista de formação, iniciou a carreira na Universidade de Paris, em Nanterre, que vivia a ebulição do pré-Maio de 68. Afinado com as posições do situacionismo de Guy Debord e da semiótica de Roland Barthes, Baudrillard aliou a contundente crítica à ‘sociedade de espetáculo’ do primeiro à análise dos signos sociais presente na obra do segundo.

Embora dono de vasta bibliografia -como ‘O Sistema dos Objetos’ (1968) e ‘A Sociedade de Consumo’ (1970)-, foi coerente com seu modo de pensar e não constituiu escola nem seguidores. Por isso, chegou a ser visto como o ‘anti-Bourdieu’, referência ao mestre da sociologia que dominou o pensamento -e a burocracia- do meio universitário francês nas últimas décadas do século passado. Essa foi uma das razões porque sempre foi mais ouvido fora da França -sobretudo nos Estados Unidos.

Na linha de frente

Suas posições sempre o colocaram na linha de frente do debate público -ainda que suas avaliações errassem o alvo em várias ocasiões. Nos anos 1970, previu que a Guerra do Vietnã seria um ‘álibi’ para os EUA incorporarem a China e a Rússia. Já ao afirmar que a Guerra do Golfo (1991) ‘não existiu’, procurou diagnosticar o caráter ‘cirúrgico’ de uma guerra ‘virtual’, em que ‘o inimigo não é mais do que um número no computador’.

Após o 11 de Setembro, previu o fim das ‘mitologias do futuro’ -’o progresso, a tecnociência e a história’. Em 1996, foi alvo, assim como Deleuze, Guattari e Lyotard, da paródia criada por Alan Sokal na revista ‘Social Text’, em que o físico da Universidade de Nova York atacou o estilo ‘difícil’ e ‘vazio’ dos pós-modernos (leia entrevista com Sokal na pág. seguinte). Contudo permanece inatacável a importância de Baudrillard como destruidor de fetiches contemporâneos, como defende o sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman. Autor de ‘Vida Líqüida’ (Jorge Zahar, trad. Carlos Alberto Medeiros, 210 págs., R$ 36), que está saindo no Brasil, Bauman afirma que o pensador francês foi ‘o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches’.

Ele ‘fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens’, diz na entrevista abaixo, concedida à Folha. Mas, lembra Bauman, ao levar ao limite a sua iconoclastia, Baudrillard encontrou -escondido atrás das máscaras- apenas o ‘vazio’.

FOLHA – Qual é a importância das idéias de Baudrillard hoje?

ZYGMUNT BAUMAN – Jean Baudrillard foi o maior iconoclasta de nossa época, o supremo especialista em rasgar máscaras e desmascarar fetiches… Diferentemente de outros, ele se recusou a proclamar o ‘fim’ de qualquer coisa (da ideologia, utopia, filosofia, história ou o que seja), tentando, em vez disso, demonstrar a impossibilidade de resolver as questões de sua validade.

Ele empurrou a arte da iconoclastia a extremos que outros não desejaram ou não puderam alcançar. Fez um trabalho absolutamente necessário em um mundo obcecado pelas imagens, em que a condição preliminar para qualquer tentativa de melhorar a situação é resistir ao poder sedutor das imagens e escapar de seu encantamento. Realizou à perfeição essa tarefa de ‘limpar o terreno’.

Mas parou nesse ponto. Ao levar as iniciativas iconoclastas além de seus limites anteriores, aproximou-se perigosamente do niilismo…

Como o herói de Ibsen, Peer Gynt, pensando em seu ‘eu autêntico’ como uma espécie de cebola, não encontrou um núcleo duro quando descascou a última camada, apenas o nada. Assim, Baudrillard, depois de arrancar todas as máscaras que o mundo supostamente usava, se deparou com o vazio.

Ele limpou o terreno potencial da construção, mas um cemitério de máscaras e fetiches se mostrou inadequado para sustentar qualquer edifício…

FOLHA – Quais obras e conceitos de Baudrillard permanecerão?

