Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Informação ainda é muito pouca

O ministro José Gomes Temporão, da Saúde, propôs um plebiscito para discutir se o aborto deve continuar sendo crime. O papa Bento 16 declarou: ‘O direito de matar um inocente é incompatível com estar em comunhão com o corpo de Cristo’ (Folha de S. Paulo, 20/5/2007). E o aborto, há tanto tempo ausente das matérias jornalísticas, voltou a fazer parte da pauta. O assunto apareceu no domingo (20) tanto na Folha de S.Paulo como no Estado de S.Paulo.

No Estadão, quando questionado se o ministério da Saúde está preparado para assumir o aborto como questão de saúde pública, o ministro respondeu:

‘Eu acho que quem tem de se preparar para assumir isso é a sociedade brasileira. O Ministério está tão preparado que atendeu no ano passado 220 mil mulheres em processo de abortamento. Essa dimensão técnica-assistencial é uma coisa. O mais importante é que, primeiro, todos somos contra o aborto. Ninguém em sã consciência pode ser a favor. Mas o que fazer quando ele se coloca como fato real? Eis a dimensão de saúde pública.’

A Folha de S. Paulo do mesmo domingo preferiu mostrar o fato real a que se refere o ministro, em duas notícias:

** Sem carteira assinada, uma empregada doméstica que recebe R$ 100 por mês em Salvador contou à Polícia Civil que tomou três comprimidos de um remédio para abortar seu terceiro filho ‘porque luta para sustentar duas crianças’. À delegada, a empregada doméstica disse que não usa nenhum anticoncepcional. ‘Não tenho dinheiro para nada’, afirmou. Após deixar a delegacia, Maria de Fátima foi levada a um hospital – dois dias depois do aborto, ela ainda perdia sangue.

** Evanice contava seis meses de gravidez quando decidiu interromper a sua gestação, aos 24 anos de idade. Dizendo não ter condições financeiras para cuidar da criança sozinha, vendeu a geladeira de casa para juntar dinheiro e pagar o remédio que Isabel, mulher que se apresentava como enfermeira em Jaguaruna (189 km distante de Florianópolis), prometia conseguir. Isabel levou para Evanice um remédio para úlcera gástrica que provoca contrações uterinas e cuja venda é controlada. O aborto foi quase imediato.

O que essas mulheres das notícias da Folha têm em comum? São jovens, não têm dinheiro e, o que é pior, não têm informação que permita evitar a gravidez. Resultado: além dos problemas de saúde, conseqüência de um aborto feito em condições precárias, vão ter que enfrentar, pelo resto da vida, a culpa de matar um filho e o verdadeiro filme de terror – que a Folha fez questão de relatar – sobre o que fizeram com o feto. E, se o crime for descoberto, vão responder processo e cumprir pena. O que é muito raro, como mostra uma terceira notícia da Folha (20/5):

** Não há nenhuma mulher em São Paulo cumprindo pena por aborto, segundo levantamento da Secretaria da Administração Penitenciária, órgão responsável pela custódia das 6.159 mulheres presas no estado. O aborto é crime previsto em cinco dos 361 artigos do Código Penal brasileiro, de 1940. As penas vão de um a dez anos de prisão, dependendo das circunstâncias. O Ministério da Saúde estima que 1 milhão de abortos clandestinos ocorram no país todos os anos. A OMS (Organização Mundial da Saúde) aponta que, a cada grupo de cem mulheres brasileiras, com idades entre 15 e 49 anos, ao menos 3,7 praticam aborto.

Informação ou sensacionalismo?

Qual seria o verdadeiro trabalho da imprensa na discussão do aborto? Dar a palavra ao ministro da Saúde, enfatizar a posição do papa e contar os casos de mulheres que cometem crimes – e nem chegam a ser processadas – é jornalismo ou sensacionalismo?

Uma discussão profunda do tema deveria ir um pouco além do que a mídia mostra. Seria interessante saber quantos processos existem na Justiça envolvendo abortos permitidos e quanto tempo demorou até que o aborto fosse feito. Como o SUS vai resolver – caso o aborto seja legalizado – a situação dos médicos que se recusarem a fazer o procedimento?

Mas talvez mais importante ainda seria discutir por que só a mulher – e quem a ajuda a praticar o aborto – pode ser processada. Em um dos casos mostrados pela Folha, ficamos sabendo que a mulher recebeu ajuda do namorado para fazer o aborto. Do ponto de vista legal, ele não é tão responsável quanto ela? Como diz uma médica (Plano de Saúde de Família) de Piracicaba (SP):

‘Por que só a mulher é considerada responsável perante a Lei? A responsabilidade pela gravidez – e pela decisão de abortar – é de duas pessoas, mas a Lei só se aplica à mulher. Se um dia um homem for preso porque ajudou a mulher a abortar, garanto que eles vão ter mais cuidado.’

De acordo com o ministro Temporão, ‘ninguém é a favor do aborto’. Se for verdade, a imprensa deveria tentar mostrar por que as mulheres – as maiores prejudicadas – ainda são forçadas a ir contra a natureza e cometer esse ato que a igreja católica considera pecado e a lei classifica como crime – elas o praticam por pura falta de opção.

Ou será que contar histórias macabras é tudo que a imprensa quer?

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Jornalista