Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Gás de provocação

Mais do que de gás de pimenta, há no ar um forte cheiro de provocação.

O leitor pode escolher: ou o governo de São Paulo é de uma incompetência notável no manejo da polícia, ou é mais competente do que imaginam os que nunca viveram situações em que a provocação funcionou.

Os jornais de São Paulo e do Rio não podem ignorar, como fazem dia após dia, o contexto político em que ocorreram as recentes e ocorrerão as próximas manifestações contra aumentos de passagens de ônibus.

Não está ao alcance dos manifestantes, nem dos que os chamaram às ruas, determinar o contexto. Ele é dado pelo calendário político.

Tudo que ocorre no país desde que o ex-presidente FHC pôs na pista a candidatura a presidente do ex-governador de Minas Gerais Aécio Neves, e foi imediatamente seguido pelo ex-presidente Lula e pela presidente Dilma Rousseff, insere-se no antecipado processo eleitoral de 2014 (como se sabe, além do presidente serão eleitos governadores, senadores, deputados federais e deputados estaduais).

A Rota começou

Jornalistas e outras testemunhas não hesitam: a manifestação de quinta-feira (13/6), em São Paulo, não teve caráter violento até uma intervenção da tropa de choque, não por acaso a Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), intervenção assim descrita por Elio Gaspari na Folha de S. Paulo de sexta-feira (14/6):

“Num átimo, às 19h10, surgiu do nada um grupo de uns 20 PMs da Tropa de Choque, cinzentos, com viseiras e escudos. Formaram um bloco no meio da pista. Ninguém parlamentou. Nenhum megafone mandando a passeata parar. Nenhuma advertência. Nenhum bloqueio, sem disparos, coisa possível em diversos trechos do percurso.

“Em menos de um minuto esse núcleo começou a atirar rojões e bombas de gás lacrimogêneo. Chegara-se a Istambul.”

O que se viu em seguida, e a mídia toda tem descrito com detalhamento crescente, foi uma exibição de força para a arquibancada (dolorosa e aterrorizante para quem estava no chamado teatro dos acontecimentos).

A palavra teatro vem a calhar, porque se trata de um palco em que os dois lados – manifestantes e repressores – buscam os holofotes midiáticos.

Violência eletiva

Se a força policial paulista quisesse evitar o confronto, não o teria iniciado. Quase todo dia há manifestações na Avenida Paulista. Perturbam o trânsito. Chegam a pôr em risco pessoas que estão sendo levadas a atendimento de urgência nos vários e importantes hospitais da área. Mas muito raramente degeneram em quebra-quebra. Muitas delas descem a Avenida Brigadeiro Luís Antônio em direção à Assembleia Legislativa escoltadas pela Polícia Militar.

Quem faz essa escolta civilizada não é a Rota, nome de guerra do 1º Batalhão de Polícia de Choque da PM, que muitos jornalistas ainda insistem em denominar “tropa de elite”. São homens de outros batalhões (inclusive motociclistas do 2º Batalhão de Choque).

O comando da Polícia Militar, que é subordinado ao governador Geraldo Alckmin, reservou a Rota para a manifestação de força de quinta-feira. O pretexto foi o “crescimento da violência” praticada por manifestantes, que fez o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, afirmar na terça-feira (4) que a atuação da PM na véspera fora correta.

Pode-se imaginar que a nova Revolução Brasileira terá começado com os protestos contra aumentos de passagens de ônibus (aumentos que pesam muito no bolso dos passageiros e nada no de quem os determina). Qualquer um é livre para acreditar ou não nisso.

Exaltados e provocadores

Mas há pelo menos mais uma interpretação possível, talvez mais realista.

Para simplificar, examinemos brevemente os dois “polos opostos” da quinta-feira (6): “vândalos” e Rota.

Os vândalos propriamente ditos eram minoria na manifestação, como são por definição. Quebrar, tocar fogo seria uma forma de expressar um inconformismo difuso. Ou realizar uma ação eletrizante. Ou se divertir com o que a classe média odiada pela professora Marilena Chauí chama de bagunça.

A maioria dos “vândalos” quebra, põe fogo, joga pedras com objetivos políticos: “a violência é a parteira da História”. Há um pequeno número que tem objetivos políticos opostos: são os provocadores. Nem precisam se “infiltrar” em manifestações onde se permitem rostos encobertos. E estão ali para fazer o caldo entornar.

A Rota, do outro lado, não precisou de provocação. Ela provocou. Em seguida, não faltaram pedradas etc. para “justificar” o discurso do governador Alckmin. “É dever da polícia proteger a população e garantir o direito de ir e vir e preservar o patrimônio público e privado (…)”, disse ele na sexta-feira (14/6).

A mídia, quando viu a selvagem violência estudada da Rota se voltar contra jornalistas, pôs a boca no mundo. Ótimo. Sem jornalismo livre e atuante, que atraia justificadamente a ira dos governos, não há democracia. Mas não fez, até agora, a indispensável pergunta: a quem aproveitam os incidentes?

Linha dura

Alckmin, às voltas com uma onda de latrocínios e outras modalidades de homicídio, engajou-se na campanha pela redução da maioridade penal para 16 anos. O PCC agradecerá o reforço de suas fileiras nas cadeias paulistas com o envio de sangue novo.

A maioria dos eleitores apoia esse tipo de falsa solução. O Datafolha fez onze pesquisas sobre pena de morte entre 1991 e 2008. Em todas, a maioria dos entrevistados é a favor da pena de morte.

Uma verdade sobre a qual os democratas deveriam meditar: apesar de encherem a boca em elogios à democracia brasileira, quando se examina o voto popular nos últimos 28 anos (desde as eleições de 1985 para prefeitos de capitais e outros municípios ditos de interesse da “segurança nacional”) pode-se constatar que a direita (em suas diferentes indumentárias), apesar das aparências, não se saiu mal. Essa hipótese ainda está à espera de estudos mais elucidativos.

Boinas Negras”

Para captar a sinalização política da Rota, visite-se o site do batalhão, em cuja página de abertura se encontra a seguinte passagem num texto dedicado à história dos “Boinas Negras”:

“Mais uma vez dentro da história”, o 1o Batalhão etc., “é chamado a dar sequência no (sic) seu passado heróico, desta vez no combate à Guerrilha Urbana que atormentava o povo paulista. Havia a necessidade da criação de um policiamento enérgico, reforçado, com mobilidade e eficácia de ação”.

Uma leitura infinitamente mais qualificada é o livro-reportagem Rota 66 – A História da Polícia que Mata, do jornalista Caco Barcellos, publicado em 1993.

Caramante e Telhada

E convém lembrar que em outubro passado o repórter da Folha de S. Paulo André Caramante e sua família foram forçados a se exilar devido a ameaças instigadas no Facebook pelo coronel da reserva da PM Paulo Telhada, que acabara de deixar o comando da Rota e se vangloriava de ter matado trinta e tantas pessoas “em combate”.

Caramante, ao voltar à Folha, deixou a reportagem policial.

Telhada foi eleito vereador em São Paulo, quinto mais votado, com 89 mil votos. É filiado ao PSDB do governador Geraldo Alckmin.

 

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