Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa viaja na galáxia de tolices

A imprensa, em especial o jornalismo impresso – que ainda se mantém com um nível de perenidade maior que as outras mídias –, parece pouco preocupado com a qualidade de suas informações. Principalmente no que se refere a assuntos envolvendo tecnologia, ciência espacial e política governamental para o setor. E isto quando não se esborracha de vez em solo desconhecido quando tenta retratar temas mais complexos. Entre eles questões sobre o meio ambiente natural e a interferência antrópica.


Enquanto a Rede Globo, ciente que o aquecimento global ocuparia um lugar cada vez mais destacado nos seus noticiários, contratou os cientistas do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec), órgão do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), para preparar seminários que suprissem parte da desinformação de seus profissionais de redação, os jornalões seguem empurrando essa necessidade e outras com a barriga. Um misto de acomodação e arrogância, já encalacrado em seu DNA .


Prova disto foi a reportagem do Estado de S.Paulo no domingo (8/7, ver aqui). Em termos editoriais, um brinde ao descompromisso e à ausência de análise crítica sobre o Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE). Quanto ao leitor, um acintoso desrespeito pela falta de qualidade informativa, pelo volume de erros conceituais e históricos envolvendo a trajetória da antiga Missão Espacial Completa Brasileira (MECB).


Equivocadas e ridículas


A falta de qualificação dos profissionais – muitos deles eleitos como gênios e reinventores da roda dentro das redações – se esconde, por vezes, atrás de textos pomposos, na tentativa de dar ao fato um grau de importância que inexiste. Como no caso do lançamento de um pequeno foguete de experimento científico, que ficará apenas seis minutos acima de 110 quilômetros, então sob efeito da microgravidade, e que terá seu apogeu em 276 quilômetros.


Nesta altitude, o VSB-30 não ultrapassará a faixa da Termosfera, onde o ar é mais rarefeito, já que a atmosfera terrestre é redutora e quanto mais distante da superfície menor a força gravitacional. Outra característica deste projétil é manter confinado em seu compartimento de carga todos os experimentos, sem lançá-los ao espaço. Mas para que explicar o correto se há a possibilidade de ludibriar editores ainda mais ignorantes no assunto e conquistar um generoso espaço na publicação? Jornalismo também é uma questão de egos inflados, de vaidades. E aí se divulgam coisas do tipo:




‘O Centro de Lançamento de Alcântara está a poucos dias de lançar um novo foguete de sondagem de quase 1 milhão. O veículo levará nove experimentos de cientistas, o esforço de três centenas de profissionais em mostrar o valor do seu trabalho e o desejo de que o local vire referência no envio de satélites para o espaço. Uma operação de risco para um vôo de 20 minutos que põe à prova o programa espacial brasileiro. Também uma tentativa de sepultar de vez a tragédia com o Veículo Lançador de Satélites (VLS), em 2003, e o mal-estar criado com o vôo do astronauta Marcos Pontes.’


Somente um profissional de imprensa totalmente alheio os tropeços do PNAE consideraria que o Programa Microgravidade, iniciado em 1998, é de tão expressiva importância. As considerações são equivocadas e ridículas.




‘Uma operação de risco para um vôo de 20 minutos que põe à prova o programa espacial brasileiro. Também uma tentativa de sepultar de vez a tragédia com o Veículo Lançador de Satélites (VLS), em 2003’


Ordens de grandeza


O primeiro grande tropeço. Os testes com Veículos de Sondagem (VS) – algo totalmente diferente do Veículo Lançador de Satélites (VLS) – são feitos pelo Brasil desde meados dos anos 1960. A grande maioria desses foguetinhos que sobem até a estratosfera ou mesosfera foi bem-sucedida. Mas nunca foram vôos de risco e o programa espacial brasileiro jamais dependeria de seu sucesso para vingar.


No máximo, a família dos foguetes VS ajudou a alguns testes preparatórios para a confecção do VLS. E outra bobagem imensa do Estadão: na ânsia de qualificar o experimento como algo de magnitude, buscou a maneira mais tola para dar um porte inexistente ao lançamento do VSB-30, feito de uma rampa metálica, sequer assemelhada à torre de lançamento destruída em Alcântara (MA).


No ímpeto da ignorância, o jornal afirmou que o sucesso desta empreitada seria redentor para a insepulta tragédia com o VLS em 2003. Bastava conhecer um pouco da história para saber que este é outro crime no rol dos homicídios cometidos pelos poderes públicos a permanecer impune neste país.