BAUMAN – Não sou profeta nem vidente, e em nosso mundo veloz as obras tendem a ser rapidamente esquecidas, enquanto o destino dos conceitos tende a ser caprichoso. Mas certamente optaria pela idéia de ‘simulacro’ e sua aplicação à percepção de tudo o que parece ‘realidade’, mas da qual não podemos dizer onde está a diferença entre ‘representação’ e ‘o que é representado’.

Simulacro não é simulação -neste caso, ninguém apenas mente ou age sob falsas pretensões. De maneira semelhante aos problemas psicossomáticos, as dores do paciente são genuínas, e todos os sintomas do sofrimento estão presentes – mesmo que não seja possível descobrir as ‘causas orgânicas’ da doença.

Então, o paciente está doente ou não? Mente ou fala a verdade? Bem, Baudrillard apenas repetiria, como Pôncio Pilatos: ‘O que é a verdade?’. Pergunta que, como você se lembra, nem ele respondeu…

FOLHA – O sr. é um crítico dos ‘muros universitários’, como um obstáculo ao livre pensamento. Baudrillard, como um dos últimos intelectuais envolvidos no debate público, foi o último livre-pensador? Nesse caso, sua morte representa o fim de uma era?

BAUMAN – Não ouse proclamar o fim dos intelectuais, do debate público ou do livre pensamento! Sua morte foi anunciada muitas vezes, mas, como uma fênix, sempre se reergueu das cinzas, mesmo que sob uma forma diferente. E lembre-se também de que Baudrillard passou a maior parte da vida dentro dos ‘muros universitários’ e foi um professor zeloso, que viajou ao redor do mundo dando seminários em universidades.

É verdade que as pressões das rotinas universitárias em nossa sociedade de mercado não encorajam o livre pensamento e afastam a grande maioria dos acadêmicos das responsabilidades intelectuais. Mas o papel do intelectual sempre foi uma vocação da minoria, enquanto alguns conseguiram permanecer livres até em campos de concentração…

FOLHA – Qual será o futuro da sociologia?

BAUMAN – Creio que em nenhum outro momento a sociologia foi tão necessária quanto hoje, embora os tipos de serviços que foi preparada para oferecer na fase ‘sólida’ da modernidade não sejam mais muito solicitados (alguns sociólogos americanos, por exemplo, temem ‘perder o contato com a agenda pública’). Em nossa época, diversas ‘funções públicas’ foram abandonadas pelas instituições públicas e ‘terceirizadas’ para iniciativas de mercado ou ‘subsidiarizadas’ para a ‘política de vida’ individual.

Como afirmou [o sociólogo] Ulrich Beck, hoje espera-se que os indivíduos construam individualmente, usando recursos individuais, soluções individuais para problemas comuns e produzidos socialmente. Diante dessa tarefa, todos precisamos ter conhecimento confiável sobre os modos como os ‘fatos da vida’ são produzidos e nos confrontam como realidade imutável.

Essas fontes e raízes não podem ser apreendidas dentro da experiência individual e permaneceriam invisíveis sem a ajuda da sociologia.

FOLHA – Por que o sr. prefere o termo ‘modernidade líqüida’ a ‘pós-modernidade’?

BAUMAN – ‘Pós-modernidade’ foi temporariamente útil para mim como uma espécie de conceito ‘improvisado’. Sugeria, corretamente, que as condições de vida já são um tanto diferentes do que pensamos que seriam as condições modernas, mas era descomprometido sobre a natureza dessa diferença. Também sugeria, erradamente, que a modernidade ‘terminou’ e já estamos em outra era… O conceito de ‘modernidade líqüida’ evita esse último erro e enfatiza que somos tão, senão mais, modernos quanto nossos pais e avós.

Sugere que, no fundo de todas as outras (numerosas) diferenças, está a nova ‘liquidez’ -a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo.

