Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Jornalismo capivara e o velório das ossadas

Mais uma vez, a imprensa em geral, e os repórteres em particular, provaram aquela teoria do jornalista Elio Gaspari: o estatuto do repórter-capivara. Pegue-se uma capivara. Meta-lhe pescoço abaixo um colar-pingente, na ponta do qual vê-se um gravador pendente. A capivara percorre, digamos, o Senado, adejando de gabinete em gabinete, oito horas por dia. Volta à redação. Traz uma pletora multitudinária de vozes de senadores, com informações fatiadas. O editor publica as notinhas. Algumas são singulares furos de reportagem. A capivara, como se tivesse ingerido noz-vômica, cumpriu seu papel: vomitou o que ouviu. Ao pé da letra. No caso da decisão do ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, de suspender alguns dispositivos da Lei de Imprensa, não foi diferente.

Os repórteres-capivaras, boa parte dos quais agônicos – jamais leram Constituição, Código Penal e Código Civil – transcreveram o que ouviram sem opor resistência ao que anotavam. Quem perdeu foi o público. E vamos aos fatos.

Todos festejam a decisão, fogos bonitos, tudo bem. Para o grande público não haveria notícia melhor para se divulgar. Mas, aqui entre nós, precisamos saber que o buraco é mais embaixo. A Lei de Imprensa faz tempo que deixou de ser um risco real. As milhares de condenações registrados depois de 1988 (antes não havia nenhuma) e os muitos milhões em indenizações que sangram a imprensa mensalmente não resultam de ferimentos da tal lei da ditadura. O ferro que nos fere vem dos códigos civil e penal, com poderes dados diretamente pela Constituição…

Indenizações eram tarifadas

A Lei de Imprensa caiu em desuso na maior parte dos artigos. Tem sido usada só na parte que protege jornalistas, exceto em uns poucos dispositivos. Não se tem conhecimento de jornalista preso por causa da Lei de Imprensa. Esse diploma é cruel na parte criminal, mas generoso na parte civil (prescrição e decadência curtíssimas, teto baixo para indenização).

A partir de 1988, com a constitucionalização do dano moral e da inviolabilidade da imagem, as leis regulamentadoras deixaram de ser a tal lei especial para ser o Código Civil e o Penal. Com o Código Civil, o volume de processos explodiu. Por quê? Porque não tem mais decadência (prazo para entrar com ação) e porque a prescrição é de três anos na área civil e de dois anos na área penal.

A Lei de Imprensa só é aplicada para o ‘mal’ no artigo 75 (que obriga a publicação da sentença) e uma coisa aqui outra ali.

Com a Lei de Imprensa, as indenizações eram tarifadas: teto máximo de 200 salários mínimos! Nada além. Os jornais já estão pagando ou fazendo acordos na casa do milhão com o Código Civil. A decadência era de três meses. Eu quero a Lei de Imprensa (da ditadura) de volta!

Reparação por dano moral

A decisão do ministro foi tomada na quinta-feira (21/2) no julgamento de uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental proposta pelo deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). Até o julgamento de mérito pelo plenário do STF, estão suspensas, por exemplo, as penas de prisão para jornalistas por calúnia, injúria ou difamação. O problema é que isso só vale para ações baseadas unicamente na Lei de Imprensa. Haverá alguma?

A maioria das regras da Lei de Imprensa já está em desuso porque os juízes têm entendido que elas não foram recepcionadas pela Constituição Federal e ferem o direito de ampla defesa e o devido processo legal. Vejamos os últimos estertores legais: as ações de indenização por danos morais que seguidores da Igreja Universal do Reino de Deus ajuizaram contra os jornais Folha de S.Paulo, Extra e O Globo, do Rio de Janeiro, e A Tarde, de Salvador, por exemplo, têm como base o Código Civil e a Constituição Federal. Apenas citam a Lei de Imprensa. Citadas a lei, o código e a Constituição, caberá ao juiz de cada caso decidir qual é a norma regente.

