Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Francisco Alves Filho

‘Aos 69 anos e com mais de meio século de militância no Partido Comunista Brasileiro, o pernambucano Givaldo Siqueira reagiu com revolta às graves acusações que companheiros da luta contra a ditadura dispararam contra ele. Na reportagem ‘Traição e Extermínio’, publicada na última edição de ISTOÉ, Siqueira é apontado por ex-dirigentes do partido como agente infiltrado que teria possibilitado a captura de pelo menos três correligionários. ‘Contra nós, o regime agia de duas formas: ou matava e torturava, ou jogava um contra o outro. É o papel que esses que me acusam estão fazendo’, afirma. Indignado, o dirigente do PCB vai processar Hércules Corrêa, Fernando Cristino e Miguel Baptista por calúnia e difamação. ‘Eu e minha mulher tivemos uma vida difícil, cheia de privações, fomos perseguidos. Da noite para o dia, tentam transformar o marido dela em cúmplice da repressão.’ Julia, que vive com ele há 52 anos, reclama: ‘Não basta o que a ditadura nos causou, agora aparecem esses pobres diabos querendo destruir a nossa alma?’ Aos episódios narrados pelos acusadores, Siqueira contrapõe versões bem diferentes:

ISTOÉ – Como o sr. recebeu as declarações de ex-companheiros que o acusam de ter agido como agente infiltrado no PCB?

Givaldo Siqueira – Acho absurdo que o PCB apareça agora como um bando de traidores infiltrados, e não de uma força fundamental na luta contra a ditadura, o partido que formulou a política que derrotou o regime. O comitê na Guanabara, identificado como problemático, foi o único em que venceu a tese da luta pelas liberdades democráticas, contra o aventureirismo, o golpismo. Hércules Corrêa foi um dirigente importante, de origem operária. Trabalhamos juntos desde 1960. Sempre achei que ele não tinha muito bom caráter e agora comprovou isso. Mas foi importante na luta. Quando estava no partido jamais levantou dúvida sobre mim. Deve estar muito doente, a diabetes afeta a pessoa. Estou processando por calúnia e difamação a ele, ao Fernando Cristino e ao Miguel Baptista. Estão fazendo um papel miserável. A ditadura nos perseguiu, prendeu alguns, quando não destruiu moralmente ou fisicamente. Agora, completa o serviço através dos ex-comunistas que querem destruir os outros. Até o herói do partido, o Elson Costa, uma pessoa formidável, morto pela ditadura, vira suspeito de estar vivo e ser traidor. Não basta os caras terem o corpo do sujeito, querem a alma.

ISTOÉ – O sr. deu a ordem para que Célio Guedes, que acabou torturado e morto, fosse ao Uruguai receber um companheiro, mesmo sob risco?

Siqueira – Quem deu a orientação para o Célio buscar o Fuad Saad foi a executiva do PCB, com a presença do Hércules. Ele (Saad) estava voltando ao Brasil pelo Uruguai e era preciso transmitir-lhe que a maioria das pessoas do seu aparelho estava presa. Enquanto Célio aguardava o Saad, outros caíram. O agravamento da situação foi informado ao Célio. Não teve carta dizendo por onde Saad deveria entrar. Na minha presença, Dinarco Reis disse ao Célio que não atravessasse para o Uruguai, mas ele resolveu ir. Os acusadores não sabem que Salomão Malina e Wilson Miranda orientaram um companheiro da fronteira para pegar o Saad, mas o Célio fez questão de cumprir a tarefa. O Wilson está vivo para confirmar.

ISTOÉ – O transporte de David Capistrano, capturado pelo DOI, foi autorizado pelo sr.?

Siqueira – O David voltou de Praga e chegou à fronteira, em Uruguaiana. Cheio de bagagens, contatou um companheiro que tinha ordem de só atravessar pessoas com uma só mala. David insistiu, o rapaz foi a São Paulo falar comigo e eu disse que não era seguro atravessar naquele momento. Orientamos o Orlando Bonfim, que estava indo para o Exterior, para encontrar o David e propor uma viagem a Buenos Aires. Depois, providenciaríamos o retorno dele. Não sei o que aconteceu, mas o fato é que o David e o militante José Roman atravessaram para o Brasil. Foi uma operação malfeita. Há uma responsabilidade coletiva, porque o partido trabalhou a questão da segurança de forma relaxada. Provavelmente, houve também algum desleixo pessoal.

ISTOÉ – E quanto à acusação de Miguel Baptista de que o sr. seria o encapuzado que estava na sala onde ele sofreu tortura?