FOLHA – Em ‘Amor Líqüido’, o sr. afirma que o amor é hoje identificado pela ‘racionalidade do consumidor’. O consumo, como em Baudrillard, é a ‘bête noire’ da sociedade contemporânea?

BAUMAN – Não tanto o consumo (afinal, essa é a eterna necessidade de todo ser humano), mas o consumismo: a tendência a perceber o mundo como basicamente um enorme recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo.

Assim, o outro (parceiro, amigo, vizinho, parente) é ‘bom’ desde que traga satisfação e pode (ou deve) ser descartado quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar. Outros seres humanos se tornam descartáveis e facilmente substituíveis -como os bens de consumo são ou deveriam ser.

Afinal, não fazemos juramento de eterna fidelidade a celulares, televisores, computadores, carros, geladeiras e outros bens de consumo. Quando eles param de funcionar ou são superados por ofertas novas e mais atraentes, nos separamos deles com pouca tristeza e sem escrúpulos… Na verdade, tendemos a comemorar a substituição! Mas esse ‘padrão consumista’ é contrário aos princípios que conduzem nossos relacionamentos amorosos.

Se for aplicado, torna impossível a relação amorosa realmente satisfatória. Ele envenena a parceria com desconfiança mútua e a enche de constante incerteza quanto às intenções do parceiro. Amplia qualquer desavença mínima a uma proporção gigantesca, dando motivos suficientes para terminar e recomeçar em outro lugar. Assim como devolvemos uma mercadoria imperfeita à loja, exigindo nosso dinheiro de volta…

Sob a pressão do consumismo, as relações amorosas se transformam em episódios amorosos: tornam-se frágeis, quebradiças, não-confiáveis -antes uma fonte de medo, ao invés de alegria.

FOLHA – Em ‘Vida Líqüida’, o sr. diz que vivemos sob condições de constante incerteza. Como essas novas condições modificam nossa percepção do mundo político?

BAUMAN – A incerteza, o medo do desconhecido, das ameaças imprevisíveis e inomináveis ao corpo humano, à propriedade, ao esquema de vida são uma matéria-prima facilmente reciclada em capital político.

A promessa de ‘ser duro’ com criminosos, estranhos, imigrantes, mendigos e todas as outras pessoas vistas como incômodos e potenciais perigos se torna uma arma preferida em disputas políticas.

Os governos são capazes de aparecer como guardiões da segurança e salvadores de catástrofes indizíveis, que, de outro modo, sem sua vigilância e empenho, poderiam afetar seus súditos, enquanto os partidos de oposição desenvolvem um ‘benefício próprio’ ao convencer os cidadãos de que os verdadeiros perigos são muito maiores do que os governos deixam perceber.

Jogar com os sentimentos de insegurança e os medos resultantes se torna hoje o principal veículo de dominação política.’

***

Entenda os conceitos-chave

‘Sociedade de consumo

Preocupação principal das primeiras obras de Baudrillard: necessidades, forças e técnicas naturais são substituídas por um sistema em que os objetos de consumo dão forma e significado à vida cotidiana.

Pós-modernidade

É definida como o vazio deixado pelo desaparecimento das ideologias e dos limites da modernidade, embora Baudrillard recusasse o rótulo de ‘pós-moderno’.

Simulacro

Enquanto o mundo moderno era organizado em torno da produção, o mundo pós-moderno é regulado pela reprodução, pela simulação. Diferentemente da imitação ou do fingimento -casos em que a diferença entre produto e realidade se mantém-, o simulacro (a TV, a realidade virtual) confunde realidade e ilusão.

Hiper-realidade

É o mundo dos simulacros em que as pessoas vivem, a sociedade de imagens -idealizadas pela TV, rotuladas pelos meios de comunicação de massa e distantes do cotidiano do trabalho- que substitui a sociedade de classes e do trabalho.

