Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Mais ônus do que bônus

O governador de São Paulo José Serra acaba de sancionar o que o jornalista Gilberto Dimenstein, parabenizando-o, considera ‘a medida mais ousada de sua gestão: o pagamento dos servidores das escolas, com base especialmente no desempenho dos alunos’ (ver ‘Parabéns, Serra‘). Estamos falando da Lei Complementar nº 1078, de 17 de dezembro de 2008.


Trata-se, porém, de uma imitação desajeitada, no âmbito da gestão pública, do que no mundo corporativo se denomina ‘remuneração estratégica’. A remuneração estratégica pretende aumentar a sintonia entre interesse dos indivíduos e objetivos da empresa. Os empregados sentem-se motivados perante a perspectiva de receber um bônus financeiro, caso contribuam mais esforçadamente para o sucesso da organização, cumprindo determinadas metas de produtividade, vendas, eficácia etc.


Em termos mais populares, lembra o ‘bicho’, aquela gratificação que jogadores e técnico de um time de futebol recebem após a vitória em campo. O jogador que suar a camisa e contribuir para o bom desempenho da sua equipe receberá uma graninha extra.


‘Anjos’ e ‘demônios’


O que faz sentido dentro de uma empresa ou de um clube de futebol é muito questionável no âmbito da educação pública, cujos valores incluem, mas não se reduzem à busca de eficácia, mais ainda se observarmos a lamentável e complexa situação da escola pública em São Paulo. Esta bonificação por resultados (BR) nasce de uma visão distorcida da realidade educacional e não atuará sobre o que é essencial.


Faltou, para começo de conversa, um pacto entre categoria docente e governo estadual. A BR vem calcada na seguinte premissa: a dedicação dos docentes de uma escola é, senão o único, o principal elemento realmente decisivo para gerar melhor desempenho dos alunos. Ora, sabemos que professores compromissados e assíduos colaboram, e muito, para que seus alunos aprendam mais e melhor… mas nem sempre obtêm resultados satisfatórios, ou nem sempre obtêm os resultados esperados por indicadores como o Idesp (Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo). A realidade não é tão simples. Ensinar, dizia Heidegger, é deixar aprender, mas temos de levar em conta os que, por uma série de circunstâncias, encontram imensos obstáculos dentro da situação atual do ensino brasileiro…


Há um discurso subjacente à BR que desqualifica moral e profissionalmente a maior parte dos professores. Entre os objetivos do bônus financeiro está o de separar os poucos ‘anjos’ dos muitos ‘demônios’. Dimenstein, na matéria citada acima, reforça essa idéia: ‘O bônus proposto faz do professor mais esforçado sócio do sucesso de seu aluno e do relapso, cúmplice do fracasso.’


Desvalorização profissional


Faltou, e não é de hoje, um discurso positivo, a favor dos educadores. O governo Serra olha com maus olhos a categoria docente. Despreza-a. Queixa-se, como regimes autoritários o fizeram no passado, do ‘sindicalismo corporativista ideológico’. Acha que já está pagando muito. Que os investimentos feitos são mais do que suficientes. Por isso, criou uma forma de catalogar os que ele julga irresponsáveis e puni-los. O governador Serra e a secretária da Educação Maria Helena Guimarães de Castro trabalham com a idéia de que a maioria dos professores não tem ética. Seriam esses professores os principais culpados pela falência do ensino. Mas trabalham também com uma hipótese perversa: quem sabe, graças à BR, não conseguiremos comprar a ‘responsabilidade’ desses professores?


Faltou ao governo estadual compreender a complexidade da situação, pois sensibilidade pedagógica (e sociológica) é o que mais lhe falta. O mau desempenho dos alunos não decorre única e principalmente do mau desempenho dos professores, e o mau desempenho dos professores não decorre de uma suposta maldade desses profissionais.


O problema educacional não está isolado das circunstâncias sociais que, para além da sala de aula, influenciam depois o espaço escolar, inviabilizam os melhores esforços dos mais abnegados professores, e desanimam os que acabam sucumbindo perante as dificuldades crônicas:


** 86% dos colégios estaduais sofreram violência em 2007, como noticiou o site da Abril, com base em pesquisa realizada pela Udemo – Sindicato de Especialistas de Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo.


** O reduzido ou inexistente envolvimento das famílias e da sociedade em geral. O professor Mozart Neves Ramos, presidente-executivo do Todos Pela Educação, afirmou recentemente que ‘a população brasileira coloca a educação em 6º lugar na sua lista de prioridades’ (Gazeta do Povo, 12/12/2008).


** O professor Carlos Ramiro de Castro, presidente da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), tem insistido que a maior parte das faltas dos professores decorre dos problemas enfrentados no cotidiano escolar: salas superlotadas, péssimas condições de trabalho (ainda se usa mimeógrafo para preparar aulas, e isso quando o dito-cujo funciona!), jornadas estafantes para compensar os baixos salários, estresse e doenças causados por esse quadro de desvalorização profissional.


Possíveis novas frustrações


Faltou, enfim, ao governador Serra e à sua equipe perceberem o óbvio. (Ou será que perceberam, mas querem que nós não o percebamos?) O óbvio é que o recebimento do bônus associado ao desempenho dos alunos não depende apenas do professor. Depende, em não pequena medida, do perfil de muitos desses alunos!


