Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalista do NYT deita e rola sobre o caos aéreo

Os pilotos americanos do Legacy que se chocou contra o avião da Gol, no acidente que matou 154 passageiros do vôo 1907, se recusaram a depor no Brasil, como se noticiou ao longo dos últimos dias. Joseph Lepore e Jan Paladino devem ter bons advogados, e todos são mais discretos do que um outro defensor da dupla, o colunista do New York Times que estava no jato e também sobreviveu à tragédia.

Joe Sharkey, que em seu blog se autoperfila como ‘veterano do Vietnã’, chamou para si uma tarefa americana: isentar seus compatriotas de toda e qualquer responsabilidade pelo acidente sobre a selva.

Desde o nosso ‘setembro negro’, Sharkey tem-se dedicado à defesa incondicional dos pilotos, em contraste com as críticas unilaterais que tem feito ao sistema aéreo brasileiro.

O jornalista acerta ao apontar as fragilidades do nosso controle de tráfego aéreo, como acerta ao aventar uma série de erros que teriam sido determinantes para o choque entre os aviões. Mas minimiza a possibilidade de barbeiragem dos pilotos do Legacy.

Rota de colisão

Em um outro blog, Joe Sharkey: Brazil, criado à margem do principal para ‘evitar confusão’ (leia-se ‘evitar críticas acerbas contra si desferidas por brasileiros indignados’), o jornalista nos diz que, por aqui, a mídia tem baixado o tom das suas acusações contra Lepore e Paladino e admitido que os erros do controle de tráfego aéreo colocaram as duas aeronaves na mesma altitude de 37 mil pés. Os meios brasileiros também teriam fechado questão sobre outras supostas causas fundamentais: uma série de lapsos em terra durante os 55 minutos que precederam a colisão.

Sharkey dá ênfase a uma informação que considera certeira: o Legacy estava autorizado pelos controladores a voar a 37 mil pés. Cita, ainda, uma asserção do seu colega Richard Pedicini, correspondente no Brasil: alguns jornalistas brasileiros sérios teriam essa mesma certeza, a de que os pilotos americanos estavam na altitude autorizada pelos controladores. Estes, por sua vez, teriam cometido vários e repetidos erros, por ação ou omissão. Pedicini estaria convicto de que os ‘poucos jornalistas sérios’ estariam agora apresentando esses fatos com menos ênfase do que a empregada na informação inicial, a de que o Legacy estaria na altitude incorreta.

O advogado, digamos, constituído pelos dois pilotos tem a mesmíssima visão dos fatos, conforme o portal do Estadão:

‘‘O sistema de segurança aérea do Brasil está em caos. Há radares que falham, aviões que são mandados de volta, o ministro da Defesa perdeu seu cargo, os controladores de tráfego aéreo fizeram greve e estão sobrecarregados. O sistema de controle de tráfego aéreo colocou dois aviões em rota de colisão. É simples assim’, disse Joel R. Weiss à BBC Brasil.’

‘Não disseram’

Não, não é tão simples, Mr. Weiss. Não é tão simples, Mr. Sharkey. Não é tão simples, Mr. Pedicini. Há enigmas a serem decifrados. Afinal: os quatro controladores denunciados à Justiça Federal do Mato Grosso realmente ‘bateram cabeça’? Ainda que tenham falhado ao não alertarem os pilotos sobre a altitude incorreta, é de se perguntar: o que foi feito com a informação de que a altitude correta figurava no plano de vôo do Legacy, bem como a previsão de duas mudanças de altitude durante o trajeto?

Em entrevista a Eliane Cantanhêde, na Folha de S.Paulo, em dezembro do ano passado, outro advogado, Robert Torricella, afirmou, ao lado dos dois pilotos, que o plano original de vôo seria apenas ‘um pedaço de papel’.

Eis um trecho da conversa:

Folha – Então vocês sabiam que seria contramão voar em altitude ímpar entre Brasília e Manaus?

Robert Torricella – A pergunta não é apropriada, porque a questão é outra. É bastante comum que aeronaves tenham autorização para voar em altitudes não regulares ou padrão, isso depende dos centros de controle.