Fim do trabalho

Nos anos 1970, Baudrillard rompe com o marxismo, que, segundo ele, perde sentido no mundo pós-moderno: o trabalho deixa de ter valor em si, aparecendo apenas como mais ‘um signo entre outros’, um sinal de status ou modo de vida.

Sedução

Com seus rituais ambíguos, opõe-se ao conceito de ‘sexual’ -este está associado à produção. A sociedade burguesa teria subvertido a ordem original, em que a sedução viria primeiro. Ao tentar resgatar o conceito de sedução, no final dos anos 1970, Baudrillard o associou ao feminino, criticando, porém, o feminismo -o que gerou mal-estar no círculo dos estudos de gênero.

Orgia e pós-orgia

A expansão cultural moderna aparece como ‘orgia’. Baudrillard ressalva não se tratar de liberação, mas de ‘metáfora da liberação’ manifesta na sociedade moderna. A sociedade contemporânea, portanto, viveria a pós-orgia, a reação a essa explosão -uma implosão.

Implosão

Conceito emprestado do canadense Marshall McLuhan (1911-80), nomeia o colapso da diferenciação entre os planos econômico, político, artístico etc. Na sociedade da simulação, a economia e a vida ‘reais’ não se diferenciam mais dos simulacros; a sexualidade permeia tudo.

Transestética

Situação conseqüente da implosão: ao mesmo tempo em que a arte tudo permeia, ela deixa de ser entendida como fenômeno próprio; seu poder de oposição à realidade desaparece, juntamente com suas normas.’

***

O jargão incompreensível

‘Em 1996, o físico americano Alan Sokal provocou uma enorme turbulência no meio intelectual, sobretudo entre os chamados pós-modernos, ao pregar uma peça na revista ‘Social Text’. Ele enviou à revista de ciências humanas -afinadas com essa linha teórica- um texto sem pé nem cabeça, mas que se servia de um pesado linguajar acadêmico, a começar pelo título: ‘Atravessando as Fronteiras – Em Direção a uma Hermenêutica Transformativa de Gravidade Quântica’.

Seu objetivo era provar que obras de autores como Gilles Deleuze, Félix Guattari e Julia Kristeva eram pouco rigorosas, além de todos, segundo Sokal, serem avessos à possibilidade de alcançar um conhecimento objetivo das coisas.

Meses depois, revelaria o embuste, que acabaria por desenvolver no livro ‘Imposturas Intelectuais’ (ed. Record), escrito em parceria com o também físico Jean Bricmont. Onze anos depois da celeuma, Sokal fala à Folha sobre o que mudou desde então e compara os ‘estilos’ de Baudrillard, Deleuze e Kristeva.

FOLHA – Como o sr. avalia o caso ‘Social Text’, passados 11 anos? O que mudou hoje?

ALAN SOKAL – Acredito que o escândalo em torno da publicação de meu artigo paródico na ‘Social Text’ -e, mais tarde, a publicação de meu livro ‘Imposturas Intelectuais’, em co-autoria com Jean Bricmont-, teve um efeito salutar, pois estimulou o debate sobre o abuso do jargão por alguns pós-modernistas proeminentes. Estudantes e professores não ficam mais intimidados em dizer ‘não entendo isso. O que de fato isso significa?’.

FOLHA – O que o sr. critica na obra e nos textos de Baudrillard?

SOKAL – Muitos dos textos dele são escritos em um estilo pomposo que parece ser profundo, mas cujo significado preciso (no caso de haver algum) está longe de ser claro. Bricmont e eu concluímos nossa análise dos abusos de Baudrillard afirmando que ‘se encontram nas obras dele uma profusão de termos científicos, usados com displicência em relação a seus significados, e, acima de tudo, em um contexto em que são claramente irrelevantes. […] Além disso, a terminologia científica vem misturada com um vocabulário não-científico, que é empregado com igual falta de rigor’.

FOLHA – Em que Baudrillard comete imposturas? Eram melhores ou piores que as de Deleuze e Kristeva?

