Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Marcelo Beraba

‘A FOLHA É CONTRA a Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial. A Lei de Cotas prevê a reserva de vagas nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas e para alunos negros e indígenas. E o estatuto estabelece medidas obrigatórias e facultativas -em áreas como educação, cultura, saúde, mercado de trabalho e meios de comunicação- que estimulem a igualdade racial.

Os dois projetos de lei tramitam há anos no Congresso Nacional e entraram agora na ordem do dia por conta de dois manifestos, um a favor e outro contra, tornados públicos nas duas últimas semanas por intelectuais e militantes sociais.

A Folha é contra por considerar que o Estatuto da Igualdade Racial ‘promove um retrocesso ao definir os direitos com base na tonalidade da pele’. O jornal reconhece que existem ‘distorções históricas’ no tratamento que os negros recebem no Brasil, mas acha que os dois projetos de lei ferem ‘o princípio da igualdade de todos perante a lei’ e que a prioridade do governo deveria ser garantir a educação fundamental e média pública, gratuita e de qualidade.

A opinião está expressa no editorial ‘Discriminação oficial’, publicado na quarta-feira, e em pelo menos dois outros editoriais editados neste ano.

Até aí, tudo bem. Não só o jornal tem o direito de se posicionar, como os seus eleitores esperam que o faça. O problema é como o tema foi tratado em outros espaços do jornal.

A Folha publicou, ao longo do ano, dez artigos sobre o estatuto e sobre as cotas. Na seção ‘Tendências e Debates’, publicou três contra os projetos de ações afirmativas e três a favor. O jogo desequilibra com os quatro textos do colunista semanal Demétrio Magnoli, um dos signatários do manifesto contra o estatuto e as cotas. O jornal pode alegar que o espaço que edita, ‘Tendências e Debates’, manteve o equilíbrio e que o colunista tem todo o direito de expressar opinião. É certo. Assim como é certo também que o resultado final para o leitor é que o jornal deu mais visibilidade para uma das posições.

Mas o caso mais grave ocorreu ao longo dos últimos dias. Na quinta-feira, dia 29, o jornal publicou um artigo de Magnoli (‘A 5ª Internacional’) e a íntegra do manifesto ‘Todos têm direitos iguais na República’, assinado pelos que são contra as cotas e o estatuto. Na segunda-feira, foi divulgado o manifesto ‘Em favor da Lei de Cotas e do Estatuto da Igualdade Racial’. O novo documento recebeu, na terça-feira, por parte do jornal, um tratamento equivocado, que afetou os princípios jornalísticos do equilíbrio e do pluralismo.

Os erros que cometeu:

1 – Não publicou a íntegra do manifesto pró-cotas, como tinha feito com o texto que coincidia com a opinião do jornal.

2 – Não publicou os principais pontos do estatuto e da Lei de Cotas para permitir que o leitor tirasse suas próprias conclusões.

3 – Deu um tratamento superficial aos manifestos, destacando não os principais argumentos de cada um, mas os nomes que os assinam, o que reforça a tendência de tratar assuntos graves sem profundidade e de centrar o interesse das coberturas em celebridades, e não em idéias.

Fiz estas observações na Crítica Interna e concluí: ‘O leitor da Folha está mal informado sobre um assunto difícil, que divide a sociedade e que deverá ser definido em breve no Congresso. O mínimo que o jornal pode fazer agora é publicar a íntegra do novo manifesto para que seus leitores possam se informar e tomar posição’.

Na sexta-feira o jornal tentou corrigir os erros e equilibrar a cobertura. Publicou o artigo de Abdias Nascimento favorável às cotas (‘Ação afirmativa: o debate como vitória’), uma reportagem sobre a tramitação dos projetos no Congresso (‘Votação do estatuto racial fica para 2007’), um quadro com um apanhado das principais medidas previstas no estatuto e dois textos que resumiam as posições antagônicas contidas nos dois manifestos.

Mas não publicou a íntegra do manifesto pró-estatuto e cotas. E o leitor, se quiser, que procure na internet.

A discussão sobre questões raciais é sempre difícil. Mas não é difícil fazer uma cobertura jornalística equilibrada e pluralista, que não se deixe contaminar pela opinião do jornal. Basta vigilância e vontade.’



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‘Manchetes em tempo de eleição’, copyright Folha de S. Paulo, 9/7/06.

‘A Folha publicou uma semana de manchetes sobre o governo Lula. Reproduzo-as: ‘Lula ajuda TVs com as concessões ameaçadas’ (segunda), ‘PT e PSDB querem mudar aposentadoria’ (terça), ‘Lula vai vetar aumento de 16,7% para aposentados’ (quarta), ‘Patrimônio de Lula dobra na Presidência’ (quinta) e ‘Lula dá Correios ao PMDB em troca de apoio’ (sexta).

É natural que o jornal dedique uma atenção maior para o governo federal, ainda mais em período eleitoral. Mas alguns leitores reclamam da insistência e de alguns títulos.

As manchetes de segunda e de sexta são incontestáveis. São dois fatos relevantes. O primeiro, um levantamento do próprio jornal, que vem acompanhando de forma quase solitária a distribuição de concessões de rádios e TVs com critérios políticos desde o governo Sarney. O segundo, mais uma evidência de como se constroem as alianças políticas no Brasil. A manchete de terça-feira foi produzida a partir de informações colhidas com técnicos e políticos dos dois principais partidos que disputam a eleição presidencial e tem o mérito de provocar um tema que afeta a todos os trabalhadores, mas que os políticos evitam tomar posição durante as eleições para não se desgastarem.

Em relação à manchete de quarta-feira, vi um problema que considero grave. Acho que o assunto merecia ser o principal destaque da Primeira Página, juntamente com a Copa, mas com uma formulação diferente. O jornal defende com afinco a gestão responsável e o equilíbrio das contas públicas. Deveria, portanto, ter deixado claro na linha fina as razões do veto presidencial. Como saiu, ficou parecendo, no contexto eleitoral, que a Folha reprova o veto.

A manchete mais contestada foi a de quinta, sobre o patrimônio de Lula. Alguns leitores viram no título uma prova de que o jornal persegue o presidente. A secretária de Redação Suzana Singer assim defende a opção do jornal: ‘A manchete está absolutamente correta, baseada nos dados fornecidos pelo próprio presidente da República. A notícia é relevante por várias razões: mostra a relação de bens de Lula e dos principais oponentes, revela que o presidente tem aplicações financeiras no país com os maiores juros do mundo e traz a evolução do seu patrimônio nos últimos quatro anos. São todos fatos de evidente interesse público’.

Não tenho dúvida de que o assunto teria de estar na Primeira Página. Não há, no entanto, pelo menos até agora, nenhum problema com a evolução patrimonial de Lula. Como o próprio jornal informa, embora tenha praticamente dobrado, o crescimento é compatível com a renda do presidente e deve ser relativizado pela inflação no período analisado. Por essa razão, concordo com os leitores que escreveram questionando o fato de ter sido a manchete do jornal. Não se justificava.

Os dois casos -as manchetes de quarta e de quinta- exigiam melhor avaliação da Folha. O jornal não pode se deixar levar pelo jogo eleitoral.’