Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Fotógrafo preso, espancado e demitido

Na quinta-feira (16/2), Cláudio Silva, do Diário Catarinense, estava no centro de Florianópolis (SC) fotografando a manifestação do pessoal do passe-livre e seus desdobramentos, como o confronto com a polícia. Quando prenderam um dos líderes da manifestação, um sargento disse que o Claudinho não podia fotografar.


Ora, nenhum fotógrafo profissional que se preze e que honre as calças que veste vai aceitar que alguém lhe diga o que pode e o que não pode fotografar em um lugar público. Decerto o sargento achou que o fotógrafo trabalhava no Diarinho, porque o chamou de ‘negro viado’, numa evidente provocação. E em seguida deu voz de prisão e botou o Sarará num camburão. A viadagem aqui da casa ficou de cabelo em pé com a expressão preconceituosa do policial.


É preciso, agora, indagar do governador LHS e do secretário Benedet, qual dos dois deu a ordem para impedir que a ação policial seja fotografada. Porque se o sargento agiu por sua livre e espontânea vontade, precisa ser imediatamente punido. Num Estado de Direito não pode o policial (e sequer o oficial ou mesmo os agentes políticos) regulamentar a seu gosto a Constituição.


Os policiais usaram a força para impedir o Sarará de trabalhar e, como complemento da ação ilegal, espancaram o rapaz com uma crueldade que parece habitual. Durante todo o trajeto até a Central de Polícia o ‘corajoso’ sargento que o impediu de fotografar aproveitou que o Sarará estava algemado e esmurrou seu rosto, deixando marcas visíveis.


Fatos ignorados


Só depois que foram cometidas várias arbitrariedades (a começar pela censura policial ao registro de um evento de interesse público) e que o fotógrafo tinha sido espancado é que se começou a pensar numa forma de transformar a vítima em réu. Sarará conta que foi obrigado, na marra, a soprar no bafômetro. Mais uma violência descabida. Mas o jornal Diário Catarinense, ao redigir a notícia, fez uma estranha seleção dos fatos que deveria e que não deveria levar ao conhecimento de seus leitores. E escolheu publicar, certamente após acaloradas discussões internas, apenas que seu empregado, segundo a polícia, estava bêbado.


Não fala sobre o espancamento, não diz nada sobre a proibição de fotografar, não se refere ao outro fotógrafo da casa que teve equipamento danificado pela polícia. A omissão desses fatos dá ao ‘teste’ a que o Sarará foi submetido em condições desumanas e humilhantes, uma dimensão falsa. O resultado do bafômetro, por falar nisso, não foi mostrado na hora ao Cláudio. Ele sequer sabe qual o teor que acusou. Não deve ser muito alto, porque ele tomou uma cerveja no começo da tarde, no Mercado. Mas esse ‘teste’ está sendo mais valorizado que as fotos que mostram seu rosto machucado.


E a notícia, do jeito que foi publicada no jornal, deixa mal Nelson Sirotsky (diretor-presidente da RBS), que, como presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), tem se posicionado contra ações arbitrárias que visam impedir ou dificultar o trabalho da imprensa. E foi isso que a polícia fez: impediu, com violência, o DC de cumprir sua missão, ao deter e espancar um de seus funcionários.


Espancamento covarde


Cláudio não foi preso porque estava bêbado. Foi preso porque ousou fotografar a ação da polícia. E mesmo que fosse crime – e não é – fotografar policiais, a pena para isso não seria o espancamento. E o Sarará foi covardemente espancado. Depois a polícia começou a afirmar que ele tinha tomado umas cervejas. Mesmo que fosse crime – e não é – tomar umas cervejas, a pena para isso não seria o espancamento. E o Sarará foi covardemente espancado.


Por mais que a gente tente compreender a posição da RBS e da direção do Diário Catarinense no caso do seu fotógrafo Cláudio Silva (demitido menos de 24 horas depois do incidente em que foi impedido de trabalhar, preso e torturado), sempre esbarra em algum aspecto difícil de aceitar. Aparentemente a empresa, ou algum de seus dirigentes, ficou tão assustada com o resultado do teste do bafômetro que não pensou em mais nada que não fosse livrar-se do ‘mau elemento’. Sequer pensou que a ação policial visava, em primeiro lugar, o próprio jornal.


A gestão do pessoal e das crises que envolvem empregados são disciplinas básicas na administração de qualquer empresa. Na maioria das grandes empresas existem profissionais que se prepararam para lidar com essas situações de forma a não ampliar os problemas nem prolongar desnecessariamente as crises.


Não duvido que a própria RBS tenha, em seus quadros, gente com essa formação. Só que, neste caso específico, a parte visível da ação da empresa demonstra que alguns de seus gestores foram movidos por um ansioso amadorismo que os levou a cometer erro em cima de erro. Provavelmente alguém não preparado avaliou mal a gravidade da crise e achou que poderia lidar sozinho, sem pedir ajuda ou se aconselhar. E agora a empresa se encontra no meio de uma crise mais grave que a inicial.