SOKAL – As imposturas são de vários tipos, então é difícil estabelecer uma ranking unidimensional de acordo com o ‘grau de impostura’. Baudrillard escreve sentenças pomposas repletas de terminologia supostamente científica, que são ao mesmo tempo banalidades travestidas de profundidades e totalmente sem sentido. O estilo de Deleuze é similar, mas com a pretensão de ser uma profunda contribuição à filosofia.

O estilo de Kristeva é menos frenético, mas ela intimida seu leitor com fatos altamente técnicos tirados da teoria ou análise matemáticas -que, posteriormente, se mostram irrelevantes para os temas (por exemplo, a linguagem poética).

FOLHA – A ‘invasão’ de pensadores franceses, como Baudrillard, sempre foi vista com restrição em alguns círculos acadêmicos dos EUA. O sr. se coloca entre eles?

SOKAL – Para mim, as idéias não têm nacionalidade. Boas idéias devem ser aceitas não importa de onde venham; más idéias devem ser rejeitadas, não importa de onde venham.

A nacionalidade de um autor é irrelevante.’

Katia Maciel

‘Brasil é o império das ilusões’

‘Em 1992, se realizou na cidade do Rio de Janeiro a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco 92. Jean Baudrillard havia sido convidado para uma conferência, e a enorme mobilização da cidade em torno do evento provocou esta entrevista, que aconteceu no Jardim Botânico. Esta não foi a nossa primeira conversa e nem seria a última.

Durante muitos anos foram muitas conversas, mas só tenho o registro desta, que trata da relação entre a natureza e a alteridade, o ciclo da metamorfose, da vida e da morte. As idéias de hiper-realidade e de simulacro são experimentadas no cenário brasileiro a partir de uma análise que considera os processos comunicacionais como aceleradores do consenso. A forma de confrontação escolhida pelo autor é a da teoria fatal, a teoria no meio das coisas, uma teoria que não considera mais a separação entre sujeito e objeto e que acolhe em seu centro os gestos da indiferença como estratégia. Para o Brasil as palavras são de encantamento.

Baudrillard sempre acreditou neste país confuso e generoso e nunca pensou no Brasil como o país do futuro; ele sempre preferiu o presente.

PERGUNTA – Você acredita que esta conferência terá resultados mesmo sendo um tipo de simulacro?

JEAN BAUDRILLARD – Parece-me que tudo isso faz parte de uma nova ordem mundial. No sentido político, a ecologia faz parte de um novo establishment mundial, fundado sobre uma extensão formal da democracia, dos direitos humanos, fundado sobre um consenso. É mais um pacto simbólico com a natureza. Não é exatamente um contrato natural, não é um contrato em termos racionais. […]

PERGUNTA – Não há mudança de toda forma.

BAUDRILLARD – Neste momento de consenso, só há mudanças mecânicas ou eletrônicas. A rede funciona, o processo é de rede, de circuito. Estabelecemos o consenso pela circulação acelerada das coisas. Se você está dentro de uma rede, você está em consenso. Não é uma questão de ideologia.

PERGUNTA – A aceleração é produzida pela mídia, por exemplo? O que promove toda a aceleração?

BAUDRILLARD – Na verdade, parece uma espécie de imensa maquinaria em forma de circularidade indefinida. Tudo comunica e tudo se torna comunicação. Nada muda verdadeiramente, não há uma forma de alteridade, de antagonismo, de relação dual. Não. Tudo circula. Tudo se torna comunicação, seja a sexualidade, as imagens ou até mesmo os processos científicos. Temos a impressão de que somos reconhecidos no mercado da pesquisa científica por descobertas e hipóteses que possam comunicar.

O universo da comunicação é monofuncional. Existe uma mobilidade e é preciso que tudo seja dito. É preciso que tudo circule. De onde vem esse imperativo? Eu não sei… um mecanismo de dissuasão, de desqualificação. Tudo que é substancial, que tem valor, é perigoso. Então é preciso reduzi-lo, é preciso consensualizar fazendo circular.