Mas a galáxia de besteiras não pára por aí. Pobre do leitor menos avisado ou desatento às mazelas da imprensa – que finge ser especializada e se aventura em elucubrações fantasiosas, calçadas num falso e pretensioso nacionalismo. E assim vai-se colecionando tijoladas na vidraça da história, em muito por presunção, falta de conhecimento e ausência completa de apuração.




‘O programa VLS fracassou nas três tentativas de levar para o espaço um satélite de comunicação, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O acidente fez o programa aeroespacial brasileiro atravessar um nevoeiro. Tudo teve de ser revisado, revisto e rediscutido’.


Correto dizer que o VLS fracassou três vezes, de maneira pífia, usando componentes de mísseis intercontinentais do sucateado parque bélico da antiga União Soviética. Comprados na Ucrânia ou retirados dos bunkers empoeirados da atual Rússia e descarregados, literalmente às toneladas, pelos supercargueiros Antonov no aeroporto civil-militar de São José dos Campos (SP), onde se situa a sede do ex-Centro Técnico Aeroespacial (CTA), responsável pelo desenvolvimento, construção e lançamento do veículo espacial.


Como a reportagem tenta forçar as ordens de grandeza, apelando até para o ficcional, não é de se espantar que os satélites a bordo do VLS se transformassem também em algo superdimensionado. Segundo o jornal, os satélites perdidos nas tentativas de lançamento eram de ‘comunicação’. Qualquer iniciado no assunto sabe o BrasilSat, satélites usados pelo país para comunicações, são de grande porte (algo próximo aos 1,5 mil quilos) e produzidos por empresas estrangeiras. Os últimos foram lançados pelo foguete francês Ariane.


Lapso ou desmazelo?


As tentativas brasileiras de colocar um equipamento satelitário em órbita foram com minissatélites de coleta de dados, ou seja, equipamentos simples e de uso científico. Estes, sim, produzidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e que não ultrapassavam 150 quilos, pois nosso foguete só consegue levar carga útil de até 200 quilos. Agora fica a questão. Até onde se pode chamar a isso de lapsos de uma reportagem ou de desmazelo? Ou total irresponsabilidade?


Melhor deixar que os fatos respondam. O PNAE não foi revisado desde o acidente de 2003, o VLS continua sem verbas, os cortes orçamentários e a falta de repasses aos centros de estudos são freqüentes e o governo federal só tem feito estragar, ainda mais, a reputação construída por alguns institutos científicos brasileiros.


Desde novembro de 2006, o Brasil foi excluído do programa de construção da Estação Espacial Internacional. Por pura falta de revisão do programa espacial e por considerar o segmento científico algo totalmente desnecessário para um país que está às voltas com uma economia agrícola e baseada na monocultura.


Cumprir com seus compromissos internacionais na área espacial nunca foi prioridade de nenhum dos governos federais nas últimas décadas – embora a demagogia, pelo visto, sensibilize parte da imprensa, principalmente a que se mantém fora da órbita da realidade.


Notícia velha


Em vez de buscar novos fatos para o esclarecimento do acidente de Alcântara, nos contentamos em estabelecer comparações grotescas. Qual o impedimento para se investigar e comprovar que o acidente com o VLS (um foguete de 20 metros, 50 toneladas e apogeu de 750 quilômetros) poderia ser evitado se não fossem as ordens irredutíveis dos ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia para lançarem o projétil? Diversos foram os relatos de técnicos de que a torre de lançamento estava carregada de eletricidade estática. Ou seja, dava choque em quem a tocasse.


Tanto é verdade que toda a equipe de projeto foi designada para ir até o local e descobrir os motivos desse campo eletromagnético, algo totalmente atípico e que, por si só, era motivo para abortar a missão. Infelizmente, essa carga fez acionar um dos motores e incinerar 21 pessoas a mais de 3 mil graus centígrados.


Isto é notícia antiga, deve ser ignorada. Além do mais, a hipocrisia é cega de conveniência. Pelo visto o que interessa agora é promover a falsa redenção da Base de Lançamentos de Alcântara e resgatar a imagem do Brasil como país do futuro também no segmento científico. Mesmo que isto esteja vinculado ao sucesso de um foguete de 12 metros e 2,5 mil quilos.

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Jornalista pós-graduado em jornalismo científico e especializado em águas atmosféricas