Siqueira – É uma coisa ridícula, absurda. Ele diz que ia saindo de uma sessão de tortura, tinha um cara encapuzado que disse: ‘Fala, meu filho!’ Pelos gestos, achava que era eu. É simples de raciocinar: se a polícia tivesse um cara do meu nível infiltrado não iria usar para desmascarar um caseiro, um motorista. O que deve ter acontecido? O Miguel deve ter jurado que não ia falar, chegou lá e não manteve esse juramento. Ele não é miserável nem traidor por causa disso, o responsável é a ditadura. Ele caiu inclusive porque violou uma orientação minha.

Cartas – A matéria ‘Traição e Extermínio’ suscitou intensa discussão entre os leitores de ISTOÉ, que pode ser acompanhada na seção de cartas (a partir da pág. 12). Entre outras mensagens recebidas está a de Marival Chaves, ex-sargento do DOI, sustentando que Givaldo era agente infiltrado e agia sob orientação do Centro de Informações da Marinha, o Cenimar. Em repúdio às acusações a Givaldo Siqueira, um grupo de pessoas que militaram contra a ditadura reconheceu sua ‘dedicação’ e seu ‘passado de lutas’ no PCB e enviou um abaixo-assinado com a chancela de personalidades como José Serra, Alberto Goldman, Aluísio Nunes Ferreira, Elio Gaspari, Ferreira Gullar, Juca Kfouri, Luiz Mário Gazzaneo, entre outros.’



Murilo Fiuza de Melo

Polarização de 64 persiste nas interpretações atuais’, copyright Folha de S. Paulo, 31/03/04

‘Passados 40 anos do golpe de 1964, a polarização político-ideológica, alimentada pela Guerra Fria e que serviu de combustível para que militares tomassem o poder, ainda persiste no pensamento de personagens da época e de especialistas no assunto.

Militares, empresários, religiosos e pesquisadores divergem sobre os reais motivos do golpe.

O historiador Jorge Luiz Ferreira, do Departamento de História da UFF (Universidade Federal Fluminense) defende a idéia de que ‘a esquerda pretendia fazer as reformas de base, nem que para isso fosse preciso fechar o Congresso’.

Após a experiência parlamentarista, de setembro de 1961 a janeiro de 1963, Jango assumiu seu mandato em meio a uma crise econômica, com uma inflação que chegara a 52% no ano anterior. A idéia era conciliar metas de contenção financeira com a retomada do crescimento e as propostas reformistas, reivindicadas por sua base política, composta por partidos de esquerda e pelos sindicatos.

A estratégia não deu certo, e Jango resolveu buscar o apoio popular país afora em comícios públicos -o da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, seria o primeiro. Pretendia pressionar o Congresso, onde não tinha maioria, para aprovar as reformas sociais.

Para o cientista político Caio Navarro de Toledo, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), as esquerdas que cercavam Jango foram responsáveis pelo ‘agravamento do processo político’ que resultou no golpe, mas não tinham a intenção de pôr fim à ordem democrática.

‘A idéia de que o golpe de 64 foi preventivo é errada’, afirma ele, para quem as declarações de líderes de esquerda a favor do golpe, como a do então deputado Leonel Brizola, eram ‘bravatas’.

O sociólogo Hélio Jaguaribe concorda: ‘A única coisa que ocorreu com João Goulart foi que, de uma maneira infantil, ele aceitou as provocações retóricas de Brizola [então deputado federal pelo PTB da Guanabara], numa disputa em busca de maior popularidade’.

Para Jaguaribe, os conservadores insatisfeitos com o governo ‘exacerbaram’ a disputa entre Jango e Brizola, provocando o desfecho golpista. ‘Ou seja, golpismo só havia na direita.’

No comício da Central, Jango anunciou a encampação de refinarias, a realização da reforma agrária, o controle de aluguéis e a extensão do direito de voto a sargentos e praças.

O discurso provocou uma ruidosa reação da elite empresarial e das classes médias urbanas, canalizada na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que começou em São Paulo e se estendeu por todo o país. Havia um medo comum: a chamada ‘comunização’ do país.

‘Eu assisti a última conversa de d. Jaime [Câmara, arcebispo do Rio de Janeiro em 1964] com Goulart. O cardeal estava muito preocupado com a situação porque Jango se deixou envolver pelos comunistas. O presidente disse concordar com d. Jaime, mas afirmou que não podia voltar atrás’, diz o monsenhor Ivo Calliari, assessor particular de d. Jaime, um dos organizadores da reação a Jango no Rio e considerado o ‘cardeal da revolução’.

Para o arcebispo de Santa Maria, d. Ivo Lorscheiter, na época bispo auxiliar de Porto Alegre, o apoio da Igreja ao golpe se deu por dois motivos: a ‘luta contra a subversão e a corrupção’.