Traste descartável


O que o Diário Catarinense fez não foi demitir um mau profissional que exagerou na bebida e deu vexame ou descumpriu suas obrigações profissionais. Eles demitiram um profissional que foi espancado pela polícia justamente porque tentava cumprir o seu dever. E o jornal aceitou, aparentemente sem qualquer questionamento, a primeira explicação da polícia. Ao que tudo indica não levou em conta as circunstâncias e nem considerou que, mesmo que ele tivesse um pouco (ou muito) álcool no sangue, a ação policial foi ilegal e não podia ser ignorada.


E aí, no meio de um episódio obscuro de violência policial, de onde o Sarará emerge com sinais claros de espancamento, a empresa abandona seu empregado e os princípios que diz defender e agarra-se ao ‘diagnóstico’ apresentado pelos autores da violência. Além de não deixarem o Sarará fotografar, além de o terem torturado, os policiais ainda conseguiram demití-lo com enorme facilidade. A polícia atuou com grande desenvoltura e o jornal apequenou-se diante do arbítrio.


‘Vou ali na kombi’


Em todas as redações onde trabalhei, em Porto Alegre, São Paulo, Brasília e aqui, sempre tinha um boteco, uma birosca, um botequim por perto, onde o pessoal se ‘abastecia’. Os diretores, é claro, freqüentam restaurantes mais chiques, bares refinados ou têm seu uisquezinho no armário da sala. Na Gazeta Mercantil, no fim do século passado e início deste, na sede de Santo Amaro, em São Paulo, tinha uma kombi que estacionava diante do jornal, do outro lado da rua, onde o pessoal mais aflito ia calibrar o fígado.


Lá de cima (o jornal ocupava um prédio de dez andares e a redação do jornal era no terceiro), editores e diretores viam o movimento e sabiam quem eram os freqüentadores. Ou seja: nenhum chefe de redação pode se surpreender com o fato de jornalistas sob sua responsabilidade tomarem, vez por outra, uma cerveja ou alguma coisa mais forte. No jornalismo, como tantas outras profissões com grande carga de estresse, o álcool é um problema mais ou menos generalizado.


Faz parte da função dos chefes, nas redações (como nas demais organizações) lidar com este e com outros problemas sem hipocrisia. E sem fingir que foi surpreendido com a informação: ‘O quê? Funcionário meu com álcool no sangue? Que absurdo!’


E agora?


O problema de decisões precipitadas (e portanto pouco refletidas) como a demissão do Sarará é a mensagem de estímulo que ela passa aos maus policiais: ‘Fica frio, sempre que um jornalista te incomodar, dá voz de prisão, enche ele de porrada, quebra o equipamento e depois é só dizer que ele te agrediu que o cara acaba no olho da rua e sem ter quem o defenda.’


O papel dos oficiais envolvidos no episódio e mesmo de outros agentes do governo precisa ser esclarecido não para que o Sarará recupere seu emprego, mas para que nós todos não fiquemos, cada vez mais, à mercê de gente truculenta que nada no mar azul da impunidade.


Esse sargento racista, que em vez de manter a ordem criou um tumulto à parte, deve estar se sentindo muito poderoso. E com razão. Fez o que fez e ainda conseguiu apoio e acobertamento. E a vítima virou réu.


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Sindicato protesta




Em defesa da liberdade de manifestação e do exercício da profissão


Rubens Lunge


Presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina


O Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina repudia a prisão do jornalista Cláudio Silva, repórter fotográfico do jornal Diário Catarinense, ocorrida na tarde desta quinta-feira [16/2], quando registrava, no centro de Florianópolis, um ato legítimo da população, de reivindicar o que considera seu direito.


A liberdade de manifestação e o direito de trabalhar dos jornalistas, com o objetivo de apresentar os fatos para a população compreender o momento histórico, não podem ser interrompidos pela truculência de alguns.


O Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina repudia a violência e o despreparo do policial militar que, sem medir as conseqüências de seus atos, interrompeu a atividade do jornalista Cláudio Silva, e o levou ao cárcere, como se transgressor fosse.


Com a prisão do jornalista, inverteram-se os papéis. Aquele que cumpria o seu dever, de assegurar informação de qualidade e registrar um momento especial e único, foi preso, enquanto aquele que deveria garantir o direito do primeiro, num ímpeto, reavivou o retrocesso, e pelo despreparo, desconsiderou a orientação de servir ao povo, negando o direito ao trabalho.


Ao repudiar o fato ocorrido hoje no centro de Florianópolis, o Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina convoca a sociedade catarinense a ficar alerta e defender o seu direito à informação de qualidade, ética e verdadeira, e aos governos e governantes, a responder à sociedade, punindo com firmeza e exemplarmente aquele que, investido de poder pelo Estado, cometeu excessos.


O Sindicato dos Jornalistas aponta que ações isoladas não podem manchar o nome e a história da Polícia Catarinense, e o empenho que o Estado vem realizando, de qualificar e humanizar o setor de Segurança Pública. Em nome dos jornalistas, da sociedade catarinense, em defesa da liberdade de informar e ser informado, cobraremos uma resposta para o lamentável episódio transcorrido nesta data.

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Jornalista (http://deolhonacapital.blogspot.com/)