Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha esquece o outro lado

‘É uma dor canalha/ Que te dilacera/ É um grito que se espalha/ Também pudera/ Não tarda nem falha/ Apenas te espera/ Num campo de batalha/ É um grito que se espalha/ É uma dor/ Canalha.’ (Walter Franco, Canalha)

O jornal da ditabranda continua dando repulsiva contribuição ao linchamento judicial e consequente assassinato do escritor Cesare Battisti, que já declarou preferir a morte à desonra de ser entregue como troféu a Silvio Berlusconi.

Seu editorial, no dia da segunda sessão de julgamento do pedido de extradição italiano (12/11), foi mais aberrante ainda do que os produzidos para bajular a ditadura militar quando esta impunha o terrorismo de Estado ao país e trucidava os heróicos resistentes.

O título já disse tudo: ‘Extraditar Battisti’. Como regente do coral dos linchadores, a Folha de S.Paulo ditou sua palavra de ordem aos ministros do Supremo Tribunal Federal.

E mentiu descaradamente a seus leitores: ‘Ao advogar a defesa do refúgio, Genro quis transformar um estrangeiro condenado em seu país por assassinatos comuns e premeditados em figura perseguida por opinião política’.

Como tantos juristas ilustres e respeitados defensores dos direitos humanos vêm afirmando desde 2007, sem que a Folha abra espaço para o outro lado nem conceda direito de resposta, Battisti foi condenado em 1988 mediante enquadramento numa lei criada especificamente para punir a subversão contra o Estado italiano.

E, em seu voto que seria suficiente para mandar de vez esse processo infame para a lata do lixo caso houvesse o mínimo respeito pela verdade e pela Justiça, o ministro Marco Aurélio Mello lembrou o singelo detalhe de que, na sentença que a Itália quer nos enfiar goela adentro, 34 vezes está dito que o motivo do processo é a subversão contra o Estado.

Numa ignóbil manipulação dos fatos, a Folha atribuiu ao ministro Tarso Genro aquilo que quem faz é o extremista presidente do STF Gilmar Mendes, em sua militância contra os movimentos sociais e os cidadãos que resistiram e resistem ao arbítrio neste sofrido país: ‘Ficou claro que a lei estava sendo desvirtuada para que pudesse atender a conveniências políticas de um grupo’.

Que eu saiba, a lei tem sido desvirtuada neste país é para livrar poderosos como Daniel Dantas das grades.

Não me lembro de ter lido editoriais da Folha contra o maior desvirtuamento já cometido contra as leis deste país, a promulgação do Ato Institucional nº 5. Devo ter má memória.

Toga alheia

Vestindo uma toga que deve ter alugado na loja de adereços teatrais ou tomada emprestada dos palhaços de algum circo, a Folha sentenciou que Battisti é um ‘criminoso’.

Sim, ele é. Tanto quanto os injustiçados de todos os tempos e países, que comete(ra)m o crime de lutar contra a exploração do homem pelo homem. Para a burguesia e para seus lacaios da Folha de S.Paulo, este é e será sempre o maior dos crimes, justificativa para toda a desinformação e todos os linchamentos.

Finalmente, o jornal entoou a desmoralizadíssima cantilena de que a Itália era uma democracia quando torturava seus presos políticos e os submetia a farsas judiciais comparáveis às das ditaduras militares latino-americanas e às da Santa Inquisição, além de fazer lobby explícito para que o ministro Toffoli amarelasse (o que acabou acontecendo):

‘Esta Folha sustenta que a decisão da Justiça italiana precisa ser respeitada e que Battisti deve cumprir pena conforme as leis da democracia que o condenou. Apesar das controvérsias, parece não haver impedimento para que Toffoli participe da decisão (…). É a sua consciência que o ministro deve seguir para eventualmente se declarar impedido’.

Tendenciosidade de um pasquim

Quem publica um editorial desses implicitamente declara que abandonou de vez as boas práticas jornalísticas, preferindo atuar com a tendenciosidade de qualquer pasquim da extrema-direita.

Então, não é surpresa que, na edição de domingo (15/11), o jornal subscreva versões policiais para colocar em dúvida a honestidade de Battisti: ‘Segundo a Folha apurou, apesar de negar as quentinhas que lhe são oferecidas pela carceragem, Batistti tem em sua cela alguns biscoitos e doces’.

‘Apurou’ como? Esteve na cela para verificar se lá realmente existiam biscoitos e doces? Ou comeu na mão dos outros, prováveis interessados em desmoralizar Battisti, apenas e tão-somente porque é esta também a faina a que a Folha se dedica?

Ademais, qual a verdadeira relevância em publicar que ‘Batistti tem em sua cela alguns biscoitos e doces’, se ele realmente os possuir mas não os estiver comendo? Não poderão estar simplesmente esquecidos em algum canto?

Ou seja: para não violentar demais a verdade, a Folha nem sequer ousa afirmar que o escritor esteja alimentando-se às escondidas. Apenas insinua isto, da forma mais torpe.

E pensar que foi o principal jornal brasileiro em meados da década de 1970, quando tinha como diretor de redação o insperável Cláudio Abramo.

Parafraseando Edgar Allan Poe: ‘E o corvo disse, nunca mais’…

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Jornalista, escritor e ex-preso político