Paladino – Vou dar um exemplo. Viajei muito pela American Airlines, na rota Nova York-Florida, ida e volta, e costumeiramente o controle de tráfego aéreo me botava numa altitude não regular, fora do padrão usual. Isso acontece com razoável freqüência. Acontece o tempo todo e depende só da autorização do centro de controle. Essa responsabilidade não é minha. É responsabilidade do centro de controle estabelecer a altitude.

(…)

Folha – Então, qual foi a clearance [autorização] que vocês receberam em São José?

Lepore – Eles me autorizaram a voar em 37 mil pés até Manaus.

Folha – Você concluiu que deveria voar nessa altitude todo o tempo, apesar de o plano de vôo prever três diferentes níveis? E não questionou isso?

Lepore – Essa foi a clearance. Se eles quisessem que nós fizéssemos algo diferente, teriam dito isso claramente. Não disseram.

Mau bloguismo

Há mais: se os pilotos americanos desligaram o transponder, ainda que inadvertidamente, não deveriam ser responsabilizados por isso?

O jornalista-advogado Joe Sharkey acha que não. Costuma dizer que não se deve tratar acidente aéreo como crime, que o Brasil está na contramão de uma tendência mundial. Para o jurista Sharkey, crime culposo simplesmente não é crime. A julgar por esse raciocínio, em terra todos poderíamos encher a cara e sair atropelando todo mundo por aí, desde que sem querer.

Vale a pena recorrer a outra reportagem da Folha, assinada por Leila Suwwan, em maio:

‘Demonstrando incertezas sobre o pouso e a decolagem na escala prevista em Manaus, os pilotos do Legacy da ExcelAire, Joe Lepore e Jan Paladino, passaram cerca de 30 minutos concentrados com cálculos de peso do avião em um laptop depois de sobrevoar Brasília. Foi neste período que ocorreram dois fatores que contribuíram para a colisão: o transponder ficou inoperante e a mudança de altitude do plano de vôo não foi feita. A transcrição original em inglês da caixa-preta do Legacy mostra que Lepore e Paladino não estavam confiantes no vôo inaugural do jato. Expressaram falta de familiaridade com equipamentos, ‘medo’ de cometer erros e desconhecimento de informações operacionais do vôo em diversos momentos do diálogo que antecedeu o acidente do dia 29 de setembro de 2006, que deixou 154 mortos’.

Nada disso importa, dirá Joe Sharkey. Ele não quer saber o que realmente aconteceu. Abraçou a sua tese patriótica e, bandeira sobre as costas, defenderá dois ou três ângulos e estrategicamente esquecerá os demais.

Isso não é jornalismo. Isso é mau bloguismo. Isso é inaceitável.

Cortina de fumaça

Sharkey parece se regozijar com o dito caos aéreo brasileiro. O caos explica tudo. É conveniente. O caos não tem apreço pelos detalhes. O caos é o caos, ora.

É mais fácil, também, sair rotulando para desviar o foco. A reação, contudo, se faz notar, como salienta este trecho de uma reportagem do Estado de S.Paulo:

‘‘Repudiamos esse tipo de atitude de um cidadão que esteve envolvido no acidente dentro do Legacy e acompanhou a morte de nossos familiares no Brasil. Ele age de modo irresponsável e nos humilha diariamente em seu site, nos acusando de sermos irresponsáveis e incapazes de analisar o caso’, diz Angelita de Marchi, presidente da Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Vôo Gol 1907. Angelita diz que os familiares estão revoltados por acompanhar as agressões publicadas pelo jornalista. ‘Não é possível admitir uma coisa dessas, que ele continue nos chamando de ‘tupiniquins’, de loucos e de incapazes de ter um pensamento racional diante de toda essa situação’, destaca’.

A rotina e as investigações demonstram que vários fatores soem concorrer para os acidentes aéreos. É preciso buscar todos os detalhes, sem menosprezar nenhum deles, por patriotada ou sabe-se lá por que outra razão.

De uma coisa podemos estar certos: caos não é informação, mas um apanhado, ou, antes, um amontoado.

Serve, também, como cortina de fumaça. Cabe ao jornalismo ultrapassá-la, à distância dos interesses que a formaram.

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Jornalista