Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Futebol, patriotismo e cerveja





Copa do Mundo, a maior festa esporte no Brasil.
Em frente à TV, milhões de telespectadores de todas as idades torcem
entusiasmados pela seleção brasileira. Dentro dos gramados, nossos craques
vendem saúde e… cerveja. Em 2010, a marca Brahma financia quatro jogadores
brasileiros e é uma das patrocinadoras oficiais Copa do Mundo realizada na
África do Sul. A venda da bebida é lícita e o hábito de acompanhar os jogos de
futebol com cerveja é um traço da cultura brasileira, mas é aceitável que um
produto cujos malefícios são comprovados cientificamente 



associe a sua marca à pratica do esporte?

O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (15/6) pela TV
Brasil discutiu a publicidade de bebida alcoólica em eventos esportivos com a
presença de dois convidados no estúdio de São Paulo. Erich Beting, diretor da
Máquina do Esporte, empresa de cobertura dos negócios do esporte no Brasil e
comentarista do canal BandSports é consultor editorial da Universidade do
Futebol. Ronaldo Laranjeira é professor titular de Psiquiatria da Universidade
Federal de São Paulo e coordenador do Instituto Nacional de Políticas do Álcool
e Drogas (INPAD) do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq). É PhD em psiquiatria
pela Universidade de Londres.


O jornalista e apresentador Alberto Dines explicou que a produção do
Observatório entrou em contato com a Confederação Brasileira de Futebol
(CBF) para saber como a entidade avalia a associação da seleção brasileira com
uma marca de cerveja e a assessoria de imprensa garantiu que o time não tem
nenhuma bebida alcoólica entre seus patrocinadores. Dines ponderou que a
resposta é ‘curiosa’, uma vez que o treinador Dunga e outros jogadores aparecem
em comerciais com a camisa amarela.


Patrocina ou não?


O mediador do programa destacou que a explicação fica mais inconsistente
porque o site da Brahma assegura que a marca é uma das patrocinadoras oficiais
da seleção. O Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar) também foi
convidado para o debate, mas não pode participar e enviou uma nota (ver
íntegra abaixo
) na qual afirma que a entidade veta a associação de marcas de
bebidas alcoólicas a uniformes de esportes olímpicos e quaisquer apelos que
sensibilizem diretamente o público menor de idade.


Em editorial, Alberto Dines ressaltou que quem manda fora dos gramados é a
cerveja. ‘O anúncio de cerveja não é uma peça subliminar, disfarçada: o anúncio
de cerveja é concebido para estimular diretamente o consumo da bebida, bebida
alcoólica. E, ao associá-la à sensação de alegria e triunfo, emite-se uma
mensagem clara: seja um vitorioso também, tome a sua cervejinha ao lado de uma
estonteante morena brasileira ou loura importada.’ Dines sublinhou que o Conar
só obedece a uma lei: ‘crescer sem controles e sem regulação’.


A reportagem exibida pelo Observatório entrevistou Robert Galbrait,
repórter especial da revista Meio e Mensagem. Galbrait explicou que em
2006 ‘toda a visibilidade’ era concentrada na marca de cerveja Budweiser. Mas,
depois da última Copa, o mercado das cervejas ficou mais complexo e a Ferderação
Internacional de Futebol Associado (Fifa) precisou mudar o contrato. ‘A Inbev
Anheuser-Busch virou o grande conglomerado mundial das cervejas, de maneira que
o marketing desta nova corporação decidiu rever o acordo com a Fifa para fazer
com que todas as suas marcas pudessem ser exibidas com este contrato de
patrocínio’, explicou.


Seleção guerreira


De acordo com o novo contrato, as marcas exibidas nas placas dos estádios
durante os jogos serão as comercializadas nos países que estão em campo. Com
isso, a Brahma pode entrar no time das marcas que serão exibidas na Copa. No
Brasil, a marca de cerveja lançou sua campanha antes do início do torneio. Na
peça publicitária veiculada pela televisão, Dunga e a seleção eram apresentados
como ‘guerreiros’.