PERGUNTA – Você vê a questão da hiper-realidade no Brasil?

BAUDRILLARD – Eu não vejo o Brasil como um país hiper-real. Não é como a Califórnia, a América do Norte. Talvez porque o Brasil ainda não tenha passado pelo princípio de realidade, não pode se tornar hiper-real, porque o hiper-real é mais que o real, um tipo de confusão entre o real e o imaginário. Tem-se a impressão de que não existe um princípio de definição da realidade. É bem uma espécie de país de ficção, mas não de ficção de transparência.

Não é o país da semiologia ou da semiótica. Tenho a impressão de que o Brasil está mais próximo do jogo da ilusão, da sedução, dessa relação dual, mas confusa, e que não há essa forma de abstração que é a hiper-realidade… Enfim, essa forma de transmutação no vazio, de perda de substância, de referência. Aqui, é claro, há televisão por todo lado, há imagens, isso tudo. Temos a impressão de que é uma matéria muito mais bruta, imediata, primitiva, é uma matéria da relação coletiva.

Não é a mesma definição que podemos ter na Europa entre o meio e a mensagem. Toda a teoria da comunicação não funciona assim porque são as funções de um modelo abstrato, uma realidade abstrata. Justamente por meio das novas imagens há uma espécie de confusão entre o emissor e o receptor. A hiper-realidade é uma espécie de roteiro transparente da modernidade, mesmo na Europa. Aqui eu tenho a impressão de que é uma confusão não primitiva -porque seria uma expressão pejorativa-, mas original.

Uma confusão que é ainda uma forma anterior à da discriminação das coisas, da distinção das coisas. A hiper-realidade é quase tardia porque veio depois da divisão das coisas.

PERGUNTA – Mas nos EUA também não houve uma realidade anterior.

BAUDRILLARD – Sim, certamente. Não exatamente um princípio de realidade, na medida em que não houve uma acumulação primitiva de realidade por dois séculos, como na Europa. Não há um histórico de realidade, mas um princípio tecnológico, operacional, pragmático. Isso é um problema de infra-estrutura própria, não é uma infra-estrutura de princípios metafísicos, de princípios do sujeito. Há um princípio de operacionalidade muito forte nos EUA .

Aqui eu não tenho a impressão de que ele funcione realmente, e não é ele que governa as formas simbólicas da relação. Portanto, é uma situação original, mas, evidentemente, quando fazemos a análise da hiper-realidade, ela é universal. Todo mundo é submetido a esse regime de potencialização de signos. Mas talvez o Brasil escape do universal.

É preciso saber se a cultura brasileira passou pela modernidade, se os elementos de modernização, de abstração, de mediatização se tornaram os mais fortes. Se foi engolida e absolvida por isso, não estou muito certo.

Não há julgamento estatístico ou metafísico. Talvez no Brasil haja uma certa tradição, talvez haja muito mais de surrealismo que de hiper-realismo.

PERGUNTA – Então seriam principalmente efeitos do inconsciente ?

BAUDRILLARD – O hiper-realismo é, na verdade, uma zona da desencarnação dos corpos. Não é o caso, aqui os corpos não são de forma alguma desencarnados. Os gestos, o movimento aqui são verdadeiramente sensuais. A hiper-realidade é um tipo de desencarnação, de desilusão, um pragmatismo das coisas. Aqui ainda é o império das ilusões, mas no sentido positivo do termo, ou seja, o jogo de aparências, incluídos no gestual, na dança, na música, no jogo, no culto.

Esse tipo de coisa não demonstra absolutamente uma alternativa política, apenas mostra que ainda existe uma forma de ilusão, isto é, de gestão simbólica das coisas.

