Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa argentina na berlinda

Dois dias após as eleições que colocaram na presidência, em primeiro turno, a primeira-dama Cristina Kirchner, o Observatório da Imprensa na TV de terça-feira (30/10) analisou a mídia argentina. Há cerca de um ano, os tradicionais Clarín, La Nación e Pagina/12, ganharam um concorrente, o semanal Perfil. Publicado aos domingos pela Perfil Editorial, do mesmo grupo das revistas Caras e Fortune, o periódico de oposição veiculou uma série de denúncias de corrupção no governo.


Participaram do programa os jornalistas Claudio Bojunga, comentarista de Internacional do jornal Edição Nacional, da TVE, no Rio de Janeiro; pela Internet, de Buenos Aires, Ariel Palácios, correspondente da Globonews e de O Estado de S.Paulo; e Claudia Antunes, editora do caderno ‘Mundo’ da Folha de S.Paulo, no estúdio da TV Cultura.


‘Por que razão os políticos populistas detestam a mídia?’ questionou o jornalista Alberto Dines no editorial que abre o programa. Para Dines, isto ocorre porque os populistas não gostam de intermediários, querem falar diretor com seus eleitores. ‘O vitorioso casal Cristina e Néstor Kirchner não foge à regra básica do populismo: nenhum deles esconde o desprezo por uma das imprensas mais qualificadas do continente. O casal raramente fala com a mídia, sequer recebe os correspondentes estrangeiros. Só abre exceções para apresentadores de TV, muito populares e naturalmente, ‘muy amigos’’, criticou. Dines chamou a atenção para o fato do fenômeno não ser isolado, ocorre em outros países da América Latina, onde a imprensa independente seria considerada inútil.


Ela não fala com a imprensa


O jornalista Newton Carlos, que trabalha para a TV Bandeirantes e é colaborador dos jornais Folha de S. Paulo e Correio Braziliense, lembrou, em entrevista gravada, que durante a campanha, a presidente eleita mal falava com a imprensa. ‘Somente agora com essa questão do debate sobre a inflação, ela deu uma entrevista a um programa de televisão dizendo que a inflação é invenção da mídia, mas a inflação existe’, ressaltou. O jornalista comentou a linha editorial dos dois principais jornais do país. Classificou o La Nación como importante diário de oposição e o Clarín como um jornal de oposição mais moderada em relação do casal Kirchner.


Rodolfo Fogwill, escritor e jornalista argentino, prevê que Cristina Kircnher poderá governar com relativa tranqüilidade somente até março (o mandato eleitoral no país terá início dia 10/12), quando a sociedade deverá começar a cobrar uma solução para as crises social e econômica. Fogwill destacou outro problema na imprensa argentina. Um acordo entre o La Nación e o Clarín, firmado nos anos 70 com o apoio do governo vigente, permitiu que estes jornais fundassem uma indústria de papel. Hoje, a fábrica é a única autorizada a produzir o produto e vender para os concorrentes de menor porte.


Para o co-fundador e presidente da Editora Perfil, Jorge Fontevecchia, o semanal atende ao consumidor que não tem tempo para ler nos outros dias da semana. O publisher salientou que a maioria dos argentinos que lêem pertencem à elite. Nelson Castro, colunista do Perfil, disse que o formato da publicação permite um ritmo diferente dos diários. Sem a pressão do dia-a-dia, o jornal tem mais tempo para reportagens investigativas e para aprofundar temas.


No início do debate ao vivo, Dines perguntou a Ariel Palacios como a presidente eleita comunica-se com a sociedade, já que não usa a imprensa com esta finalidade. O correspondente explicou que a política não concede entrevistas exclusivas nem coletivas, mas fala comícios com poucas pessoas ou em eventos empresariais e culturais. A mídia repete o que Crisitina Kirchner diz nestes encontros.


‘Opinião pública’ descolada do eleitorado


Na avaliação de Palacios, assim como o marido, a futura presidente ‘fala o que quer’. Claudia Antunes definiu a relação do casal com a imprensa como complicada e ambígua, parte de um fenômeno que ocorre atualmente na América Latina onde a chamada opinião pública é descolada do eleitorado.


Bojunga concordou com os colegas e avaliou que todos os governos com características de centralização e perpetuação tendem a ‘atropelar’ o jornalismo. Além do comportamento omisso em relação ao diálogo com a imprensa – marcado pela ausência de entrevistas coletivas –Néstor Kirchner também seria agressivo. O político ameaçaria o trabalho da imprensa com ligações para s jornais e pressionais as empresas através do contingenciamento das verbas publicitárias oficiais.


