Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ivson Alves

‘Espero que você e sua família tenham passado bem o carnaval, com muita alegria e paz. Bem ao contrário, por exemplo, da Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). Como noticiou este C-se, no dia 20, quinta anterior ao Tríduo Momesco (que tem quatro dias), a Record, que exercia a vice-presidência da entidade por intermédio de seu presidente, Denis Munhoz, pediu o boné. O motivo, como também informou o nosso querido portal, foi a discordância entre a tevê da Igreja Universal do Reino de Deus e a entidade a respeito do único assunto que realmente importa para os donos dos veículos de comunicação brasileiros hoje em dia: o sonhado empréstimo do BNDES para o setor de mídia.

O tal empréstimo na verdade são dois. Um, de longo prazo, teria como objetivo fazer com que o setor realizasse os investimentos básicos para as mudanças tecnológicas que já andam por aí e devem ganhar força e velocidade nos próximos anos. O caso mais visível é o da adoção da tevê digital no país, ainda em discussão, mas cuja decisão a respeito do padrão a ser adotado dificilmente passará de meados de 2005. Sobre esta grana – calculada em cerca de R$ 10 bilhões -, a Record não tem nenhuma divergência de monta, ao que se saiba. O problema todo está localizado num segundo empréstimo.

Um segundo que na verdade é primeiro porque é ele que salvaria as empresas de comunicação – e não só as tevês – do sufoco em que andam metidas há dois anos, e do qual, sem a mãozinha (e a bolsa) amiga da Viúva, dificilmente muitas sairão. Este empréstimo, no significativo montante de R$ 5 bilhões, é metade do valor total dos papagaios empinados pelos barões da mídia nos mercados do Brasil e do exterior, segundo matéria publicada há coisa de três semanas pela excelente Elvira Lobato na Folha de São Paulo. Desses R$ 10 bilhões, um pouco mais de R$ 6 bilhões estão na conta da Globopar, holding das Organizações Globo que reúne NET Serviços, Globosat, Editora Globo, gráfica Globo Cochrane, Sistema Globo de Gravações Audiovisuais (Som Livre no meio) e o multifacetado e bem confuso setor de Internet do grupo.

É exatamente o peso que esse empréstimo-cti terá na salvação das Organizações Globo que deixou a Record – e não só ela – tiririca. Caso receba 60% do ervanário – o correspondente ao peso de sua parte na dívida total -, a holding dos Marinho meteria a mão em nada menos de R$ 3 bilhões, o que certamente a tiraria da forca. Afinal, toda dívida astronômica nunca é aquela de seu valor de face. Explicando: se, por exemplo, um credor tem direito a R$ 100 há três anos, e aparece o devedor e lhe propõe receber R$ 80 na mão, tendo como opção ficar mais dois anos na fila para receber os R$ 100, em 70% dos casos aquele que tem grana a receber aceita na hora.

A Record sabe que este é o momento dela, uma chance de ouro que dificilmente se repetirá porque não é crível que os Marinho façam novamente uma besteira mastodôntica como a de tentar entrar num ramo que não é o deles, da maneira que fizeram em 97/98 em telecomunicações. O empréstimo-cti salvaria o Império e por isso, os ‘bispos’ estão tão furiosos com a propensão do governo em concedê-lo.

Os federais já sabem que terão problemas sérios com a IURD se abrir a burra para a Globo. Um representante da Record comunicou isso pessoalmente ao ministro Luiz Gushiken, da Secom, em encontro realizado em Brasília, no dia 12. Para mostrar que não estão sozinhos nessa cruzada contra o empréstimo-cti, os representante dos ‘bispos’ foi à reunião acompanhado de próceres da Rede TV! e do SBT, que também não estão a fim de ver o Império tirar a corda do pescoço.

Diante de tal rolo, o presidente do BNDES, Carlos Lessa, que seguidas vezes já deu mostras de desconforto com a prensa dos meios de comunicação, ensaia uma maneira de tirar o dele da reta. Sugeriu que o assunto fosse discutido no Congresso Nacional. Se for avante, essa idéia levaria o imbróglio a outro patamar, envolvendo diretamente os políticos, inclusive a poderosa bancada evangélica, que faz parte da sustentação do governo Lula.

Como você já deve ter sacado, esse assunto rende bastante e por isso voltarei a ele em breve. Talvez mesmo na próxima semana, quem sabe.

Menos um problema – Já não era sem tempo. Em outro front da batalha pela manutenção de sua liderança quase monopolista do setor de mídia brasileiro, o Império recebeu uma boa notícia: a Corte de Nova York negou o pedido dos fundos GMAM Investment Funds Trust I, Foundation for Research e WRH Global Securities Pooled Trust, que queriam a decretação de falência da Globopar. A juíza que julgou o caso achou que os fundos exageraram ao cobrar a dívida de US$ 94 milhões apelando para o duro Chapter 11 da legislação americana.’