Entre apenas cerca de 10% de processos que tramitam pelo rito da Lei de Imprensa, está o pedido de reparação por dano moral que o apresentador Paulo Henrique Amorim ajuizou contra o colunista Diogo Mainardi. O colunista escreveu que Amorim usa seus espaços na imprensa para defender interesses privados e fazer propaganda do governo. Neste caso, já há sentença a favor de Mainardi. Mas como a ação tramitou conforme a Lei de Imprensa, o processo pode ser suspenso.

Cesura prévia

Perguntado se é possível que a lei caia totalmente, o ministro Britto confessou que não estudou tudo a respeito do assunto:

‘Tenho de fazer uma análise mais acurada, mais detida. E se chegar à conclusão de que nenhum dispositivo escapa, sem dúvida proporei isso. Mas ainda não fiz essa análise, não dissequei toda a Lei de Imprensa.’

Quanto a outros artigos que escaparam por enquanto, Britto diz que esses também ‘não resistirão à análise detida, à luz da atual Constituição’, que o ministro descreve como…

‘…meritória superlativamente pelo modo como tratou a imprensa. A liberdade de expressão, a liberdade de comunicação, o acesso à informação, o sigilo da fonte, a proibição de censura, tudo isso é um punhado de comandos constitucionais do mais alto valor. A imprensa é para ser azeitada, estimulada, desembaraçada. Sem isso não há democracia. Dois dos mais visíveis, vistosos pilares da democracia brasileira hoje são a informação em plenitude e de máxima qualidade e, em segundo, a visibilidade do poder, o poder desnudo’.

Levantamento feito pelo publisher do site Consultor Jurídico, Márcio Chaer, foi aproveitado lá fora: semana passada a ONG britânica Article 19 enviou um relatório ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas chamando a atenção para seis áreas de preocupação no que diz respeito ao estado da liberdade de expressão no Brasil. O Brasil é o país do mundo em que mais se processam jornalistas. Segundo o relatório da Article 19…

‘…existe atualmente um processo para cada jornalista trabalhando para os cinco maiores grupos de comunicação no Brasil. Muitos desses casos são relacionados a investigações de corrupção e outras questões de interesse público, envolvendo funcionários públicos. Há também um número muito alto de liminares proibindo a publicação de informações, o que caracteriza censura prévia – uma restrição extrema à liberdade de expressão que é completamente vedada por determinadas regras internacionais de direitos humanos’.

Uma morte que já aconteceu

Segundo o levantamento, até abril de 2007, os cinco maiores grupos do setor de comunicação do Brasil empregavam 3.327 jornalistas e respondiam a 3.133 processos por dano moral. Além disso, enquanto o salário-base da categoria é de R$ 2.205,00, sem aumento real nos quatro últimos anos, o valor médio das penas pecuniárias aplicadas pelo Judiciário quadruplicou no mesmo período, passando de R$ 20 mil, em 2003 para R$ 80 mil, em 2007.

Quem mais trabalhou para agravar as indenizações da imprensa em casos de dano moral foi o deputado, então constituinte, Roberto Cardoso Alves, o falecido ‘Robertão’. Ele não cansava de perguntar nos corredores do Congresso: ‘Como pode um cidadão que ofende o outro diante de três pessoas ter punição mais dura que outro que pratica a ofensa diante de 30 milhões de espectadores?’. Robertão tramava em público contra a Lei de Imprensa porque ela protegia jornais e jornalistas, ‘em excesso’, na sua opinião.

A transposição de estatutos – da lei para os códigos – foi feita. O diploma especial, nos estertores, assim como Fidel Castro, anuncia agora uma morte que já aconteceu faz tempo. A imprensa festeja. Resta entender o porquê.

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Repórter especial da revista Consultor Jurídico, professor da ECA-USP e da Fiam, diretor da Abraji