‘Os militares diziam que estavam querendo guardar as instituições, mas não podemos esquecer que houve exageros depois, como o desrespeito aos direitos humanos’, afirma.

Para militares, o que levou ao golpe foi a quebra da hierarquia militar, caracterizada pela anistia aos participantes da Revolta dos Marinheiros, em 25 de março de 1964, e pelo discurso do presidente em apoio aos sargentos, cinco dias depois, no Automóvel Clube do Brasil, no Rio.

‘Eu só participei da revolução de 64 porque achava que a desordem estava campeando no país e basicamente a indisciplina estava generalizada nas Forças Armadas. Naquele momento, não estava pensando em combater o comunismo’, afirma o general Newton Cruz, chefe da Agência Central do SNI (Serviço Nacional de Informações) no governo João Figueiredo (1979-1985)

Para o ex-ministro do Exército general Leônidas Pires Gonçalves, que foi assessor do presidente Castello Branco, os militares impediram o país de se transformar em uma segunda Cuba.

‘A revolução salvou o Brasil de ser um Cubão, mas essas coisas têm preço. Ficam batendo nessa história de tortura e morte, mas não podemos esquecer que eles [os opositores ao regime] também torturaram e mataram. Era uma guerra.’’



Adriano Lafetá

‘1964, resquícios’, copyright Correio Braziliense, 2/4/04

‘Nesse 31 de março, a imprensa cumpriu o seu papel. Aproveitou os 40 anos do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart para rediscutir as duas décadas de obscurantismo que se seguiram a 1964. Tirou ressentimentos dos armários. Expôs a lentidão e o gradualismo – ritmo que generais mais liberais queriam ditar na época para a abertura política – da cicatrização das feridas. Fez bem. Lesões gangrenam se não forem tocadas, profundamente limpas.

A dor maior certamente é a da convivência com o fantasma dos desaparecidos, drama familiar que tem a dimensão de questão de Estado, portanto fora do alcance de soluções pessoais, triplamente doloroso pela crueldade da intrínseca sensação de impotência. Infelizmente, essa chaga sangra. E se eterniza. Enquanto se remexem terras em busca de restos mortais no Araguaia, notícias de documentos virando cinzas abalam a fé daqueles que esperam um dia passar a limpo essa história.

É o caso da notícia de que arquivos sobre o caso Para-Sar queimaram no incêndio do Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, em 1998. Uma pena. As Forças Armadas teriam muito a ensinar com o exemplo do capitão que se recusou a cumprir ordem de um brigadeiro para explodir um gasômetro e pôr a culpa em terroristas.

Agora o presidente Lula, um dos símbolos da luta pela redemocratização do país, declara encerrado o episódio do golpe. Nada disso! Pelo menos, não sem antes cuidar das ulcerações, apagar os resquícios de autoritarismo que se perpetuam de tal maneira que já parecem fazer parte da vocação do Estado brasileiro.

Outro ilustre nome da resistência à ditadura militar, o presidente Fernando Henrique, que passou oito anos no poder, encerrou seu mandato com decreto estendendo prazos e dificultando a abertura de arquivos. Ou seja, na contramão da sua própria história política.

Mais: estão aí o imposto sindical, a Lei de Imprensa, as medidas provisórias como tristes sucessoras dos famigerados decretos-leis, facilmente sacadas pelos poderosos de plantão ao mínimo impulso de impor a vontade. Quem não se lembra do confisco dos ativos financeiros no governo Collor? A violência só foi cometida porque o presidente dispunha de instrumentos para tanto.’



Artur Xexéo

A doce vida no Rio antes do golpe de 64′, copyright O Globo, 31/03/04

‘Quis o destino que a data de publicação desta coluna caísse no dia 31 de março. Como ninguém deixa a gente esquecer, faz exatamente 40 anos que se deu o golpe militar que mergulhou o país num período de trevas… Opa, será que não tem um jeito mais criativo de escrever isso? Vamos tentar: faz exatamente 40 anos que um golpe militar interrompeu o sonho das utopias. Melhorou, mas não chega a ser original. Deixa pra lá. A questão é a seguinte: deverá o colunista render-se ao calendário e escrever também sobre a Redentora?

Bem, de certa maneira, sim. Quando se escreve sobre 64, escreve-se também sobre o Brasil que se perdeu com o golpe. Tive a oportunidade de, justamente esta semana, entrar em contato com este Brasil. Mais especificamente com o Rio pré-64, o Rio de 1962, quando a cidade foi cenário de ‘Copacabana Palace’, uma comédia que o cineasta italiano Steno rodou por aqui.