CONTEÚDO NACIONAL
Toni Venturi

‘Defesa de conteúdo brasileiro aproxima cinema e TV’, copyright Folha de S. Paulo, 24/02/04

‘O cinema brasileiro, noivo pobre, almeja levar ao altar, sob a bênção do governo e da sociedade, uma noiva rica, a TV.

A parceria cinema & TV é um sonho antigo e um importante caminho para o desenvolvimento auto-sustentável da indústria cinematográfica nacional, mas esse matrimônio tem de nascer sobre bases sólidas. O idealismo e a defesa do ‘conteúdo Brasil’ é um dos fatores que aproximam estes eternos enamorados, mas há um forte e surdo jogo de interesses.

A TV Globo, representante hegemônica das emissoras de televisão aberta, aparenta ter hoje genuínas preocupações com a entrada no mercado das poderosas multinacionais de comunicação. E, como qualquer empresa capitalista moderna, luta para preservar e ocupar novos espaços.

A aproximação cinema & TV têm de enfocar os interesses estratégicos dos dois lados. E o momento é propício. As televisões e outros órgãos de comunicação estão pleiteando uma vultosa ajuda econômica do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) para aliviar seus compromissos financeiros internacionais. Sabe-se que a Globo dá muito lucro, mas a holding Globopar precisa do empréstimo e do alongamento da sua dívida.

Espera-se que esse auxílio tenha uma contrapartida para toda a sociedade e que o cinema e a TV suplantem suas diferenças e negociem abertamente. Da parte do governo há boa intenção, criando a Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual) como agência reguladora. Na Europa, principalmente na França e na Espanha, há anos a legislação regula e limita a produção feita pela própria emissora e estabelece as co-produções e a obrigatoriedade de exibição dos filmes na telinha.

O patrimônio do cinema é sua capacidade de gerar conteúdo nacional, afinal esta arte só trabalha com essa matéria-prima, ao contrário das TVs, que vivem da importação de produtos de duvidosa qualidade. Nesse quesito, aplausos para a Globo, que investe milhões na teledramaturgia, o que acarreta um vigoroso incentivo ao nosso mercado.

Contudo se faz premente a reflexão sobre sua forma de produção, que é feita quase que totalmente ‘intramuros’, o que exclui a promissora participação dos independentes, gerando uma enorme verticalização cultural em detrimento do desenvolvimento da produção regional.

Do outro lado, a situação é inversa. O latifúndio da TV é imenso, mas de maneira nenhuma está ameaçado neste casamento. A única coisa que se espera é que este dote atenda às expectativas dos cineastas ‘sem-tela’, da sociedade e do governo, que vem reiterando a importância do cinema.

Por que as TVs não colocam uma pequena parte de seu faturamento (2%) em co-produções que elas mesmas escolheriam investir? Por que as TVs não podem se comprometer em exibir ao menos um filme nacional a cada dois meses? Isso agregaria um grande valor ao mercado independente. É só fazer as contas.

As poucas emissoras abertas exibindo cada uma delas seis filmes/ano dariam visibilidade e respeito à recente e premiada produção cinematográfica brasileira (mais de 200 filmes), que praticamente continua inédita para a população. E que tal se a TV dedicasse três minutos diários de seu horário nobre à veiculação de trailers? Vale a ressalva que o ‘negócio televisão’ é uma concessão pública, portanto deve atender aos interesses da população.

Finalmente, quanto à idéia de as TVs terem direito de usar incentivos fiscais para produzir ‘conteúdo Brasil’, me parece uma proposta descabida e um tiro no pé do cinema independente. A receita de uma emissora para produzir imagens é a própria capacidade de comercializar seu espaço, que todo o ano é parcialmente ocupado pelas campanhas publicitárias e institucionais do governo.

O único fomento do cinema nacional é captar recursos através das leis (Rouanet e Audiovisual), hoje proibidos às emissoras. Permitir que os poderosos departamentos comerciais das TVs disputem em pé de igualdade com os produtores independentes do cinema nacional o já ‘vampirizado’ mercado de captação é como igualar cristãos e leões na arena.

A primavera do cinema nacional está em perigo! Esta ótima estação de filmes, que nos proporcionou obras tão diversificadas e instigantes como ‘O Invasor’, ‘Madame Satã’, ‘Desmundo’, ‘Brava Gente Brasileira’, ‘Cidade de Deus’ e muitos outros, está ameaçada por uma tempestade que pode devastar uma geração de artistas, genuinamente brasileiros, que têm conteúdo e que têm o que dizer e mostrar.

Portanto casamento bom não pode ser celebrado na delegacia, sob a mira da arma do delegado nem com o noivo de joelhos. Casamento bom é uma parceria de idéias e da compreensão das necessidades do outro. Casamento bom é o que tem respeito, tolerância e generosidade. Afinal, quem vai ganhar são os convidados, o povo brasileiro, que vai poder assistir a um bom filme nacional, seja na tela do cinema ou no aconchego do sofá da sala. Toni Venturi é diretor de ‘O Velho, a História de Luiz Carlos Prestes’ e ‘Latitude Zero’’