Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Kajuru e a postura dos leitores

É estranho como os valores mudam com os anos. Na segunda metade do século passado, o papel da imprensa era conhecido. Todos sabiam da função social do jornalismo e do papel vigilante da imprensa no interesse público. Mas o país foi mudando, vieram a globalização, o Estado mínimo neoliberal, e a sociedade se desconstruiu. Grandes jornais se aliaram sem pudor a interesses de grupos, grandes ‘comandantes’ de redações – como Odylo Costa, Filho, Pompeu de Souza, Ruy Mesquita, Alberto Dines, Cláudio Abramo, Mino Carta – deram lugar, salvadas as exceções, a delegados dos interesses dos patrões, editorias de política mergulharam no partidarismo, as de economia aderiram ao jornalismo ‘de mercado’, e pronto. Boa parte da grande imprensa esqueceu a que veio e o leitor perdeu a confiança nela.


Hoje, tão distante anda a grande imprensa do leitor que, mesmo quando parte dela foge à regra e defende o interesse público, cumprindo seu antigo papel, poucos reconhecem. O caso de Jorge Kajuru é típico. O leitor não percebe que Kajuru denunciou uma prática danosa ao futebol goiano. Não havia interesse pessoal dele em que tal prática não fosse adiante: ele não ganharia um jabaculê de terceiros com aquela denúncia. Não. Ele denunciou porque a prática danosa prejudicava o público. Prejudica, aliás. Não ofendeu a mãe de ninguém, não enlameou a honra de ninguém, não arruinou a vida de ninguém. Denunciou uma prática danosa ao futebol goiano e, por gravidade, ao torcedor goiano.


Kajuru foi condenado porque raramente, em sociedades desconstruídas, o interesse público sai vencedor. Quando a essa ‘desedificação’ se junta a força imensa de um poder monopolista, que a tudo manipula, quando não controla tudo, em todas as esferas de poder, temos até cadeia para o jornalista carregado de provas que denuncia uma prática danosa ao interesse público. O futebol goiano continua prejudicado, só que agora uma voz a menos aponta o descalabro.


Terapia coletiva


Pela defesa de Kajuru, alguns leitores acusaram o Observatório de corporativismo, de arrogância, de se pretender acima do bem e do mal. Um deles disse que jornalista deve ir para a cadeia assim como os médicos, os engenheiros e os advogados que cometem crimes. Ocorre que médicos, engenheiros e advogados não anunciam seus crimes na TV. É a imprensa que informa. Denunciar práticas danosas ao interesse público só é crime em sociedades desconstruídas. Botar um jornalista na cadeia porque defendeu o interesse público é atentado gritante à democracia. Mas o leitor não percebe isso. Por quê?


Não se está aqui falando de jornalistas assassinos que não estão na cadeia. Não. É obrigação da sociedade protestar contra essa ignomínia, e dever da imprensa corroborar esses protestos, e denunciar a omissão dos poderes competentes. O que se pretende nesse texto em tom de sermão enfadonho é esclarecer que ‘crime de imprensa’ não é roubo ou assassinato. Jornalista que rouba ou mata tem que ir para a cadeia, como qualquer outro. Mas jornalista no exercício da profissão – e não se fala aqui também de aproveitadores – vale ouro para a sociedade, porque se ele não revela as práticas danosas contrárias ao interesse público ninguém mais vai revelar.


Agora, se o público-leitor anda com tanto ódio de sua imprensa a ponto de ficar ao lado dos poderosos, dos monopólios que impõem suas práticas danosas a torcedores, a cidadãos e até a poderes constituídos, se o público-leitor anda com tanta raiva dos jornalistas a ponto de querer jogar na cadeia todos os profissionais de imprensa, estamos nós então, nessa sociedade desedificada, precisando de terapia coletiva intensiva.


Romper o monopólio


A imprensa tem muito a confessar no divã, mas o respeitável público-leitor não fica atrás. No cotidiano, abandonou o ensino público, e agora nem consegue conversar cinco minutos com o filho ‘educado’ na caríssima escola particular; abandonou a segurança pública, e agora morre de medo dos ‘vigilantes’ armados de sua guarda privativa; abandonou a saúde pública, e agora espera horas por uma consulta do escorchante plano de saúde, esse SUS da classe média. As questões políticas, econômicas, sociais e judiciais dormem o sono da apatia, do não-controle social – e lhes surgem outros amos a servir que não a sociedade atenta.


E então, vamos abandonar também a imprensa, esse serviço público pela própria natureza?


Não abandone a sua imprensa, leitor. Reaja ao jornalismo de ‘mercado’, cobre, interfira, deixe de assinar, de assistir, mas não deixe para lá. Separe o joio do trigo, identifique e apóie veículos e jornalistas que defendem o interesse público. Internet, blogs, sites alternativos, tudo isso é excelente informação, mas nada substitui o seu jornal-cidadão preferido, seja em que mídia for. Quem perdeu seu jornal conhece o peso desta perda.


O grande jornalista Perseu Abramo (1929-1996), em palestra na PUC-SP, em 1995 (Problemas e desafios do jornalismo), disse:




(…) E, finalmente, os que apostam numa profunda transformação social, política, cultural, institucional, para recolocar em termos completamente diferentes os fundamentos dos atuais sistemas de comunicação, sua natureza jurídica, a sua propriedade, os vínculos e as diferenças entre o estatal e o privado, a necessidade da criação de um sistema público, a participação do cidadão na formulação da política de comunicações, o controle social e democrático sobre os meios e as empresas.


É certo que esses também poderiam ser acusados de utopia, porque a tese que defendem está presa num círculo vicioso de ferro: como convencer a sociedade de que ela deve romper o monopólio se é exatamente esse monopólio o que domina as mentes e corações dos homens? Não há resposta fácil e imediata para esse paradoxo. Mas a esperança é a de que a tese esteja correta e que a sociedade acabe criando as condições para sua concretização.


Amém.