Para Eduardo Tironi, diretor-executivo de Mídias Digitais do diário
Lance!, o futebol brasileiro é ‘mais artístico’ e, por isso, bem
diferente do apresentado na propaganda. Tironi avalia que o fato de o técnico
Dunga – que na sua vida pessoal e na atuação como comandante da seleção sempre
buscou valorizar aspectos como ‘retidão, compromisso e patriotismo’ – fazer
propaganda de cerveja o deixa em uma posição contraditória. ‘Ao mesmo tempo em
que o Dunga não aceita indisciplina em seu grupo, quer dedicação total, quer
treinamento, exige ao máximo de seus comandados, ele faz propaganda de um
produto que vai um pouco na contramão disso que ele prega’, avaliou.


O desembargador Aloísio de Toledo César se disse ‘horrorizado’ com o que
acompanha pela televisão e criticou o fato de os jogadores, e principalmente o
técnico Dunga, receberem altas quantias para fazer publicidade de bebida
alcoólica. Já Robert Galbrait minimizou o impacto da publicidade: ‘Sinceramente,
eu não consigo acreditar que uma criança vá ver uma marca – Brahma – e associar
com o consumo de álcool’.


Ilana Pinsk, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e
outras Drogas (Abead), avalia que a ligação do álcool com o esporte ‘não tem
sentido’ porque uma pessoa que consuma exageradamente o produto não terá
capacidade de apresentar um bom desempenho no esporte.


A palavra da Ambev


Milton Seligman, diretor de relações corporativas e comunicação da Companhia
de Bebidas da Américas (AmBev), disse que a empresa assina os comerciais da
Brahma, que é patrocinadora, mas no uniforme da seleção usa a marca de um
refrigerante. ‘Cervejas patrocinam times de futebol no mundo todo. No caso da
companhia, nós patrocinamos a seleção brasileira e a seleção argentina. Na
verdade, há muitos anos, a Quilmes patrocina a seleção da argentina e há dez
anos a Ambev patrocina a seleção brasileira. Na camisa do Brasil, à exceção da
grande maioria dos países e seguindo rigorosamente a autorregulamentação, nós
usamos a marca Guaraná Antártica’, ponderou.


Seligman destacou que as pesquisas mostram que o futebol – tanto em termos de
audiência pela TV quanto em relação ao público que assiste às partidas nos
estádios – é um esporte acompanhado majoritariamente por adultos; por isso, não
há problema em fazer propaganda de álcool ligada ao futebol. Sobre o horário em
que os comerciais são veiculados, Seligman afirmou que a bebida é anunciada em
programas dirigidos ao público adulto, independente da hora em que são
transmitidos. O uso de ídolos do esporte em comerciais de bebida é válido, na
opinião de Seligman, desde que a publicidade não seja dirigida diretamente ao
público infantil ou aos jovens.


No debate ao vivo, Dines pediu a opinião do psiquiatra Ronaldo Laranjeira
sobre as afirmações de que as crianças não associam a publicidade de uma marca
de cerveja ao consumo de álcool e que o público do futebol é majoritariamente
adulto. ‘É surpreendente. Eu não sei em que mundo essas pessoas vivem, em que
bombardear todos os dias as nossas crianças com propaganda de cerveja não tem
uma influência no seu comportamento’, criticou Laranjeira. Na sua opinião, as
pessoas que associam os símbolos nacionais com a propaganda de cerveja estão
cometendo um crime contra os valores da sociedade brasileira, que se expressam
claramente em um momento como a Copa do Mundo.


O papel do governo


Laranjeira chamou a atenção para o fato de que a Organização Mundial da Saúde
(OMS) aprovou recentemente uma resolução segundo a qual, dentro das políticas
mundiais de combate ao consumo excessivo de álcool, é preciso restringir ao
máximo as propagandas de cerveja. Estas causam impacto maior na parcela da
população que ainda não desenvolveu um padrão de consumo: as crianças e
adolescentes. Para Laranjeira, o Ministério da Saúde poderia utilizar a
resolução da OMS para promover um debate público sobre o tema. Na visão do
psiquiatra, o ministério perdeu a chance de ter um papel de liderança e de se
opor à ‘venda de valores nacionais pela CBF’.