KATIA MACIEL é professora de comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Leia a íntegra da entrevista em www.folha.com.br/070672′

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Obras no Brasil

‘O Sistema dos Objetos (Perspectiva)

A Troca Simbólica e a Morte (Loyola)

À Sombra das Maiorias Silenciosas – O Fim do Social e o Surgimento das Massas (Brasiliense)

O Anjo de Estuque (Sulina)

Da Sedução (Papirus)

Cool Memories – 1980-1985 (Espaço e Tempo)

As Estratégias Fatais (Rocco)

Partidos Comunistas (Rocco)

Cool Memories 2 – Crônicas 1987-1990 (Estação Liberdade)

A Transparência do Mal – Ensaio sobre os Fenômenos Extremos (Papirus)

Cool Memories 3 – Fragmentos 1991-1995 (Estação Liberdade)

América (Rocco)

Tela Total – Mito e Ironias da Era do Virtual e da Imagem (Sulina)

A Ilusão Vital (Civilização Brasileira)

A Arte da Desaparição (UFRJ)

A Troca Impossível (Nova Fronteira)

Cool Memories 4 – Crônicas, 1996-2000 (Estação Liberdade)

De um Fragmento ao Outro (Zouk)

Senhas (Difel Brasil)

Power Inferno (Sulina)

Telemorfose (Mauad)’



MEMÓRIA / GERARDO MELLO MOURÃO
Folha de S. Paulo

Poeta Mello Mourão é sepultado

‘O corpo do poeta e escritor cearense Gerardo Mello Mourão foi sepultado ontem à tarde no cemitério São João Batista (Rio).

Ele morreu anteontem, aos 90 anos, na Casa de Saúde São José, onde estava internado desde janeiro com infecção pulmonar.

Correspondente da Folha em Pequim entre 1980 e 1982, escreveu obras premiadas como ‘Peripécias de Gerardo’ (82) e ‘Invenção do Mar’ (98). ‘Perdemos um dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos. Considerado não só por mim, mas por poetas da Espanha e da França, que o indicaram para o Prêmio Nobel’, disse Antônio Olinto, da Academia Brasileira de Letras.’



MEMÓRIA / ARLEY PEREIRA
Folha de S. Paulo

Arley Pereira morre aos 72 em São Paulo

‘O jornalista e escritor Arley Pereira Gomes de Oliveira morreu na tarde de sexta em São Paulo, aos 72 anos, em decorrência de problemas no coração. Um dos maiores especialistas em música brasileira, Arley Pereira trabalhou em diversos jornais, revistas e em programas de TV.’



TELEVISÃO
Daniel Castro

‘Paraíso Tropical’ revolta pernambucanos

‘O ‘problema’ é que a Globo gravou cenas em um resort em Porto de Galinhas, mas diz na novela que as imagens são de uma fictícia cidade baiana.

Na semana passada, o ‘caso’ foi parar na imprensa local. O blog do jornalista Jamildo Melo registrou reações indignadas de pernambucanos.

‘Estamos sendo roubados pela Globo’, comentou um dos leitores do blog. ‘É preciso dar uma basta no colonialismo cultural da Globo’, decretou outro, fazendo coro a ‘radicais’ que cobraram providências de políticos e pregaram boicote à programação da Globo.

Para a Globo, não há razão para polêmica. A emissora informa que a maioria das cenas ambientadas no Nordeste foram gravadas na Bahia. Em Pernambuco, diz, houve apenas gravações com o ator Fábio Assunção na recepção e nas piscinas de um resort.

‘Quando optamos por gravar na Bahia e em Pernambuco foi com o objetivo de iniciar a novela valorizando este país tão rico e que, eu acho, é o que vale a pena ser comemorado tanto por pernambucanos, como baianos’, diz Gilberto Braga, co-autor de ‘Paraíso Tropical’.

A Secretaria de Turismo de Pernambuco minimizou o caso, afirmando que é normal em Hollywood uma locação ser identificada como outro local.

COBIÇA 1 Embora oficialmente informe o contrário, a Record segue firme negociando com Fernanda Montenegro. Se fechar com a emissora, a atriz interpretará a mãe da personagem de Bianca Rinaldi na novela ‘Caminhos do Coração’, que em julho substituirá ‘Vidas Opostas’.