Nos anos 60, o Rio e Roma eram as cidades-fetiches do cinema. Roma com sua doce vida, cercada por paparazzi; o Rio, com samba, carnaval e praias paradisíacas. Na Roma do cinema, os personagens eram cínicos; no Rio, ingênuos. Em Roma, buscavam-se longas noites de loucuras; no Rio, buscava-se romance. Não foram poucas as produções internacionais que, na década de 60, utilizaram o Rio como cenário. E o Rio daquela época não era refúgio de ladrões perseguidos pela polícia estrangeira, nem a cidade em que se entrava em contato com a violência. ‘Três dias de carnaval no Rio equivalem a um mês inteiro de férias em outra cidade qualquer’, define Sylva Koscina numa das primeiras cenas de ‘Copacabana Palace’. Infelizmente, nem todos estes filmes foram produzidos antes de 64, o que contraria um pouco a maneira de esta coluna comemorarr o aniversário do golpe. Mas são produções de antes de 68, o que nos deixa na vanguarda das comemorações do AI-5 que acontecerão daqui a quatro anos.

A gente seguia nas reportagens do ‘Cruzeiro’ e da ‘Manchete’ o dia-a-dia dos artistas que estavam no Rio filmando. Lembro-me de Rossano Brazzi e Rondha Fleming em ‘Pão de Açúcar’, de Sarita Montiel em ‘Samba’, de Claudia Cardinale em ‘Uma rosa para todos’ e de Mylene Dèmongeot e da já citada Sylva Koscina em ‘Copacabana Palace’. Assisti aos dois primeiros filmes na época em que foram lançados. ‘Uma rosa para todos’ freqüentou, há alguns anos, a TV a cabo. Mas ‘Copacabana Palace’, para mim, era um filme desaparecido, um filme que o mundo esqueceu. Até a semana passada, quando ganhei uma cópia da inacreditável filmoteca de Daniel Filho.

O filme começa com um avião da Panair posando no Santos Dumont, enquanto, na trilha sonora, uma cantora italiana emite em bom português os acordes de ‘Samba do avião’. Até hoje, Mylene Dèmongeot, que – parece – teve um cacho com Tom Jobim no Rio, espalha por aí que a música foi composta para ela.

Três estrangeiros desembarcam no Rio: uma princesa (Mylene), que chega cheia de fantasias de passar três noites de amor tórrido com o amante que trouxe da Europa; um golpista que banca o milionário para roubar as jóias de milionários de verdade; e uma aeromoça (Koscina), que quer aproveitar a escala no Rio para travar um contato mais profundo com um artista brasileiro que tinha conhecido em Lisboa: Antonio Carlos Jobim!!! Todos se hospedam no Copacabana Palace.

Grande parte do filme se debruça sobre a trama da princesa vivida por Mylene. Uma série de qüiproquós faz com que sempre seja adiada a tal noite de amor com o amante. Ao mesmo tempo, o príncipe, seu marido, também está na cidade, escondido, tentando flagrar o adultério. No fim, revela-se que o suposto amante, na verdade, tem preferência por outro tipo de esporte e o flagrante é dado quando ele está passando uma cantada num camareiro do hotel. Até lá, o espectador tem oportunidade de acompanhar Mylene Dèmongeot num passeio de veleiro pela Baía da Guanabara, numa passagem pelo Baile do Copa com direito a um desfile do Império Serrano na frente da portaria do hotel e – o melhor registro, digamos, jornalístico – no Baile do Municipal, lotado, com a grande maioria dos foliões fantasiada, pulando ao som de marchinhas, como ‘Garota biquíni’.

Quase todo o resto do filme segue a vigarice do larápio internacional. É neste episódio que aparece Tônia Carrero, na pele de uma milionária casada com um empresário peruano a quem o ladrão pretende roubar. Para isso, ele conta com a ajuda de um velho companheiro italiano que mora no Rio com uma cabrocha local: Dóris Monteiro! No fim, descobre-se que o verdadeiro golpista é o marido de Tônia. Nesta trama, são mostrados os desfiles na Rio Branco, com Portela e Bafo da Onça. Há ainda uma sessão de macumba com pombagira e tudo. Na época, fazia sucesso na televisão um concurso do programa do Chacrinha que dava prêmios em dinheiro para o dono do papagaio que falasse Casas da Banha. A brincadeira é reproduzida no filme com o palco do Teatro Copacabana como estúdio de TV e Paulo Gracindo interpretando o apresentador do programa.

E o Tom Jobim? Bem, ele está no episódio com menos metragem de ‘Copacabana Palace’. A foto que ilustra esta coluna, em que Tom aparece com Luiz Bonfá, João Gilberto e Sylva Koscina (a boazuda de biquíni à direita), faz parte do filme. Domingo eu conto.’