Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“Real” e “virtual”, o mesmo mundo

 

Ação da Advocacia Geral da União (AGU) em Goiás contra a empresa Twitter Inc. e tuiteiros que publicam informações sobre operações de Lei Seca no estado (Folha de S.Paulo, 8/2) repõe a discussão sobre os limites e as supostas diferenças entre o “mundo virtual” e o “mundo real”.

Devido à novidade absoluta que constituíam, correio eletrônico, BBS (bulletin board system, precursor da internet que ligava computadores pela linha telefônica) e, depois, a rede mundial de computadores pareciam, entre 18 e 20 anos atrás, não ser deste mundo, embora resultassem de – e incidissem em – ações de homens do planeta Terra.

Com o tempo, constatou-se que seria impossível conviver com formas de comunicação que se pretendessem isentas das obrigações impostas pelas leis à palavra, falada ou escrita.

Quando discutem os conceitos de calúnia, injúria ou difamação, por exemplo, os advogados nunca usam o verbo “escrever”, usam sempre verbos como “dizer” e “afirmar”. “Fulano diz que na noite passada viu Sicrana numa boate em companhia de jovens que poderiam ser seus filhos” (difamação).

Assim como a cada telefone, fixo ou celular, corresponde um número, não existe computador, tablet ou smartphone com acesso à internet sem endereço IP (internet protocol), informação indispensável para que o dispositivo seja “achado”. A mesma comparação poderia ser feita, no Brasil, com CPF, identidade, carteira de habilitação.

Democracia e cidadania

Isso “tira a graça” do “mundo virtual”? Para alguns, sim, sem dúvida, mas tanto quanto a existência de leis no “mundo real” desagrada pessoas que não gostam delas ou não se sentem obrigadas a respeitá-las.

Mas, como se sabe, até aqui foi impossível imaginar uma democracia sem leis.

O amoldamento das ações dos homens às leis não é única imposição feita à internet. Critérios de qualidade, credibilidade, respeitabilidade, oferta e demanda, sustentabilidade também são inescapáveis.

O uso do Twitter para permitir que motoristas infratores escapem à ação policial é inaceitável, seja à luz dos conceitos de democracia e cidadania, seja à luz da estrita letra da lei.

Até recentemente, houve alguma transigência a esse respeito. Agora, a AGU usa o argumento, dificilmente refutável, de que “a fiscalização tem papel importante na redução de acidentes e no combate a outros crimes”.

Na edição de 1º de fevereiro do jornal Valor, Carlos Lessa escreve (“O ‘Vietnã’ tupiniquim”), sensatamente:

“No Brasil, há muitos anos, vivemos uma guerra muito mais mortífera que a do Vietnã. Pelas informações disponíveis, 57 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito urbano e tráfego interurbano, só no último ano. Anualmente, as mortes no Brasil são cinco vezes o total de mortes de americanos no conflito do Vietnã. No ‘Vietnã’ tupiniquim, 300 mil são acidentados e hospitalizados (em uma média de 9 dias/leito). Mais de 100 mil dos hospitalizados permanecem com sequelas e passam ao exército dos portadores de deficiência por invalidez permanente. Essas cifras deveriam escandalizar e amedrontar os brasileiros, porém, isso é considerado ‘da vida’, logo, ‘natural’.”

Se, para evitar tragédias que se repetem dia e noite, os que usam o Twitter em favor de motoristas infratores conhecem um meio melhor do que a “Lei Seca”, que o apresentem.