COBIÇA 2 Quem também continua negociando com a Record é Rodrigo Santoro. Seu pai e empresário esteve visitando a emissora na semana passada.

SANGUE NOVO Nova diretora artística do SBT, Daniela Beyrutti vem sondando profissionais jovens e talentosos para comporem sua equipe. Se depender da filha de Silvio Santos, o SBT continuará sendo uma rede de TV popular, mas com uma embalagem um pouco mais sofisticada.

MUDANÇAS Vai se chamar ‘Mudando de Vida’ o programa que Karina Bacchi e Ticiane Pinheiro terão na Record, inspirado no ‘reality show’ de Paris Hilton e Nicole Richie. Seu título anterior, ‘Vida Simples’, já é marca registrada de uma editora.

VEM AÍ O Warner Channel confirma para julho as estréias de ‘Studio 60’, seriado que fracassou nos EUA, e da terceira temporada de ‘The L Word’.’

Bia Abramo

Gilberto Braga volta com novela vibrante

‘É nessas primeiras semanas que uma novela tem algum tipo de autoria, quando ainda não sofre a pressão do público e dos misteriosos desígnios superiores que a vão tornando reiterativa, arrastada, pontilhada por truques para subir audiência.

Autoria aqui tem um significado modesto: tem a ver com as concepções de seus autores, sim, mas também com os outros profissionais, sobretudo diretores e atores, que também contribuem para o empreendimento.

A ‘Paraíso Tropical’ que estamos vendo por enquanto -e veremos mais quanto? Duas, três semanas? Até o fatídico capítulo 70?- ainda é essa novela em que cada detalhe obedece a um plano geral, a forma dos personagens se anuncia em diálogos e gestos bem cuidados e, importante, as expectativas do público ainda não são capazes de mudar os rumos da trama. E, claro, sendo uma novela com o dedo de Gilberto Braga, isso significa uma narrativa vibrante e bem amarrada, com algumas pitadas de ousadia criativa bem ao seu estilo.

Se há um certo exagero em compará-lo a Balzac, não haverá em afirmar que ele é o noveleiro que melhor explora as possibilidades autorais do formato, ao mesmo tempo em que tenta esticar seus limites.

Assim, ‘Paraíso Tropical’ começa com uma peraltagem metalinguística -a personagem mais tradicional, a anacrônica cafetina ‘do bem’ das novelas ‘nordestinas’, não por caso batizada como a mítica ‘mulher de verdade’, Amélia, é morta logo nos primeiros capítulos. Sinal de que a ‘velha’ novela, aquela que fez a história da Globo, esgotou suas temáticas por decurso de prazo, não tem mais lugar.

O mundo do trabalho, representado pela rede de hotéis de Antenor, é um mundo instável, à beira de ruir, no qual convivem a mais fria racionalidade empresarial com as relações pessoais autoritárias, irracionais e permeada por relações de favor.

O bairro da vez é a cosmopolita, decadente, diversa e, sim, ainda estonteantemente bela Copacabana, espécie de território fronteiriço entre informalidade e franca marginalidade. E, ainda por cima, numa inversão bem-vinda nos tempos modernos, é a mocinha determinada que salva um mocinho fragilizado.

Claro que também há a convenção, mas a diferença de Braga para a maioria de seus pares é que ele ainda supõe que o espectador gosta de acompanhar o desenrolar da trama e, mais, que isso merece do texto, dos diálogos, dos atores e da direção uma narrativa mais encadeada e coesa, Ou seja, ainda prefere uma história bem contada à simples exposição a cenas de impacto.

É, portanto, aproveitar a novela ainda nesse estágio -e torcer para que o afrouxamento que ralentou o passo de ‘Celebridade’ e transformou a heroína da história, a personagem Maria Clara, numa chata irredimível não se instale desta vez.’

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Folha de S. Paulo – 1

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O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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