Um fenômeno levantado por Ariel Palacios foi o fato de os jornais argentinos – que tradicionalmente repercutem com agilidade reportagem de veículos concorrentes – terem ignorado durante dias as denúncias de corrupção levantadas pelo Perfil. Palacios disse que este comportamento está mudando e que a imprensa, gradativamente, tem reconhecido o trabalho do novo jornal. O jornalista classificou a postura dos meios de comunicação como um pouco ‘invejosa’.


A jornalista da Folha avaliou que a imprensa está pouco acostumada a pensar de forma crítica o seu próprio desempenho. Claudia Antunes disse que os meios de comunicação confundiram, em algumas situações, o papel de fiscalizador dos poderes com um problema de classes. Esse comportamento teria coincidido com a crise econômica que os países da América Latina enfrentaram nos anos 1990. ‘Isso atraiu para os governantes no poder um eleitorado popular que não pode ser ignorado. Eu acho que os anseios destas pessoas também têm que ser levados em conta quando se fala de opinião pública’, analisou.


Ariel Palácios examinou a questão da dependência dos veículos argentinos da publicidade oficial. O correspondente explicou que os grandes jornais dependem das verbas de propaganda do governo, principalmente porque contraíam dívidas em dólar durante a crise financeira. Palacios ressaltou que os jornais do interior dependem do governo desde antes da crise, há décadas, e que por isso são mais ‘amáveis’ com o governo para poder sobreviver. O jornalista comentou o caso do Diário do Rio Negro, da província com o mesmo nome, que se recusou a ter publicidade oficial. A publicação valente e corajosa na opinião de Ariel, enfrentou a crise econômica dependendo apenas dos leitores e da publicidade privada.


Perfil: tom autoral


Ainda sobre o papel da classe média na Argentina, Cláudio Bojunga ponderou que o grupo é que sustenta a estabilidade financeira no país e que o Perfil atende a setores dentro desta faixa de renda. O publisher do jornal, Jorge Fontevecchia, representaria o empresáro-jornalista, que faz uma ponte entre analisar a conjuntura social e a administração do empreendimento. Bojunga comparou o Perfil com os jornais brasileiros Opinião e Argumento, editados durante a ditadura militar, por conta do tom autoral e independente e pela importância do time de colunistas.


Um telespectador pediu para Ariel Palacios comparar Cristina Kirchner com a líder populista Evita Perón, casada com Domingos Perón, que foi primeira-dama entre 1946 e 1952. Ariel avaliou que Evita ganha em carisma e mobilização das massas, mas era apenas um ‘anexo’ do marido. Já a futura presidente tem carreira política independente de Néstor e foi eleita democraticamente.


Ao final do debate, Alberto Dines comentou que apesar da falta de recursos técnicos e financeiros da rede pública de televisão, esta edição do programa contava com a participação de convidados nas três principais capitais da América Latina: São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires. Ao vivo, em cadeia nacional, durante uma hora.


Perfil dos participantes:


Ariel Palacios, jornalista, é correspondente da Globonews e de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, onde vive há 12 anos.


Claudia Antunes, jornalista, é editora do caderno Mundo da Folha de S.Paulo. Foi editora de Internacional e de Política no Jornal do Brasil e chefe de reportagem da sucursal da Folha no Rio de Janeiro.


Claudio Bojunga, jornalista, é formado em Direito e estudou Política Internacional no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Foi repórter, redator, crítico e correspondente internacional. É comentarista de Internacional do jornal Edição Nacional, da TVE, professor da PUC-Rio e escritor.


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Populismo é doença contagiosa


Alberto Dines # editorial do programa Observatório da Imprensa na TV nº 440, no ar em 30/10/2007


Por que razão os políticos populistas detestam a mídia? Simplesmente porque os populistas detestam intermediários, querem falar diretamente com os seus eleitores.


O vitorioso casal Cristina e Néstor Kirchner não foge à regra básica do populismo: nenhum deles esconde o desprezo por uma das imprensas mais qualificadas do continente. O casal raramente fala com a mídia, sequer recebe os correspondentes estrangeiros. Só abre exceções para apresentadores de TV, muito populares e naturalmente, ‘muy amigos’.


Convém prestar atenção porque o fenômeno não é isolado, é regional. A América Latina está recuperando os antigos paradigmas do caudilhismo onde a imprensa independente é considerada inútil quando não vilã.


Para o Brasil, a vitória esmagadora de Cristina Kirchner promete o estreitamento dos laços Brasil-Argentina, mas serve também como advertência: populismo é doença contagiosa. 

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Jornalista