Dines perguntou a Erich Beting se a publicidade de bebida alcoólica poderia
ser banida do futebol da mesma forma como, no passado, a propaganda de cigarro
foi proibida em eventos automobilísticos. Beting disse que o caminho é o próprio
esporte negar este tipo de comercial e se colocar em uma posição de soberania.
Segundo o jornalista, a CBF fatura mais de 200 milhões de reais em publicidade e
o contrato com a AmBev não corresponde a 10% desta soma – portanto, a seleção
brasileira não dependeria necessariamente deste patrocinador.


‘Cabe ao esporte e às próprias empresas de comunicação não aceitarem esse
tipo de publicidade ou colocar-se a serviço desse tipo de indústria. Perde-se um
pouco de dinheiro, mas, sem dúvida, ganha-se em retorno de imagem, em retorno
institucional e, mais do que isso, o apelo da população que é contra este tipo
de associação’, avaliou.


***


A seleção da cerveja


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 550, no
ar em 15/6/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Começou hoje [terça, 15/6] a temporada de emoções. E enquanto a TV
está neste momento envolvida com a discussão sobre a partida desta tarde, vamos
desenvolver uma pauta que nenhum veículo jornalístico, sobretudo na mídia
eletrônica, ousaria tocar, muito menos aprofundar. No jogo que vamos comentar
quem está perdendo somos nós, a sociedade brasileira, e perdendo por uma
goleada.


O megaespetáculo e meganegócio chamado futebol tem muitos protagonistas, mas
fora dos gramados quem manda é a cerveja. Neste mundial, a Brahma tornou-se a
primeira marca brasileira a patrocinar o evento chamado Copa do Mundo. E qual o
problema? Se a Adidas, a Sony e a Visa patrocinam a Fifa, por que uma cervejeira
não pode participar da festa? Você sabe por que: o anúncio de cerveja não é uma
peça subliminar, disfarçada: o anúncio de cerveja é concebido para estimular
diretamente o consumo da bebida, bebida alcoólica. E, ao associá-la à sensação
de alegria e triunfo, emite-se uma mensagem clara: seja um vitorioso também,
tome a sua cervejinha ao lado de uma estonteante morena brasileira ou loura
importada.


O Ministério da Saúde andou preocupado com a excessiva presença da propaganda
de cerveja em nossa TV. Estava certo porque é dever do Estado promover a saúde
pública através de políticas públicas preventivas. O alcoolismo não é
brincadeira, os jovens são responsáveis por 6% do que se consome de álcool no
país. Adultos entre 18 e 29 anos, que correspondem a 22% da população
brasileira, entornam 40 % do álcool consumido.


Apesar dessas dramáticas cifras, o Ministério da Saúde recuou. A bola ficou
com o Conar, o tão badalado Conselho de Autorregulação Publicitária que proclama
sua preocupação diante dos apelos cervejeiros dirigidos às crianças e
adolescentes. Mas o Conar é uma entidade criada pelo mercado e o mercado só
obedece a uma lei: crescer, crescer sem controles e sem regulação.


Como a imprensa não costuma questionar os interesses dos anunciantes, só nos
resta apelar para a consciência daqueles que sustentam a imprensa: você leitor,
você internauta, você telespectador, você ouvinte. Se perdemos esta parada, quem
perde é o Brasil.


***


Nota do Conar


A autorregulamentação publicitária brasileira já há vários anos veta a
associação de marcas de bebidas alcoólicas a uniformes de esportes olímpicos, da
mesma forma que apelos de qualquer natureza que possam sensibilizar diretamente
o público menor de idade. Estas e outras limitações ultrapassam em muito as
exigências ditadas pela legislação brasileira.


Defendemos o princípio da autorregulamentação para a publicidade, em linha
com as recomendações, por exemplo, da Comunidade Européia e Organização Mundial
de Saúde, como caminho indispensável para o aprimoramento da atividade. Quanto
ao assunto objeto da pauta do programa, trata-se de relacionamento comercial
entre CBF e Ambev, que não diz respeito à autorregulamentação publicitária.
(Gilberto C. Leifert – Presidente do Conar)


 


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– Ilana Pinsky

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Jornalista