Em uma sociedade em que vige o Estado de direito, a definição constitucional de liberdade de expressão é melhor compreendida se lida à luz do Título I (artigos 1º ao 4º) da Constituição de 1988, que define os ‘princípios fundamentais’ da República Federativa do Brasil. Entre os fundamentos republicanos (artigo 1º), encontram-se a cidadania (inciso I), a dignidade da pessoa humana (inciso III) e o pluralismo político (inciso V); já entre os objetivos fundamentais da República (artigo 3º), estão ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ (inciso I) e ‘promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação'(inciso IV).
Obviamente, qualquer conduta que viole os fundamentos da República e os seus objetivos é inconstitucional e deve ser combatida.
Segurança nacional
A liberdade de expressão está garantida pelo texto constitucional brasileiro em seu artigo quinto, que abre o Capítulo I (‘Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos’) do Título II da Carta Magna, intitulado ‘Dos Direitos e Garantias Fundamentais’. Aí estão reunidos, em diferentes incisos, os pontos mais relevantes para a necessária compreensão do seu conteúdo. Abaixo, alguns deles:
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX- é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença;
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.
Reza o parágrafo segundo do mesmo artigo quinto:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
Inspirado por tal parágrafo, um rico complemento à definição constitucional de ‘liberdade de expressão’ pode ser dado pelo ‘Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos’, adotado em resolução pela XXI Sessão da Assembléia Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992, após ser aprovado pelo Congresso Nacional em decreto legislativo de 12 de dezembro de 1991.
Vale lembrar que, de acordo com o artigo quarto da Carta Magna, o Brasil rege-se nas suas relações internacionais, entre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos (inciso II), e que os tratados de direitos humanos são incorporados em grande estilo ao ordenamento jurídico brasileiro (para uma análise específica sobre esse tema, é útil consultar o parágrafo terceiro do artigo quinto da Carta de 88, além da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal).
Dispõe o artigo 19 do referido Pacto:
1. Ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou qualquer outro meio de sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no § 2º do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Conseqüentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública.
Bastante semelhante ao artigo 19 é o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o chamado ‘Protocolo de São José da Costa Rica’. Aprovada pelo decreto legislativo n. 27/92, a carta de adesão do Brasil à Convenção foi depositada em 25 de setembro de 1992. A promulgação da Convenção se deu pelo decreto presidencial n. 678, de 6 de novembro de 1992. O documento foi adotado no âmbito da Organização dos Estados Americanos, a OEA, em 22 de novembro de 1969, e entrou em vigor em 18 de julho de 1978, após receber o número necessário de ratificações. Dispõem os incisos I e II do artigo 13:
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
Fora do contexto
A breve leitura de tais dispositivos é suficiente para as seguintes conclusões:
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A Constituição baniu o anonimato e a censura. Não há qualquer abrigo para esses dois comportamentos sob o manto do ordenamento jurídico brasileiro.**
A liberdade de expressão pertence à numerosa família dos direitos e liberdades fundamentais, todos igualmente importantes. Estando entre eles, ela recebeu da Carta Magna idêntica proteção àquela outorgada aos demais, entre os quais, no inciso X, se destacam a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, consideradas invioláveis.**
Na extensa constelação desses direitos, não há um que prevaleça sobre outro, já que não estão ligados por vínculos hierárquicos. Juntos, devem compor conjunto harmonioso, equilibrado, resultado da ponderação dos múltiplos interesses que caracterizam uma sociedade democrática e pluralista.**
O cidadão que, no ato de expressar-se, violar a integridade de qualquer outro membro do referido elenco de direitos, não está resguardado por qualquer garantia constitucional: incorre em flagrante desrespeito à Carta de 88 e deve sofrer as conseqüências correspondentes.**
A liberdade de expressão deve exercer-se segundo os já mencionados parâmetros dados pela Constituição, documento a ser compreendido de forma sistêmica. Tais parâmetros não foram criados para destruí-la, desfigurá-la ou limitá-la: tais parâmetros definem o seu conteúdo jurídico e configuram a sua existência legal.**
Fora desses parâmetros, o que alguns chamam de ‘liberdade de expressão’ simplesmente não ingressa no mundo do Direito Constitucional. Transforma-se, muito provavelmente, em conduta tipificada pelo Direito Penal. Quando o ato de expressar-se se dá fora do contexto jurídico apropriado, sua qualificação é outra: ‘abuso,’ ‘infração’ ou ‘crime’.******
Advogado, jornalista, mestre em Direito Internacional (UFMG) e doutorando em Direito Internacional pela Universidade Autônoma de Madri