Alunos que sofrem violência em casa e dentro da escola; alunos que têm persistentes lacunas de aprendizado, explicáveis por mil fatores (famílias desarticuladas, moradia precária, ambiente social adverso e ameaçador, alimentação deficiente, falta de acesso a livros etc.); alunos desestimulados porque encontram uma escola depredada e sem recursos (mais de 70% não possuem bibliotecas e laboratórios de ciências); alunos obrigados a usar banheiros insalubres nessas escolas, a dividir uma sala lotada; alunos que não vêem a escola como lugar que lhes proporcione um futuro melhor; alunos, enfim, que são encarados como ‘produtos’ passíveis de fácil aperfeiçoamento (o processo de formação de um ser humano exige outra visão!), graças ao súbito interesse dos professores irresponsáveis, docentes convertidos agora em funcionários perfeitos. E tudo por causa do bônus!


Aliás, ainda que os professores trabalhem em dobro, se a escola em que estiverem não alcançar as metas estabelecidas, ninguém receberá a bendita BR. A promessa do bônus reserva possíveis novas frustrações. E para mencionarmos um aspecto dessa complexa conjuntura, não se pode, por exemplo, responsabilizar os professores pela baixa freqüência dos alunos, conforme quadro abaixo, resultante do monitoramento que o governo federal vem realizando sobre a freqüência de crianças e adolescentes beneficiados pelo Bolsa Família.


As prováveis ganhadoras



Fonte: MEC – fevereiro/março de 2008. Ver quadro completo


São Paulo está em primeiro lugar, com o maior número de registros de baixa freqüência. São 54.464 registros, dos quais 6.321 atribuídos à negligência dos pais, e 34.531 sem motivo identificado, o que mostra o desinteresse do sistema escolar na hora de procurar as causas reais de tantas faltas.


A lógica da BR conta com uma realidade propícia, desenhada pela secretária da Educação no artigo ‘O mérito do professor’ (Folha de S. Paulo, 15/10/2008):




‘Só há melhor desempenho dos alunos com professores motivados. O Estado, após aumentar o salário-base de todos os professores, selecionar 12 mil coordenadores pedagógicos e reorganizar o sistema de supervisão, lançou projeto de remuneração por desempenho que pode resultar em até 2,9 salários mensais a mais aos professores. Trata-se de reconhecer o esforço dos professores e valorizar o compromisso com a melhoria do desempenho dos alunos. Pela primeira vez, funcionários estaduais receberão bônus financeiro de acordo com o resultado do trabalho. Outros países, como o Chile, adotaram ações semelhantes. Nos EUA, o maior sucesso ocorreu em Nova York.’


Na realidade imaginada pela secretária, todos os professores trabalham em escolas iguais. E não é verdade. Sabemos que, apesar dos pesares, existe certo número de boas escolas públicas estaduais, situadas em regiões menos violentas, apoiadas pelos pais dos alunos, dirigidas há um bom tempo por diretores conscienciosos, beneficiadas por uma história menos acidentada. Serão essas, provavelmente, as ganhadoras na corrida do bônus!


A estrutura física escolar


O ex-secretário da Educação da prefeitura de São Paulo, professor Mario Sérgio Cortella, em entrevista ao site Educar para crescer, da Abril, posiciona-se contra as políticas de bônus por desempenho, fazendo-nos ver que nem tudo é questão de motivação interior:




‘Durante a minha gestão como secretário em São Paulo, havia um concurso de banda de fanfarras. As escolas das áreas centrais ganhavam todos os anos. As escolas de periferia tinham bandas com menos instrumentos e nunca saíam vencedoras. Isso é avaliar por desempenho? Não: é premiar os grupos mais favorecidos. Sou a favor da meritocracia, mas ela nunca será adequada enquanto não houver igualdade de condições no ponto de partida. Eu só posso avaliar os professores por desempenho se eles tiverem a mesma oferta de condições de melhoria.’


O bônus encobre problemas antigos. Quer nos impedir de ver (e a mídia muitas vezes é conivente, não aprofunda, não denuncia nada) o que o PSDB fez, ou deixou de fazer, nos últimos 13 anos, desde a gestão Covas, passando pela fraquíssima gestão Alckmin. A situação educacional de São Paulo não chegou a níveis tão preocupantes por obra do acaso. A BR, em última análise, quer desviar nossa atenção do que cabe ao governo fazer.


Cabe ao governo estadual cuidar da estrutura física escolar. O desempenho dos alunos diminui em escolas semi-destruídas. Serra se preocupa com isso, parece… mas onde estão as notícias?


Prenúncio para 2011


Cabe ao governo estadual evitar que, como acontece em várias escolas do estado de São Paulo, diretores façam merenda, trabalhos de secretaria, preencham papelada, tudo menos acompanhar o processo pedagógico.


Cabe ao governo estadual antecipar-se e oferecer aos professores bons salários. Bons salários tornariam a carreira docente atrativa e o trabalho mais compensador. As cobranças poderiam se dar num clima menos tenso, sem a truculência que se tem verificado.


Cabe ao governo estadual admitir que o professor foi jogado para escanteio, como o próprio Gilberto Dimenstein reconhece, no artigo já citado: ‘Ganha mal, seu treinamento é precário, enfrenta, em especial nas regiões metropolitanas, a violência cotidiana combinada com a falta de infra-estrutura.’


O pragmatismo de José Serra e Maria Helena, compreensível em empreendimentos outros, cobra muito dos professores e pouco faz por eles. O que estamos vendo em São Paulo é o prenúncio do que, se for eleito presidente, Serra e sua possível futura ministra da Educação farão a partir de 2011, em nível nacional.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br